Quem apagou as luzes? escrita por Ana Carolina Marquês


Capítulo 1
A "mágica" do Natal




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É véspera de Natal. Nem preciso de um calendário para saber disso; o cheiro de biscoito e café fresquinho invade o meu quarto junto com a TV mais alta que o normal tocando músicas temáticas. Me levanto e vou direto para a janela, lá embaixo quase todos usam gorros vermelhos e verdes e brincam com a neve.

Oficialmente estamos na melhor época do ano para mim. Os aromas são sempre agradáveis, as pessoas ficam de bom humor e claro: Vamos para casa de Tia Jenna!

Aceno para os vizinhos e fecho as cortinas para escolher uma roupa para viagem no fim do dia e vou direto para o banheiro. O problema é que quando me olho no espelho existe um novo ser habitando em mim e ele tem a ponta amarela. Odeio quando isso acontece, minha pele fica impecável todos os dias do ano, menos quando é importante e não tenho outra escolha a não ser tampá-la com um curativo ou espremer ela até que a espinha domine todo meu rosto.

Ok. Respiro fundo ignorando a própria traição da minha pele e lavo o rosto com água gelada antes de enfiar o curativo. A questão aqui é: preciso desembaraçar meu cabelo antes de lavar porque estamos num tipo de economizar energia, o que para mim não faz o menor sentido, mas vem acontecendo a duas semanas desde o surto de papai. Molho um pouco as mãos com creme e tento acalmar meus cabelos antes de começar o ritual de desembaraçamento com ele seco, mas se você tem cabelo enrolado já deve saber que no fim eu fiquei parecendo um leão; sem a parte da majestade e só com a juba grande e ressecada.

Desisto de me arrumar e só faço um rabo-de-cavalo mal feito, talvez, a mágica de natal não esteja funcionando para mim ainda. E não preciso tirar o pijama agora, está frio demais e corro o risco de ficar gripada na onda de sorte que estou tendo. Saio do quarto e desço as escadas pulando alguns degraus, Olívia está dançando com nossa gatinha — que claramente está com ódio e os pelos arrepiados —, no meio da sala e vejo Jeff correndo pela cozinha com meu pai logo atrás, será que ele roubou mais doce da geladeira? Desvio dos dois e dou um beijo na bochecha de minha mãe que observa tudo parada da ilha na cozinha. Ela aponta para que eu sente e me entrega uma caneca cheia de café.

Dou um gole tentando escolher o que comer primeiro: biscoito, panqueca, bolo de chocolate. Aí, com certeza não foi uma boa ideia começar a dieta semana passada. Coloco tudo em dois pratos e começo a comer, já que é para engordar que seja com estilo.

— Rachel, coma mais devagar a comida não vai fugir.

Não consigo nem me defender porque minha boca está cheia demais, então apenas assinto e me forço a engolir tudo. Uma dica para você aí do outro lado é: nunca faça isso, você não tem uma garganta de adamantium e com certeza vai se machucar. Igual a mim.

— Que horas vamos para a Tia Jenna? — consigo dizer depois de tomar um gole enorme de café, o que não é uma boa ideia e queima minha língua.

— Não vamos mais, seu pai conseguiu uma reserva naquele restaurante novo. Estão falando super-bem do lugar e ouvi dizer que agora só tem mesa para o meio do ano que vem.

Minha fisionomia nesse momento deve ser de alguém que comeu algo muito ruim e quer chorar. Primeiro que tenho quase certeza de que isso foi uma jogada de marketing; a cidade não é grande o suficiente para eles terem tantos clientes ou concorrência, segundo que eu já tinha planejado toda minha roupa e terceiro que... bom, só tenho dois argumentos válidos. É nessas horas que sinto minha alegria e planejamento ir por água abaixo, esse restaurante novo serve comida japonesa e não sou fã de peixe cru ou arroz enrolado em negócios verde, além do mais eu adoro flertar com um dos vizinhos da Tia Jenna. Já estávamos quase trocando números de celular.

— Mas tínhamos combinado e até comprei um presente para ela. – Faço o melhor beicinho e olhar de “por favor, mãe. Não acabe com minha vida.”

Minha mãe dá de ombros e isso só significa uma coisa: posso chorar, espernear ou sair correndo pelada na rua. Ela não vai mudar de ideia. Mesmo com essa decepção meu apetite continua igual, então termino de comer e vou direto para a sala continuar minha miserável existência. Olívia está emburrada no sofá, já que a gata finalmente arranhou ela. Mando algumas mensagens para Andy e Jess, minhas melhores amigas são as únicas capazes de aguentar a drama queen que serei por hoje.

Pego o controle remoto e fico pulando os canais até chegar em um que não seja tão feliz, — por ora só quero afogar minhas mágoas e afundar na depressão pós prato — e acabo assistindo um episódio antigo da minha série favorita. Com as provas do semestre passado não tive tempo de ver a nova temporada e por isso fico fora de noventa porcento das conversas da galera. Se Andy ou Jess não estivessem viajado eu poderia passar o Natal na casa delas, qualquer lugar é melhor que esse tal restaurante. E isso me dá uma ideia.

— Tem certeza?

É a quinta vez que meu pai pergunta isso e tento dar meu melhor sorriso. Não adianta responder mais, ele está tão nervoso que não consegue dar um nó na gravata e se você quer saber meu pai faz isso todos os dias do ano. Do outro lado do quarto minha mãe termina de se maquiar. Nunca a vi tão chique para ir em algum lugar, até vestido novo comprou. E posso dizer que alguém vai acabar se cegando com tanto brilho. Vez ou outra ela pede alguma coisa que está jogada na cama e enquanto eles discutem se realmente é uma boa ideia me deixar aqui sozinha, só penso em como a cama deles é maior e mais confortável que a minha. Além da TV enorme que tem aqui, talvez seja uma ótima ideia ficar nesse quarto enquanto eles saem.

Costumava fazer isso, mas sempre tinha que cuidar de Lisa e Jeff. Não é uma ideia muito legal deixar crianças sozinhas no andar debaixo, então eu acabava assistindo só desenhos e brigando para que eles não estragassem nada.

— Rachel, eu estou falando com você ­— minha mãe estala os dedos bem perto da minha cara. — Sem garotos, entendeu?

— Ou garotas. – Completa meu pai.

Então é por isso que meu pai está tão pálido. Não consigo segurar a risada, eles me conhecem a dezoito anos para saberem que isso nunca seria meu plano. Ainda mais nesse estado; de pijama, unhas borradas porque tive preguiça de limpá-las e uma espinha maior que meus olhos na testa. Se tivéssemos ido para a Tia Jenna poderia até ser uma preocupação real. Mas desse jeito e aqui em casa? Só quero curtir minha série enquanto hidrato minha pele e tento dar um jeito nos meus cachos. Puxo o ar com força depois de tanto rir e meus pais não parecem entender o motivo das risadas.

— Eu só não quero comer sushi no Natal ou ter que colocar uma roupa chique, prefiro ficar aqui e me entupir de chocolate.

— Tudo bem, então. Vamos deixar dinheiro para você comprar pizza ou o que quiser e ligaremos a cada uma hora. — Ela continua passando o batom vermelho e meu pai finalmente consegue dar um jeito na gravata.

Reviro os olhos, Olívia que tem doze anos, não eu. Mas acabo concordando com tudo, só assim para me deixarem em paz logo. É o primeiro Natal que vou passar sozinha e não sei como me sinto em relação a isso ainda.

— Agora vamos, saia da cama. Vou trancar o quarto, não arrisco em deixar você e chocolate aqui, vai manchar tudo e o lençol é novo.

Minha mãe não tem empatia comigo? Levanto e reviro os olhos. Qual é! Só sujei a cama assim duas vezes e em minha defesa o filme estava tenso demais. Enquanto ela termina de guardar as coisas espalhadas peço ajuda ao meu pai para levar o colchão até o andar de baixo. Descer as escadas com um colchão nunca é uma boa ideia e sozinha as chances de quebrar algum osso triplicam. Ele me ajuda e arrastamos o sofá também, para encaixar tudo que levei. Agradeço com um beijinho em sua testa e em segundos Olívia e Jeff já estão deitados, vão deixar tudo cheirando a perfume infantil doce. Mas estou tão feliz e ansiosa que não me importo e subo correndo para pegar os travesseiros e edredom, vi na previsão que hoje a chuva ia aumentar e tenho um leve medo de trovão. Por isso, vou deixar tudo que preciso caso alguma emergência aconteça aqui embaixo e isso inclui uma faca, porque já assisti muitos filmes para não ficar paranoica.

— Então é isso. Você tem certeza? Podemos te esperar.

Meu pai para na minha frente e olha da faca para mim com a sobrancelha erguida. O silencio fica estendido entre nós dois enquanto tento dar meu melhor sorriso. Pego o dinheiro e lhe dou um abraço forte, não posso fazê-lo mudar de ideia agora.

— Tá tudo certo, pai. Vou ficar bem e você pode me ligar a qualquer hora, estou com o celular e o telefone sem fio aqui do lado.

Aponto para os dois aparelhos jogados de qualquer jeito ao lado do colchão e ele assente me dando outro abraço. Meus irmãos já estão impacientes e ficam correndo no quintal lá fora, embaixo da chuva. Minha mãe vai arrancar os cabelos em alguns minutos se eles continuarem assim. O acompanho até a porta e fico vendo o trabalho que é colocar Olívia dentro do carro e Jeff na cadeirinha, alguns gritos — e mamãe resmungando pela roupa molhada —, depois meu pai finalmente acelera o carro. Fico lá parada até sumirem pela rua, nem percebo que estou tremendo de frio até fechar a porta e suspirar.

Fecho e abro os olhos para ter certeza de que tudo é real fico extremamente alegre. Nunca fiquei sozinha em casa, sempre estou cuidando das crianças e esse silêncio deve ser uma das maravilhas do mundo. Ao mesmo tempo que a euforia me invade um pouquinho de receio chega também, não sou grande fã de ouvir cada mínimo barulho, isso faz com que meu cérebro imagine coisas ruins. Balanço a cabeça na tentativa de espantar todos esses pensamentos, mas coloco em mente que não é Halloween e sim Natal, um momento mágico de amor e paz. Sinto meu corpo ficar cada vez mais frio, tranco a porta e corro para a cozinha pegando duas barras de chocolate e alguns marshmallows. Me jogo no colchão, começo a arrumar a máscara de pele e coloco a série. Finalmente, poderei conversar igual uma pessoa normal de assuntos normais como: quem matou Andrey? Meu shippe vai funcionar?

A chuva fica mais forte e preciso aumentar o volume da televisão. O vento e trovões me assustam um pouquinho, mas foco em prestar atenção na série. Não. Hoje tudo está perfeito e vai continuar assim, desde que eu fique em casa. 


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