Nefasto escrita por Ana Heifer


Capítulo 5
A Clareira em Chamas




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Pendurada no ar, segura apenas pela mão, não tive coragem de olhar pra baixo. Com um impulso do braço esquerdo, Pan me puxou para cima, e em seguida passou o braço direito por baixo de minhas pernas. Agarrei sua camiseta, tomada pelo medo de cair. O menino soltou uma risada. Pareceu procurar um lugar lá em baixo. Seus olhos focaram em um ponto.

— Segure firme, não quero que você caia. — Pan ergueu uma sobrancelha.

Coloquei minhas mãos em volta de seu pescoço, relutante. Indiferente, ele inclinou o corpo para frente, descendo à ilha novamente a toda velocidade.

Pan pousou na grama à beira de um lago. Uma grande árvore do nosso lado esquerdo, com um buraco no centro, jogava uma sombra sobre nós dois. À frente, havia uma espécie de muro de pedra, bem extenso. Do topo dele jorrava água, e ele possuía uma abertura próxima ao chão em forma de arco. A queda dava direto no lago, que tinha uma forma estreita e irregular. Flores que eu nunca havia visto coloriam o chão. Era um lugar totalmente diferente do resto da floresta, escura e sombria. Aquele lago parecia ter vida.

O garoto me pôs no chão e caminhou até a árvore. Recostou-se em seu tronco e seu olhar se perdeu na paisagem.

— Chamo esse lugar de Lago do Silêncio.

Fiquei parada, admirando. Era encantador, e eu podia sentir magia em tudo aquilo. Andei até a beira do lago e sentei-me na grama, deixando-me hipnotizar pelos reflexos da água. Vários minutos se passaram e Peter não disse mais uma única palavra. Momentos depois, percebi que ele se levantou atrás de mim e veio se sentar ao meu lado, cruzando as pernas. Pude sentir que encarava meu rosto, porém não o olhei. Continuei concentrada na água, e ele em mim. Com minha visão periférica, o vi expressar um sorriso contido.

Após alguns segundos, se levantou bruscamente.

— Vamos, não podemos perder o dia inteiro aqui. Preciso falar com Félix. Voltaremos aqui hoje à noite, eu e você.

{...}

Pan se recusou a fazer o caminho de volta voando. Disse que iríamos andando porque o objetivo era me mostrar algumas coisas na ilha. Ele indicou plantas venenosas, algumas frutas, atalhos para a casa-da-caverna, lugares onde eu poderia conseguir água e mostrou algumas clareiras nas quais o acampamento fora instalado anteriormente.

Em um certo momento, passamos por uma parte muito fechada da floresta. Ao olhar para a direita, percebi que as copas das árvores se entrelaçavam tanto que eu mal conseguia enxergar metros além de onde estávamos. Era mais escuro daquele lado, exceto por um brilho muito vermelho que se misturava à penumbra do lugar. Senti um arrepio e Pan viu para onde eu estava olhando. Parou de andar, virou-se na mesma direção que eu e apontou.

— Se você seguir naquela direção, vai entrar no Buraco Negro. — sua boca se contraiu.

— E o que é o Buraco Negro?

— É onde vivem as sombras da ilha. — o garoto me olhou de modo sério, quase assustador. — Nunca vá para lá. Não sem mim.

— Como quiser... — dei de ombros e voltei a caminhar.

Mesmo fingindo para ele que não me importava, aquele lado da floresta parecia ter um ímã. Tudo o que eu sentia no momento era uma enorme vontade de entrar lá, me perder ali dentro.

Não trocamos mais nenhuma palavra depois disso. Peter seguia à frente, e eu o acompanhava, um pouco distante. Observava tudo em volta, no entanto parecia não haver mais nada de novo na paisagem.

Finalmente, após longos minutos caminhando calados, chegamos de novo ao acampamento. Caminhei até um canto da clareira e me sentei recostada numa árvore. Em pouco tempo, sem perceber, adormeci.

{...}

Fui acordada por um forte cheiro de fumaça. Meu nariz começou a coçar, o odor de queimado estava incomodando. Já respirava com dificuldade quando abri os olhos, e os esfreguei para tentar enxergar melhor.

Havia fogo por toda parte.

Olhei em volta e percebi que estava sozinha. Ninguém além de mim estava no acampamento. Eu tinha sido deixada para trás, no meio das chamas. Que ótimo. Nesse momento, vários pensamentos atravessaram minha cabeça, num misto de pânico e raiva: não sabia o que fazer.

Ao encarar o fogo reparei que algo não estava certo. Embora nada naquela ilha fosse normal, o incêndio era ainda mais estranho de alguma forma. Girei meu corpo, seguindo o desenho da clareira. Foi então que me dei conta que o fogo fazia um círculo, delineando perfeitamente a área à minha volta.

— Meninos, a donzela acordou! — ouvi uma voz que vinha do outro lado do fogo.

Logo depois, a mesma voz soltou um assovio forte, igual ao de um pássaro. Ouvi murmúrios atrás das labaredas. Estava começando a ficar ainda mais assustada. Por mais que o fogo não avançasse consumindo a clareira (já estava claro que aquilo era algum tipo de magia), as vozes baixas sussurrando umas com as outras ao meu redor começaram a encher minha cabeça, me sufocando. Fiquei agitada.

Minhas mãos ficaram suadas, minhas pernas estavam trêmulas, e a fina fumaça que já formava uma nuvem acima de mim começava a arder em meus olhos. Olhava desesperadamente para cima, para baixo e para os lados em busca de qualquer saída. Tentava ouvir o que as vozes diziam enquanto conversavam umas com as outras, fora de meu alcance. "O que ela vai fazer?", "Será que ela consegue?", "Ela já pôs a mão?". Eu não sabia para onde olhar ou o que fazer. Aquelas frases ouvidas em meio às chamas não faziam nenhum sentido pra mim. Queria apenas sair do meio daquele fogo. Involuntariamente, passei a respirar de forma muito rápida. Eu queria gritar.

— Ei, que tal para de agir desse jeito estranho? — novamente, alguém gritou do outro lado. — Já está assustando os meninos! — era Pan.

— Como vocês todos passaram? Ninguém tentou me acordar?! — gritei a plenos pulmões. A fumaça agora me sufocava.

— É um... treinamento, menina perdida. — Peter parecia zombar da situação. Pude perceber risadas abafadas ao redor.

— Eu vou morrer aqui!

— E seria menos uma para me preocupar, não? — ele soltou um maldoso riso seco.

— O quê...?! — a raiva e o desespero estavam nítidos em minha voz.

— Pare de falar e saia logo daí. — Pan respondeu, com certo tédio.

Cerrei meus punhos. Minhas unhas já estavam machucando as palmas das mãos com a força que eu fazia. Cerrei os olhos e minha respiração ficou ainda mais rápida e intensa. Com a boca fechada, meu maxilar travou. Senti minhas pernas tremerem e meu pescoço tensionar. Com o medo que sentia, um leve zunido se instalou em meus ouvidos e minha cabeça girava pelo esforço da respiração. Eu estava perdendo o controle.

— Não temos o dia todo, Ana! — mais risadas.

E fiquei vazia. Nada além de raiva. Até o medo havia sumido diante do pouco caso e maldade de Peter Pan diante da minha situação. Já era óbvio que a ideia de me deixar sozinha, sufocando, tinha partido dele. Era impossível acompanhar sua inconstância, a forma como parecia me cercar ora para cuidar de mim, ora para me expôr ao completo perigo.

— Já está ficando entediante. Se você não sair daí, teremos que arrumar outra brincadeira.

Eu queria machucá-lo. Alguma coisa intensa em mim queria fazê-lo se ver desamparado tanto quanto eu estava no meio do fogo, ou sentir a garganta e os olhos arderem tanto quanto em mim. Eu o jogaria nas chamas naquele mesmo instante se pudesse, ainda que eu não soubesse exatamente de onde vinha tamanha raiva, a ponto de ter pensamentos tão hediondos quanto os que ele mesmo aparentava ter. O barulho que os meninos faziam, rindo e gritando, me deixava ainda mais enfurecida.

— Saia logo daí, Ana! Você não pode ser tão indefesa assim!

E naquela hora, do fundo da minha garganta, saiu um grito. Não agudo, como o de medo, mas muito forte, de raiva, agonia e frustração. Tomou todo meu pulmão, pareceu gastar todo o fôlego que me restava em meio à fumaça. Nesse momento, minha visão escureceu por uma fração de segundo. Quando voltou, estava embaçada. Senti as palmas das minhas mãos queimarem bem no centro. Soltei um grunhido assustado e bati as mãos com força em minhas pernas para aliviar a pontada de dor repentina. Meus lábios se entreabriram, por eles saiu um leve suspiro e eu prendi a respiração.

Não entendi como tudo aconteceu, mas meu cabelo foi arremessado para a frente por uma rajada muito forte de vento quente que veio de trás de mim. Várias labaredas de fogo voaram em minha direção e se perderam em minhas mãos, sem me queimar, e ali ficaram, eliminando em partes as chamas da clareira. O vento carregou o resto do fogo para longe.

Confusa e me sentindo inexplicavelmente esgotada, caí de joelhos e olhei à minha volta. Não havia nem sinal de fogo e a grama ao meu redor não estava sequer queimada. Encarei minhas mãos: estavam avermelhadas, e ardiam levemente. Minha visão ficou nítida de repente. Os meninos haviam parado de rir, todos me fitando, assustados, sem entender.

O único que não parecia abalado era Pan, que mantinha as sobrancelhas levantadas, e seu sorriso dizia para mim que ele sabia o que estava acontecendo.

 


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