O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 8
∾ Eu estou me perdendo enquanto nossos mundos se colidem.


Notas iniciais do capítulo

Olá, novamente. Como vocês estão?

Bem, agora chegou o momento do choque. Como será que os personagens vão se comportar? Tudo o que posso adiantar é: dor e sofrimento.



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O barulho do chuveiro ressoava por toda a casa engolida pela escuridão, sendo o único som a atravessar o silêncio de cada cômodo. Não era uma casa tão grande e ainda parecia tão vazia. E, apesar da quietude, a agitação e perturbação encontrava-se presente. 

A sala, sendo o maior lugar, tinha apenas um sofá pequeno, acompanhado do tapete novo, um vaso de planta artificial e a televisão antiga esquecida em cima de um móvel claro. Dividia espaço com a cozinha, bem menor, separadas apenas por uma bancada. E para o lado direito, estava o quarto e o banheiro, onde Nirav terminava o banho. 

O vento frio que adentrava pela janela aberta, arrepiava seu corpo ainda úmido pela água quente. Do lado de fora, a tarde começava a se despedir para dar lugar a noite. A última luz do dia era opaca e pálida, manifestando o tempo frio e nublado. O verão havia, de fato, ficado para trás. 

Nirav observou através da abertura, um instante, o movimento da rua. Estava tudo muito quieto, as pessoas fugindo do vento forte que atravessava as roupas e arranhava a pele. Ele parecia não se importar, mesmo tendo arrepios friorentos correndo por seu corpo. 

Ainda enrolado na toalha, com os cabelos molhados, ele sentou-se sobre a cama. Um suspiro atormentado escapou de seus lábios. Havia uma agitação no interior do seu peito. Sentia-se inquieto, inconstante e inconsistente, pouco a pouco, se perdendo. 

Sua mão percorreu pela cama, procurando pelo celular. A tela quebrada não revelou nenhuma nova mensagem e, principalmente, mensagem nenhuma de Juno. Já fazia uns dias desde que trocaram algumas poucas palavras acanhadas. Não tardou para perceber que a excitação dos dias anteriores já não parecia existir mais. Ela estava se afastandto, tornando-se cada vez mais distante. 

Seria o peso do erro que os abatia? Nirav não sabia dizer, ainda que sentisse, dentro de seu âmago, a preocupação em constante crescimento. Não importava o quão bom podia ser, no fim, era um erro. Ambos sabiam, ambos tinham culpa. E como lidar com as consequências? 

Com a insegurança do garoto imaturo que não era mais, Nirav sentia-se um tanto irresponsável. Quando refletia, sua mente aplicava armadilhas, fazendo-o pensar em sua mãe e seu pai. Adhira estaria envergonhada enquanto August estaria decepcionado. Se sabia que Juno estava comprometida, por que se envolveu com ela? Era a pergunta que ecoava sem resposta. 

Conseguia escutar os sermões e, por isso, ficou aliviado por ter recebido a notícia do atraso de sua mãe para a formatura — que ele mesmo já nem parecia se recordar. Ainda estava chateado pela família de seu avô ser tão egoísta e irresponsável em cuidar dele, porém, por dentro, estava usando de desculpa para tentar esconder a verdade inevitável que nunca escapava de sua mãe. 

E a verdade em si poderia ser ainda mais traiçoeira. Afinal, não consistia apenas no que tinham feito. Antes fosse apenas um ato impulsivo. Era muito além e muito mais profundo. Havia o sentimento e isso, talvez, fosse a pior parte. O que Nirav faria com aquele sentimento? Ou melhor, o que faria com aquela paixão? Ter dado nome ao sentimento só o tornava ainda mais pesado e difícil de ser controlado. 

Contemplando a foto que registrou de Juno, um misto de emoções se embolava em seu interior, assim como as memórias. Conseguia reproduzir aquela cena em sua cabeça com uma vivacidade assustadora. E podia ficar preso nela sem perceber. Mesmo assim, relutante, ele se levantou, tentando deixar para trás a bagunça dos seus sentimentos. No entanto, assim que se encarou no espelho, percebeu que algumas lembranças permaneciam marcadas. 

A marca no ombro direito, agora quase imperceptível, da mordida de Juno. Ele passou a ponta do dedo, desenhando aquele sinal. Nesse momento, sabia que não se arrependia. Não conseguia ter remorso pelo que compartilharam naquela cachoeira. Todos os beijos, todos os toques, todos os segredos... No fundo, Nirav sabia que era tudo o que queria desde que conheceu Juno pela primeira vez. E, no entanto, se era tudo o que mais desejava, por que não estava feliz? 

A resposta era óbvia. E estava prestes a encará-la, não havia mais escapatória. Sabia que aquele momento chegaria, mas recusou-se a acreditar e, diante de suas escolhas, não conseguia esconder o receio da situação em que havia se colocado. 

E mesmo com a cabeça bagunçada em um turbilhão de pensamentos, Nirav obrigou-se a se arrumar para a ocasião que o esperava. O tempo frio demandou roupas mais fechadas. A toalha deu lugar a uma blusa vermelha de botões, coberta por um casaco escuro, calça jeans clara e tênis de lona. 

Não demorou muito para escutar as batidas na porta, chamando sua atenção. Ajeitando os cabelos com as mãos, Nirav adiantou-se até a fechadura, sabendo de quem se tratava. 

— Está pronto? — Theo também se escondia dentro de uma jaqueta vermelha, sobre uma blusa branca assim como a calça de linho. 

Com um suspiro, Nirav fechou a porta atrás de si, juntando-se a Theo na caminhada até o bar, onde se encontrariam com o restante do pessoal. 

Eles se entreolharam e Nirav reconheceu o tom acusador no rosto do amigo. Era a primeira vez que estavam se encontrando pessoalmente depois de tê-lo contado o que aconteceu. 

Quando contou sobre Juno, Nirav procurava alguma validação. Afinal, mesmo sendo errado, ele precisava de alguém que compreendesse o que estava sentindo, ou pelo menos tentasse. Entretanto, não demorou a perceber que ninguém conseguiria entender. 

— Achei que sua mãe já estava por aí. — Theo voltou a falar, enfiando as mãos nos bolsos frontais das calças. 

— Não, vai se atrasar um pouco para vir. — revelou, passando a mão sobre a barba enquanto examinava a tela do celular. Nenhuma mensagem. 

— Por quê? 

— Porque a família do meu avô é egoísta o suficiente para não cuidar dele. Então, só resta minha mãe. 

— E como fica sua formatura? Está quase chegando. 

— Ainda falta um tempo, na verdade. 

— Mas e você? Está animado? 

Nirav deu de ombros. 

— Eu já tinha até me esquecido disso, para ser sincero. 

— Eu imagino o motivo. — Theo deu um riso nasal, embora nada divertido. — Está com a cabeça em outras coisas... 

Ele não respondeu, apenas continuou andando. Teve esperança de convidar Juno, pois sabia que ela adoraria ir. Conseguia imaginá-la dançando ao seu redor, radiante como o sol. Entretanto, a ideia começava a dissipar. 

Percebendo o silêncio, Theo tornou a insistir no assunto, para o desconforto de Nirav. 

— O que foi? Está arrependido? — Theo perguntou, analisando–o. 

— Não, pior que não. — respondeu, sincero. Não havia motivo em mentir para Theo. — Eu deveria estar. 

— Deveria mesmo! 

Como iria se arrepender? Cada vez que sua mente reproduzia as memórias, seu corpo ansiava por mais. Sentia-se viciado ao toque e cheiro de Juno, desejando novamente experimentar o sabor de seu beijo, o conforto do seu abraço e o calor do seu corpo. Não conseguia se arrepender diante dessas sensações. 

E nessas lembranças, era quando Nirav esquecia o diabo nos detalhes. 

— Eu faria tudo de novo, Theo. — assumiu, mantendo um sorriso nos lábios, pensando em Juno. 

— Eu sei que você faria, essa é a pior parte. — a entonação dele era de repreensão. — Eu sabia que isso não ia dar certo. 

— Ainda pode ser que dê certo! — Nirav respondeu, sendo mais esperançoso do que deveria. 

— Então você acredita em milagres! — zombou, com irritação. — Não sei se você sabe, mas o namorado dela chegou logo depois que vocês decidiram se pegar! Qual a probabilidade de isso dar certo? 

E o diabo nos detalhes retornava. Tudo o que Nirav tentava esconder de si mesmo veio à tona naquele comentário. A distância de Juno, a falta de mensagens, o retorno de Nicholas. Theo estava certo, tinha noção disso. Mais uma vez, a agitação em seu peito parecia transforma-se em sabor de cinzas em sua boca. 

— Olha, não quero ser rude, mas dar sermão agora não vai adiantar nada. — respondeu a Theo, sentindo o vazio em seu âmago começar a aumentar, pouco a pouco. 

— Eu sei! Só não quero ter que dizer "eu te avisei", Nirav. — ele parecia desapontado e, além de tudo, preocupado. — Eu deveria ter tentado interromper isso quando ainda era cedo. 

Nirav se irritou, porque sabia que, no fundo, não era algo que pudesse ter sido parado. Poderia ter acontecido de diversas maneiras, não evitado. Acreditar que era mero impulso, diminuía a profundidade do que estava sentindo e só ele sabia o quão profundo era o abismo daquele sentimento. 

— Desculpe te desapontar, mas não acredito que nada que tivesse feito teria impedido qualquer coisa. — ele suspirou, meneando a cabeça. — Às vezes, acho nem mesmo nós dois teríamos conseguido impedir. 

— Vocês sequer tentaram impedir! — irritado, Theo estalou os lábios, mirando-o com decepção. — Não sei quem é pior. Você ou ela. 

Nirav não respondeu, Theo não entenderia, ou talvez se recusasse a entender. 

Estava apaixonado por Juno. Apaixonado de um jeito que nunca tinha estado antes. Havia conhecido várias garotas, de todos os tipos. Carinhosas, engraçadas, gentis. Cada um com sua particularidade, contudo, nenhuma era Juno. Nenhuma emanava o calor ou irradiava a luz dela. E em nenhum outro olhar havia aquele brilho. 

E, sendo algo que nunca tinha sentido antes, como contaria para alguém? Como explicaria a potência desse sentimento tão recente? Como descreveria sua paixão como uma força da natureza sem parecer tão inocente e bobo? Para os outros, podia parecer só desejo fomentado por impulsividade. Não era só isso, apesar de também ser e se completar nesses detalhes. Só Nirav entendia. E torcia para que Juno entendesse também. 

Eles continuaram a caminhar em silêncio, avançando pelas ruas também quietas, cortadas pelo vento frio. A noite se aproximava, trazendo sua coloração escura para o céu apagado pelas nuvens. As luzes amareladas dos postes começavam a acender, uma a uma, trazendo um tom aconchegante à cidade. 

O bar começava a ganhar agitação quando chegaram. Outras pessoas desconhecidas entravam e saiam pela porta. Algumas falando alto, outras com bebidas na mão ou apenas transitando de dentro para fora e vice-versa. Uma música de fundo tocava, vindo de uma caixa de som grande e antiga, que correspondia ao estilo mais vintage do bar. 

Conforme se aproximavam, Nirav começou a sentir uma pontada de desespero. Seu coração estava acelerado e não parecia ser de um jeito bom. 

— Acha que as meninas sabem? — Nirav permitiu-se perguntar, puxando a atenção de Theo. 

— Bem, eu não comentei nada. — ele balançou os ombros. — Não sei se é melhor a Juno ter contado ou não, mas se Hester descobre que eu sei e não contei a ela, sabe que vamos ter problemas. 

— Desculpe por ter te envolvido nisso. 

— E você acha que eu não iria querer saber? — ele descontraiu a situação com um sorriso, causando alívio a Nirav. — Está de brincadeira? 

Hester os esperava do lado de fora, com um semblante impaciente. Lou e Helena também estavam lá, já sentadas, compartilhando uma bebida. Nirav espiou ao redor, procurando por Juno enquanto tinha todos seus sentimentos transformados em uma ansiedade severa. 

Com o belo vestido listrado em branco e preto, Hester recebeu o namorado com um beijo. As outras garotas se agitaram nas cadeiras, acenando para eles. Lou com seu costumeiro vestido estampado e Helena com um macacão escuro e confortável. 

— Achei que tinham se perdido de tanto que demoraram. — ela comentou, levando-os até a mesa. Ofereceu-os bebidas, que Nirav recusou. 

— Nós precisávamos ter uma conversa séria. — Theo arqueou as sobrancelhas, fazendo Nirav bufar, negando com a cabeça. 

— Hmm, sobre o quê? Posso saber? — Lou perguntou, observando-os. 

— Eu não sei do que ele está falando. — Nirav respondeu, um tanto nervoso. 

— Se vocês não sabem, não sou eu que vou contar. 

Elas os fitaram com a curiosidade jorrando de seus olhos. 

— O que vocês estão escondendo? — Hester perguntou, arrancando uma risada de Theo. 

— Estou só brincando! Demoramos porque estávamos enrolando mesmo, nada demais. 

Era um jeito de descobrir se elas sabiam sobre algo e, pelo visto, não sabiam nada. Juno não havia contado. Ele deveria ficar aliviado ou preocupado? A resposta parecia embaçada. Assim como todas as outras respostas de todas as outras perguntas que giravam dentro de sua cabeça.  

De repente, Nirav sentiu uma cotovelada em seu braço. Quando focou Theo, reparou que indicava, com a cabeça, o outro lado da rua. 

— Eu não queria estar aqui quando aquilo chegar. — murmurou. 

Observar as duas pessoas que se aproximavam foi como sentir o chão ceder sob seus pés. Naquele instante, o vento pareceu ficar tão violento que não soube dizer se estava instável por equilíbrio ou desespero. 

Estavam de mãos dadas, os corpos próximos, íntimos como só um casal de namorados podia estar. Nirav quis afastar o olhar, entretanto, se obrigou a encarar a verdade que tanto tentou omitir para si mesmo. E, por mais que doesse, manteve-se firme. 

Não sabia bem como esperava ser Nicholas, mas era apenas um homem padrão, trajando roupa social, mais baixo e bem mais velho. Sua pele pálida contrastava com os cabelos escuros e a barba rala. Ao lado de Juno, ele parecia um homem qualquer. Não combinava com ela. 

E ela roubou toda a sua atenção, fazendo-o esquecer que havia alguém segurando sua mão. Estava tão bela usando uma saia preta e longa, com uma blusa clara e de mangas compridas. O vento bagunçava seus cabelos presos, trazendo o ar despojado que ficava tão bem nela. 

Seus olhares se encontraram. Os olhos dela vieram até os seus tão rápidos como a luz em um quarto escuro. Por um momento, Nirav sentiu o calor percorrer por todo seu corpo, mudando todo o clima ruim daquela noite.  

— Você por aqui? — brincou, sendo inevitável abrir um sorriso ao cumprimentá-la. 

Juno também sorria, no entanto, se havia algum brilho em seu olhar, já estava desaparecido. 

— Ei. 

Então, reparou o quão distante Juno estava, mesmo que bem a sua frente. 

— Você é Theo, certo? — Nicholas cumprimentou seu amigo, apertando-lhe a mão. — Não via a hora de conhecer o restante do pessoal. Da outra vez, só tinham as meninas. 

Nirav ainda observava Juno, que desviava o rosto para baixo, sem coragem de encará-lo. Entendia o porquê de ela estar afastada, mas estaria mentindo se tivesse de dizer que não doía. 

Engolindo a seco seus sentimentos, Nirav não teve outra escolha, senão estender a mão para Nicholas. 

— E você é? — ele franziu o cenho, se fazendo de confuso. 

— Você sabe quem ele é. — Juno interveio com voz sútil. 

Nicholas deu uma risada divertida. 

— Sim, eu sei, estou só brincando! — ele apertou sua mão, sustentando um sorriso cordial. — Bom conhecer você, Nirav. Juno falou bastante de você. Quase fico com ciumes! 

Com uma risada encenada, Nirav concordou. Teve vontade de retrucar a frase, só não queria deixar Juno ainda mais desconfortável. 

— Oh, haha! Ele é muito engraçado, sabe? — ela revirou os olhos, sendo tomada pelo braço de Nicholas em sua cintura. 

— Ela me falou bastante de você também. — respondeu, vendo-a novamente se esconder. 

— Falou bem, eu espero. 

Nirav apenas alargou o sorriso. Precisou respirar fundo para conseguir continuar. Mesmo relutante, sentou-se ao lado de Hester e Theo. Lou sentava-se na cabeceira, como Helena na outra ponta, deixando as duas cadeiras opostas para Nicholas e Juno. Ele mantinha o braço em torno dela, que parecia encolhida na própria cadeira. 

Ainda não conseguia encarar a verdade, embora estivesse bem a sua frente, diante de sua vista. Sua cabeça parecia girar, cedendo o restante do equilíbrio que restava. Ao seu redor, enquanto os outros se alegravam, Nirav começava a se perder. 

Estava deslocado, desconfortável, não conseguia encontrar seu lugar naquele meio, mas também não sabia como fugir. Queria estar em qualquer outro lugar, menos ali. Porque toda vez que passava os olhos por aquelas pessoas, escutava suas conversas e suas risadas, algo dentro de si mesmo parecia quebrar. 

E quando olhava Juno, tudo ficava ainda pior, pois ela era a única pessoa capaz de entender o que estava sentindo. E sabia que também sentia o mesmo. Entretanto, ela parecia sumir, desaparecer atrás de uma fachada que não correspondia à Juno que conhecia. E mesmo estando apenas do outro lado da mesa, Juno parecia estar a metros de distância, separada dele por uma muralha, tão longe e inalcançável que o fazia questionar sua presença.  

Enquanto Theo e Hester conversavam com Nicholas, Helena e Lou escutavam, Nirav conseguia perceber como Juno estava apenas fingindo estar presente. Seu semblante vago, desatento, mostrava sua ausência. Apesar de ter o namorado buscando contato íntimo a todo tempo, ela parecia incapaz de correspondê-lo. Esquecida dentro de si mesma, Juno só conseguia retornar à realidade quando encontrava os olhos de Nirav. 

Estavam ambos perdidos, encontrando-se apenas nos olhares segredados, que se esbarravam e tornavam a fugir. Era o único contato que conseguiam ter e, aos poucos, também se tornava escasso. Nirav não suportaria aquela situação por muito tempo. Era pedir demais. 

Além de tudo, ainda havia uma constante pontada de raiva surgindo dentro de si, criando proporções ainda maiores cada vez que escutava a voz de Nicholas.  

— Sempre falam que você precisa se preparar para tudo, porque tudo o que pode acontecer em um evento, acredite, vai acontecer. — Theo comentou com Nicholas, animado. — Imagino que já tenha passado por uma situação assim... 

— Eu nem sei por onde começar! — respondeu, fazendo-os rir. — Logo que eu comecei a trabalhar, eu estava saindo com uma garota, que não era Juno, e é importante citar isso... Ela sabe dessa história, sempre dá risada da minha desgraça... 

O assunto foi interrompido pelas bebidas que acabavam de chegar. Conforme todos se serviam, Nirav tornou a encontrar o semblante de Juno, por um momento. A sensação de distância já se tornava palpável, como se fossem meros estranhos compartilhando a mesma mesa. O muro entre eles crescia cada vez mais, criando forma e adquirindo um nome. 

Nicholas apenas continuou falando, sem notar que a garota ao seu lado parecia se dissipar. Ele parecia sugar toda a atenção enquanto ela apenas permanecia ao seu lado, comportada e quieta. E como isso era irritante... 

— Eu resolvi levar a garota para um dos eventos que eu estaria produzindo e fotografando. Ela adorou! Acredite, ela adorou tanto que resolveu aproveitar ao máximo. Começou a beber e não parou nunca mais! Acho que ninguém naquele evento bebeu tanto quanto ela. — uma risada tosca saiu de sua boca. — No fim da noite, ela estava dançando em cima mesa, completamente doida! Eu vi a hora que ela ia arrancar a roupa! 

Helena fez uma careta enquanto Lou dava risada, imaginando a cena. 

— Oh, minha nossa! — Hester suspirou, passando a mão no rosto. — Não acredito! 

— E o que você fez? — Theo perguntou, com os olhos arregalados. 

— O melhor que se pode fazer numa situação dessa: fingir que não conhece e negar até a morte! — ele riu da própria piada, como se fosse tão engraçado. — Meu chefe ficou tão furioso comigo, que achei minha carreira tinha acabado antes de começar! 

— Nem imagino a vergonha... 

— Quando comecei a namorar Juno, no primeiro evento que a levei, fui obrigado a dizer "meu amor, divirta-se, só não dance em cima das mesas, por favor"! 

As risadas estouraram na mesa, obrigando Nirav a vestir um sorriso falso, tentando esconder o desgosto crescente por aquele homem. Quando olhou para Juno, notou que ela também não estava rindo. 

— E por falar em se divertir, tem aproveitado mais essa visita à cidade? — Lou perguntou, tomando um gole de cerveja para recuperar o fôlego. 

— Ah, sim, claro! Fico feliz de ter sido convencido por essa mocinha! — ele tocou os cabelos de Juno, que apenas sorriu.  

Seu semblante era nulo, desprovido de qualquer emoção. Quando ela o olhava, não havia brilho nenhum em seus olhos. Era apenas o olhar de quem via alguma coisa só por ver. 

— Só falta uns eventos para tornar a cidade mais interessante! — ele apontou para Theo, que deu risada. 

— Mas a cidade já é interessante. — Nirav retrucou, tornando a falar pela primeira vez depois de tanto tempo. 

Nicholas o analisou. 

— E como! Juno que o diga! — ele riu, ajeitando os cabelos. — Não sei o que vocês arrumaram, porque ela estava exausta quando eu cheguei. Quase não deixaram nada da minha namorada sobrando para mim! 

Outra vez, sua visão encontrou o de Juno. Ela mordeu os lábios, desviando o rosto logo em seguida. 

— Não paramos um minuto desde que ela chegou! — Helena contou, dando uma risadinha. 

— Acho que nós nunca fizemos tanta coisa juntos antes de Juno chegar! — Hester ponderou. — Fomos a um luau, andamos de bicicleta... Sempre saindo para nos encontrar e conversar. 

— Uau! E ela nem me conta nada... — ele podia parecer admirado, entretanto, Nirav notou-o enciumado, na verdade. — Fico feliz que tenha se divertido, mocinha, mesmo que sem mim. 

Juno pareceu desconfortável com o comentário, arqueando as sobrancelhas diante do namorado. Nirav não estava gostando do tom dele. 

— Você podia ter vindo antes, junto com ela. — Helena pontuou, balançando os ombros. — Poderíamos ter feito tanta coisa, você iria adorar... 

— Eu estava ocupado. — sua voz apresentou uma seriedade estranha, quase ríspida. — E o combinado era vir junto, mas a mocinha não aguentou me esperar de tão empolgada que estava! Quase achei que não fizesse questão da minha companhia... 

— Devia estar satisfeito que ela está se divertindo, não aborrecido por não ter sido incluído em alguns planos! — Nirav disse, de repente, irritado. 

Hester o fitou surpresa, pousando uma mão sobre seu braço, como um toque de atenção. Ele não se importou, a raiva dentro de si começava a falar mais alto. 

Sentia como se tudo fosse uma farsa que todos se recusavam a encarar. Juno parecia apagada, deslocada e desconfortável ao lado dele. Não lembrava de ter escutado o som de sua voz, muito menos o de sua risada. E ninguém parecia perceber, ocupados demais rindo dos comentários toscos de Nicholas. 

— E eu estou! — ele fez uma careta, encarando Nirav e gesticulando com a mão. — Mas você sabe como é, tenho que cuidar do que é meu. 

Foi o estopim para Nirav, que sem acreditar no que ouvia, deu uma risada de escárnio. 

— Ela não é uma propriedade sua. 

— Nirav! — Hester chamou sua atenção, repreendendo-o. 

Conseguia reparar nos semblantes atônitos das pessoas ao seu redor. Juno meneou, balançando a cabeça negativamente, quase como se pedisse para parar. Porém, ele não conseguia voltar atrás. 

— Só é estranho quando ele a trata assim. 

— Eu falei brincando, cara! 

— Não pareceu brincadeira para mim. 

Nicholas o encarou, sério. O cenho franzido mostrava a irritação iminente. Mesmo assim, ele tentou conter o tom de voz para parecer polido: 

— É só um modo de dizer que me importo e me preocupo. Ela sabe disso, nunca reclamou, na verdade, ela adora... 

— Bem, não deveria. — cortou–o ao retrucar, sentindo a mão de Hester apertar seu braço. 

Enfim, conseguiu tirar Nicholas do sério com sua resposta. 

— O que você tem a ver com isso? Não tem que dar palpite no meu relacionamento. Ela é... 

— Ela está presente! — Juno exclamou, interrompendo-os, falando pela primeira vez. Seu olhar percorreu pelos dois, pairando sobre Nirav, que reparou em sua vermelhidão. — E agradeceria se vocês parassem de falar como se não estivesse! 

— Não precisa falar assim comigo, Juno. 

Sem aguentar mais, Nirav se levantou com rispidez. Não conseguia mais suportar aquela situação por um minuto que fosse.  

Sem se importar com as impressões que deixaria, afastou-se com pressa. Outras pessoas do estabelecimento repararam nas vozes altas e a agitação. Lou e Helena tentaram segui-lo, sendo interrompidas por Theo. 

— Nirav?! 

Ele virou para trás, observando o breve caos que havia causado. Seu olhar foi capturado por Juno, que permanecia parada, apenas o fitando, sem reação. 

— Desculpe, está tudo bem, ele só teve alguns problemas com a família... Não está em um dia muito bom. — escutou Theo dizer, tentando apaziguar a situação antes de vir atrás. Nirav o odiou por isso. 

A raiva consumia tudo dentro de si. Sequer conseguia pensar direito. Tudo o que conseguia sentir, além da raiva, era a sensação costumeira da tempestade. Aquela mesma tempestade no horizonte, iminente, acabava de chegar. E Nirav não conseguia controlá-la, estava além de suas forças. 

Do lado de fora, no entanto, havia apenas um vento incessante, embora forte o suficiente para sacudir tudo. Inclusive, ele mesmo. 

— O que está tentando fazer? — Theo exigiu em voz baixa e irritada. 

Nirav meneou, passando as mãos sobre o rosto e coçando a barba. 

— Isso é ridículo, tudo isso é ridículo... — reclamou, fungando o nariz. — Ele é ridículo! 

— Por que você está incomodado com isso? O que pensa que está fazendo? 

— Olha para ela! — disse, tentando manter a calma e a voz baixa, mesmo já estando do outro lado da rua. — Olhe para a Juno e me diz se é a mesma pessoa de antes! 

Theo estava irritado com sua postura, ele entendia, só não conseguia evitar. 

— Já parou para pensar que pode ser constrangimento? Afinal, o amante e o namorado estão no mesmo ambiente! — ironizou, então apontou o dedo para Nirav. — Você sabia que isso podia acontecer, você se colocou nessa situação. 

— Não é possível que você seja tão cego, Theo! — Nirav negou com a cabeça, balançando-a. — Ela sequer abre a boca para falar. Vocês estavam ocupados demais rindo das palhaçadas dele e não perceberam quão retraída ela estava! 

Parecia óbvio demais para precisar falar. A garota na mesa não era Juno, só uma casca do que ela se parecia. Onde estava a garota radiante como o sol? A garota pela qual se apaixonou, com a risada exagerada e o jeito extrovertido? Não havia nenhum sinal dela, como se ela nunca tivesse existido, de verdade, sem ser em sua cabeça. 

— O que está tentando insinuar? — Theo perguntou, confuso. 

— Ela não está feliz. — deu de ombros. — Olhe para os dois, Theo. Ele é o único na relação que procura por contato e toques e ela sequer retribui. 

— O quê? — Theo pareceu incrédulo com sua observação. — Não tem como você saber algo assim! Está só com ciúmes e está deixando isso falar por você... 

— Eu só... Eu só sei. 

Não podia culpar Theo, afinal não seria capaz de entender como sabia. Não conseguia descrever a ele como Juno adorou cada toque seu, como o prendeu com as pernas para não o perder, como marcou sua pele para demonstrar o que sentia. E nunca seria capaz de explicar o brilho em seus olhos. 

— Ela não o ama. — disse, por fim. 

— Ah, claro que não! E o que você vai fazer? Ir até ele e falar isso em sua cara? Arrumar problema para você e para ela? — a impaciência de Theo havia chegado no limite e Nirav sentia muito por tê-lo decepcionado. — Eu entendo que você esteja gostando dela, mas o que aconteceu entre vocês foi um erro, um equívoco, e acabou! Não vai acontecer de novo! 

Nirav coçou os cabelos, desistindo daquela conversa. No entanto, antes que pudesse fugir de Theo, ele o segurou com firmeza. 

— Você precisa encarar a realidade, Nirav! — exclamou com a voz mais alta. — Ou você acha que ela está apaixonada por você? É isso o que você acha? 

Nirav o fitou, sem realmente vê-lo. O eco daquela pergunta ressoava junto com o vento forte em torno de sua cabeça. Até que tudo pareceu ficar surdo, pois Nirav não queria saber a resposta. 

— Não sei o malabarismo que você fez para acreditar nisso, mas preste bem atenção no que eu vou te dizer! 

Por mais que tentasse fugir, a voz cortante de Theo o perseguia como uma lâmina afiada e ele não tinha escolha, senão ouvir a verdade dilacerante: 

 — Se ela estivesse apaixonada por você, a primeira coisa que ela teria feito era escolher você. Não teria ido escondida e feito dessa relação um segredo. Se Juno estivesse apaixonada por você, ela não estaria abraçada com outro! 

Nirav soltou seu braço das mãos de Theo, que tentou segurá-lo, de novo, em vão.  

Não conseguia suportar mais. Cada parte dentro de si parecia tremer, prestes a desabar. O choque de realidade doía, porém o que mais feria era estar tão abalado por uma paixão tão imatura. 

Como permitiu-se chegar em tal ponto? Como se permitiu ultrapassar tantos limites? E por que não conseguiu impedir a si mesmo? Por que não conseguia lutar contra o que sentia? Mesmo agora, era incapaz de ignorar seus sentimentos. 

Naquele instante, por alguma razão, lembrou-se de Leo. Costumava questionar-se que tipo de sentimento era aquele, capaz de bagunçar todo o ser de Leo, abalando cada estrutura e o tirando do eixo. Nirav nunca soube a resposta de verdade, sempre tentou deduzir, somente agora era capaz de compreender. 

Olhando para trás, tendo um último vislumbre de Juno, sentada ao lado de Nicholas como se não houvesse nada errado, Nirav teve medo. Estava com medo porque estava perdido. 

Em cada detalhe daquela mulher, ele havia se perdido. Seus cabelos ondulados, seus olhos brilhantes, seu sorriso exagerado. O som de sua risada, o timbre de sua voz, até a sua personalidade. Cada curva de sua silhueta, a textura de sua pele, o cheiro de seu corpo. 

Nirav estava perdido por Juno e não sabia se seria capaz de se encontrar novamente. 


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Notas finais do capítulo

Devo confessar que esse capítulo me matou um pouquinho por dentro. Odeio ter que ver os dois passar por isso, mas temo em dizer que é só o início.

E, bem, o Nirav está certo quando sente a (in)diferença da Juno. A distância era esperada, mas como ele não iria reparar na diferença de seu comportamento? Logo ele, que dela gostava justamente o jeito espontâneo, a extroversão, os exageros...

Enfim, espero que tenham gostado. Meu coração está começando a se quebrar.



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