O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 39
∾ Sequer conseguiu me amar o suficiente para me odiar.


Notas iniciais do capítulo

Olá, olá!

Peço minhas singelas desculpas por conta do atraso, precisei tirar um tempo para descansar minhas ideias. Entretanto, contudo, todavia, cá estou eu!



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O cheiro de café perfumava toda a casa pela manhã. Um cheiro forte que preenchia as narinas, trazendo a sensação de conforto e lar. Quando assoprou o líquido quente e o bebericou, apenas para provar, saboreou o amargor do pó lutando com o doce do açúcar na medida certa. 

Preparou duas canecas. Uma para si e outra para o homem que sentava na porta de sua casa. Seu pai. De dentro da cozinha, August era apenas uma sombra de silhueta na porta entreaberta. Nirav equilibrou as duas entre as mãos e avançou até a porta, encontrando-o casualmente acocorado no degrau. Tinha um cigarro não aceso entre os dedos. Estendeu uma das canecas para ele, que aceitou com um agradecimento. Assim, atravessou a porta para o lado de fora, encostando-se no cimento rudimentar de sua casa. 

A manhã que se apresentava diante de seus olhos indicava um belo dia. A chuva da noite passada tinha se extinguido, deixando apenas o asfalto e a calçada umedecidos como lembrança de sua presença. O céu estava limpo, desnudo de qualquer nuvem. E o sol começava a emergir atrás das colinas, iluminando o mundo com seu brilho dourado e trazendo o bafo de calor. Apesar do mormaço, o vento frio da manhã continuava persistente, correndo pelas vielas e arrepiando a pele. Nirav aspirou profundamente, após um gole de café. Havia algo no vento fresco e gélido que o fazia parecer mais puro. 

Seu pai ofereceu-lhe um cigarro assim que acendeu o seu. Talvez a única coisa que tivessem em comum até então. Nirav aceitou, pondo o filtro entre os lábios e acendendo-o. O gosto do tabaco se misturou com o amargo do café em sua boca. 

Sentia-se inquieto. A presença de seu pai ainda lhe era estranha. Era difícil entender que ele estava ao seu lado, tão perto, quando estava acostumado a não ter sequer notícias suas. Na maior parte das vezes, não sabia o que dizer, o que fazer, como se comportar. Apenas correspondia aos seus avanços, respondia suas perguntas e reagia às suas ações. Parecia mais fácil lidar com o que não estava ali. No fundo, era como se estivesse abrigando um completo estranho. Um estranho que um dia foi o seu pai. 

— Quase não me lembrava da sua casa — ele comentou, de repente, tomando mais um gole do café. — Sendo sincero, não me lembrava da cidade, mas não acredito que tenha mudado muita coisa. 

— Você nunca fez questão de conhecer a cidade — respondeu, esfregando o nariz ao fungar. — Sempre odiou cada parte dela. 

August deu uma risada rouca. 

— Não posso dizer que mudei de ideia — ergueu o olhar da rua para o filho, estudando-o com o cenho franzido. — O que diabos viu nessa cidade? 

Nirav assoprou a fumaça leitosa, desviando o rosto da atenção dele, arrastando a visão para a rua. Não era uma resposta tão fácil como parecia ser. Poderia dizer que era seu lar e não estaria mentindo. Entretanto, não cabia em uma só palavra ou em uma frase inteira. Era bem mais do que só seu lar. Tornou-se um homem naquela cidade. Construiu uma vida, criou raízes ali. Apaixonou-se e decepcionou-se. Suas melhores e piores recordações estavam atreladas àquela pequena cidade. Florencia era parte da sua vida. Era a sua vida. 

— Eu me encontrei aqui — declarou, simplesmente, dando de ombros. Tomando a última golada de café, depositou a caneca vazia no peitoril da janela próxima. — É parte da minha vida. 

— E você sempre quis uma vida sólida — August completou com um leve tom de sarcasmo em sua voz. — Você odiava as constantes mudanças. Chamava a sua própria família de nômade e dizia que nunca... 

— Nunca levaria a lugar nenhum — cortou-o. Não precisava dele para que se lembrasse de suas atitudes. Limpou a garganta. — E nunca levou mesmo — pousando o cigarro aceso entre os lábios, tragou-o. 

— E por acaso, agora essa estabilidade tem o levado em algum lugar?  

Nirav não gostou de sua entonação. Lançou um olhar repreensivo sobre o pai. 

— Eu construí minha vida inteira e está muito bem sucedida, obrigado. Acho que isso é chegar em algum lugar. Não que você se importe. 

August soltou um “oh”, seguido de outra risada rouca. Abanou a mão direita para Nirav, espalhando a fumaça branca do tabaco. 

— Não se irrite. É só o meu jeito de perguntar como você está. 

Sentiu-se enrubescer, envergonhado. Refletiu por um instante, sem saber como responder. Então, pensou em Juno, encharcada da chuva, caminhando ao seu lado uma outra vez. Suas palavras trêmulas transbordando coragem. O pranto se transformando em um sorriso. E o brilho em seu olhar. 

— Estou tentando fazer as coisas certas — respondeu, olhando para o horizonte. Em sua mente, o rosto dela parecia flutuar em águas mansas, como se toda a névoa que ofuscava seus pensamentos sobre ela estivesse se dissipando. — Do jeito certo. 

— Nem sempre é tão fácil — August pontou, acenando com a cabeça, tornando a bebericar do café que esfriava. — Às vezes, nós sabemos o que é a coisa certa a se fazer, mas o caminho até lá pode ser complicado e borrado. É fácil se perder tentando fazer a coisa certa. 

Nirav o olhou com atenção. Retirou o cigarro de entre os lábios e o abandonou, ainda pela metade, dentro da caneca vazia onde estivera seu café. 

— E o que você sabe sobre isso?  

— Se me permite ser honesto, quase nada — admitiu com um aceno desleixado. Dando mais uma tragada no cigarro, levou um tempo antes de prosseguir. — Demorei muito a ver que poderia ter feito as coisas certas, do jeito certo. Demorei tanto até ser tarde demais. 

— Você nunca pareceu preocupado em fazer o que era certo. 

— Você está certo. — sua resposta pegou Nirav de surpresa, não esperava que ele fosse concordar. 

August caiu em um silêncio agourento por um longo tempo. Nirav o observou, tentando ler a verdade sob a máscara de sua quietude. Seu rosto tinha um semblante nulo, embora parecesse esconder muitas coisas. Conseguia notar como estava velho. As bolsas por baixo dos olhos inchadas, caídas e arroxeadas. O grosso bigode salpicado de cinza, parecendo um arame farpado. As rugas cortando seu rosto de modo severo. E os olhos esbranquiçados, opacos, como que estivessem perdendo a vida aos poucos. Assim como ele. 

Queria ceder à empatia ao vê-lo tão marcado por fracassos e arrependimentos. E, no entanto, quando o ouvia falar... Tudo o que conseguia escutar era um discurso gravado, reproduzido centenas e milhares de vezes até que pudesse se tornar aceitável. Soava falso, premeditado, ensaiado. E ao mesmo tempo... Como alguém podia fazê-lo sentir tantas coisas contrárias ao mesmo tempo? 

— Sempre estive mais preocupado em me dar bem do que com o bem-estar de você. Você já sabe disso. — ele retomou com a voz grave. — Vocês foram a minha melhor oportunidade. Minha família. E eu fiz tudo dar errado. Eu deveria ter feito o melhor por vocês. 

Ao ouvi-lo, Nirav sentiu-se cair em contradição. Pegou-se tentando sentir algo além de dó para com o velho sentado à sua frente. Não sabia dizer o quê. Contudo, sentimentos assim continuavam a ter um gosto amargo em sua garganta. A piedade surgia, porém, não sem cobrar o caro preço do seu ressentimento. E a raiva persistia, além de tudo. 

— E se arrependeu somente agora? — embora tentasse ceder, sua fala permanecia marcada pela mágoa de todos os anos que os separaram até ali. Houve anos e mais anos, diversas oportunidades seguidas umas das outras para que se arrependesse antes que fosse tarde demais. 

August acenou com a cabeça, como se entendesse. 

— Como eu disse, às vezes, o caminho até a coisa certa não é tão fácil. 

— Isso não é desculpa! — retrucou enfurecendo-se. — Muito menos te isenta dos seus atos. 

— Em minha defesa... 

— Em sua defesa? — interrompeu-o com violência. — Você tem alguma ideia do mal que fez a mim? Pior, do que fez a minha mãe? Porque você age e fala como se tivesse sido apenas um pai ausente. Sinceramente, na maior parte das vezes, eu desejava que você fosse só isso. 

August não ergueu o olhar, não ousou encarar o filho. Sequer era capaz de olhá-lo nos olhos, pensou. E isso só inflamou mais a mágoa que se transformava em raiva e nada além disso. O rosto de sua mãe pareceu surgir em sua mente, como uma última tentativa de amenizar a fúria. Mas agora, sentindo a raiva consumir qualquer sentimento benigno, deixou que queimasse, ardendo depressa. Se houvesse de tentar perdoá-lo, então haveria de mostrar a razão de sua relutância. 

Com a respiração acelerada, prosseguiu: 

— Eu era uma criança e fui obrigado a aprender a me defender de você. Você, meu pai! A pessoa que deveria me amar mais do que qualquer outra! — cuspiu-lhe as palavras e em todas elas, a dor. 

Quis gritar com ele, ordenar que o olhasse, que tivesse a coragem de encará-lo como antes fazia. Era mais fácil enfrentar um moleque adolescente, tremendo como uma vareta. Quão covarde era e continuava a ser, mesmo agora. 

— Quantas vezes tive de entrar na frente da minha mãe para tentar salvar ela de você. Ela era sua esposa, aquela que você fez votos jurando amar e cuidar. Mas todas as noites eu tinha de escutar seu choro de madrugada, desesperada por não saber mais o que fazer e com medo suficiente para não fazer nada. — o fôlego pareceu desaparecer, o que não era de admirar considerando como as palavras jorravam de sua boca. — Não há nada pior do que ver sua própria mãe sofrer e não conseguir fazer nada, porque a fonte de todo o mal é o seu próprio pai! 

O silêncio do velho só tornava tudo pior. Seu silêncio apesar de nulo, funcionava como o combustível que alimentava sua fúria. Tão forte que era, transformava a figura do velho em outras faces escondidas sob a mesma máscara. Quando sentiu os olhos arderem, piscou e deixou de ver só o pai. Viu um rosto borrado com um nome antigo, sem forma e desconfigurado, um rosto há muito esquecido. O rosto tomou outra forma, uma forma pálida, com cabelos escorridos e olhos azuis como o céu. Por um instante, seu pai também era Nicholas. 

— A pior parte é que sempre me questionei o porquê de ela continuar suportando você. Depois de tudo o que fez a ela, como podia ser capaz de ficar ao seu lado? — a figura continuava se moldar e transformar diante de seus olhos enevoados pela raiva. Ora August, ora Nicholas. E a imagem em sua mente também se tornava afetada. Era Adhira e também era Juno. — Eu demorei a perceber que ela sentia uma parcela de culpa. Uma culpa que não era dela. Achava precisar de você para fugir do fracasso que acreditava ser dela. Era mais fácil aceitar você a perder tudo. Consegue ver o quão destrutivo você é por fazer ela acreditar ser o problema? 

Pela primeira vez, o ser à sua frente se empertigou. As névoas que o rodeavam dissiparam, revelando ser um único homem. Um velho segurando um cigarro há muito consumido entre os dedos. O cansaço estampado no rosto, a pele murchava como as cinzas do tabaco se desfazendo contra o chão. 

— Os erros que cometi com sua mãe nunca vão deixar de existir. 

— Não foram erros — corrigiu-o com a garganta arranhando. — Foram abusos. 

August pendeu a cabeça toscamente, como se tivesse desistido de viver. Pareceu a Nirav tão frágil como um moribundo qualquer. 

— Talvez esteja certo e não haja mesmo perdão pelo que fiz. 

— E ainda assim, ela perdoou você, não é? — esboçou um riso de escárnio, recheado de ressentimento. — Olha para mim. 

Respirando fundo, Nirav se agachou ao seu lado. Manteve o rosto bem próximo do dele, sentindo seu cheiro. Cheiro de cigarros, anos e pecados. Ele o olhou com olhos de vidro, quase sem vida. 

— Alguma vez, mesmo que por um curto período de tempo, um dia que fosse... amou minha mãe de verdade? 

August não respondeu. Como o covarde que era, tornou a desviar os olhos. Nirav insistiu, sem ousar hesitar, sequer piscar: 

— Já amou a mim? 

— Sim. 

— Então por que me fez odiar você mais do que qualquer outra coisa? 

Não havia resposta para essa pergunta. 


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Notas finais do capítulo

E habemus daddy issues! E por que não, né? Se olhar direitinho, bem minucioso, todo mundo tem um pouco. Uma vez, conversando com uma amiga, lembro dela dizer: "Pai é quase sempre sinônimo de trauma. Quando você não tem um, você tem trauma por não ter. Mas se você tem, você também adquiri traumas."



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