O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 29
∾ Eu iria até o fim da linha, então eu voltaria. Eu sempre voltaria.


Notas iniciais do capítulo

Olá, mais uma vez!

É mimos que queremos? Pois mimos teremos!

Agora, o inverno começa a se despedir. As coisas ficam mais quentes, as pessoas mais próximas e sentimentos começam a ressurgir. Agora, parece faltar tão pouco.



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Era a noite que antecedia o início da despedida do inverno. O clima estava mais abafado, apenas uma brisa fria percorria, com menos frequência, entre as vielas da cidade acesa. Nas ruas, as pessoas já estavam mais animadas em sair de casa, colocar as cadeiras do lado de fora, conversar com os vizinhos, beber uma cerveja ou outra. No céu, as nuvens abriam espaço, revelando a lua nova que era rodeada pelas diversas estrelas. Pouco a pouco, o clima inóspito dava adeus e, no horizonte, espreitava a primavera.  

Juno olhou ao redor, contemplando a construção antiga que se erguia diante de sua vista, tornando-se cada vez mais oponente conforme se aproximava. Conhecia bem aquela construção. Cada tijolo antigo permanecia gravado em sua mente. Cada banco disposto entre a plataforma marcava uma parte de sua alma. Cada trilho brilhava como a nostalgia que a preenchia. E, entretanto, diante de seus olhos, a estação de trem que encontrava era, agora, uma visão tão definida quanto ambígua. Estava tão igual quanto diferente.  

Em sua mente, esperava reencontrar os tijolos quebradiços, os bancos abandonados, os trilhos opacos. Ainda estava presa no cenário fantasmagórico junto com as silhuetas desgastadas que sua memória insistia em não esquecer.  

Os dois fantasmas corriam em direção aos trilhos do trem, como dois jovens tolos sem saber o que os esperavam no fim da linha. Um permanecia na plataforma, passeando pelas pilastras, enquanto observava a outra, que tentava se equilibrar inutilmente sobre as linhas metálicas. E eles riram um para o outro, de um jeito furtivo, omitindo uma intenção já tão clara quanto o brilho do sol naquele longevo dia de verão.  

“Nunca duvide da memória de uma mulher”, teria dito o seu próprio fantasma. E, bem, não havia mentido. Lembrava-se de tudo, de forma tão concreta, a parecer que era tão recente quanto o dia anterior. E, talvez, nunca fosse se esquecer, de verdade. Tais memórias poderiam ficar velhas, desgastadas, até falhas, porém jamais deixariam de existir.  

Agora, entretanto, ao mesmo tempo, a estação já não era tão igual quanto antes. Os tijolos reformados, as cores renovadas, os quebrados consertados. Por dentro, tinha sido transformada em um grande bar com uma temática vintage um tanto saturada. Madeiras propositalmente envelhecidas junto com quadros incoerentes, espalhados por todas as paredes, sem um espaço para a vista descansar, tentando combinar com o piso quadriculado. Além das luzes coloridas, em rosa, verde e azul, piscando de acordo com o ritmo bate-estaca de músicas agitadas. Era mais uma bagunça generalizada, do que qualquer estilo arquitetado.  

Juno lamentou. Preferia aquele lugar com o vazio do abandono, o charme do efeito do tempo e a nostalgia do seu significado primário. Ou, talvez, só preferisse porque antes estivera ali junto de Nirav.  

De qualquer forma, estava feliz ao retornar ao local. Por mais diferente que pudesse estar, era o lugar de sempre e revivia todas as sensações. Como revisitar uma parte querida de sua alma, que algum dia jurou ter perdido para sempre. E era tão convidativo. As vozes que surgiam de dentro, mesclando junto com a música popular em língua estrangeira era um convite para o seu corpo. As luzes e o cheiro eram inebriantes, despertando diversas novas sensações por todo seu interior.  

Estava ansiosa, com um crescente agito em seu peito. Não só por retornar à velha estação. Principalmente, por estar indo de encontro aos amigos que tanto temeu perder. O que significava, além de tudo, também reencontrar Nirav. E, por mais que tentasse evitar, não conseguia mentir a ansiedade de revê-lo. Mesmo que apenas de longe, ainda que só por vê-lo.  

Ao seu lado, Louise parecia extasiada, com o riso fácil e palavras exageradas. Usava um vestido longo, de cor azul escura, com mangas mais curtas e decote mais revelador. Sua farta cabeleira ruiva brilhava, balançando sedosos em torno de seu rosto maquiado. Assim como ela, Juno também usava vestido, porém mais curto e estampado com girassóis em fundo preto. As madeixas presas pela metade pareciam combinar com o rosto limpo, onde apenas um batom avermelhado criava algum destaque.  

E tão bela quanto elas, estava Hester, a primeira pessoa a vir em suas direções. Usando um conjunto vermelho, seus cabelos encaracolados criavam um volume que enquadrava seu belo rosto. Apesar disso, sua expressão não parecia das mais agradáveis. Estava séria, até um tanto preocupada, quando as abordou:  

— Onde está Helena? — perguntou, antes de qualquer cumprimento.  

Louise balançou os ombros, meneando com a cabeça, sem saber o que responder. Estavam somente as duas desde que se encontraram, como tinha sido o combinado. De Helena, não tinham notícia alguma.  

— Achei que ela já estaria aqui.  

— E eu achei que ela estaria com vocês. — retrucou, respirando fundo.  

Juno, assim como Louise, sem saber onde poderia estar, não tinha muito o que dizer.  

— Já tentou ligar para ela? — sugeriu, embora fosse óbvio.  

— Não adianta, ela não me atende.  

E assim como a conversa começou, já havia acabado. E, quando deu por si, estava sozinha. Louise havia seguido Hester para longe, indo em direção a Theo, do outro lado do bar. E ali estava ela, sem o que fazer, sem alguém do lado.  

Não pôde deixar de sentir uma sensação de abandono. Sem Helena ali, parecia não ter mais ninguém. Como não sabia onde ela estava, permaneceu por si só, observando o grande salão e todas as outras pessoas presentes. Havia tantas delas, conhecidas ou não. E mesmo com tantas, sentia-se deslocada.  

 Logo, o medo de já não encaixar mais ali, entre seus antigos amigos, se tornava cada vez mais real. Quando olhava ao redor, procurando algum deles para se agarrar e não encontrava ninguém, percebia-se completa e totalmente sozinha. Então, era o suficiente para encontrar as armadilhas de sua mente, reproduzindo vozes distantes, que ainda feriam. Vozes que insistiam em dizer uma verdade dolorosa, que temia encarar.  

“O que me conforta... Você vai morrer sozinha...”, dizia a voz, bem no fundo de sua cabeça. Uma voz antiga, com um rosto velho e carcomido e um nome difícil de ser pronunciado.  

Assim, sozinha e deslocada, começou a caminhar pelo lugar. E, olhando ao redor, procurando alguém em que se agarrar, encontrou Nirav. Sem saber que o procurava, o encontrou. Uma outra vez, ali estava ela. E do outro lado, estava ele. Então, de repente, diante dele, já não se sentiu tão sozinha.  

Era o suficiente para silenciar o receio. Aos poucos, a voz tornou-se cada vez mais baixa, apesar de continuar ali, dissimulada. Talvez, o estivesse procurando desde o início. Embora soubesse que não deveria, não conseguia resistir. Não quando era ele, mesmo de tão longe, o suficiente para acalmar seu coração. E de certa forma, também agitá-lo.  

Como na noite em que o conheceu pela primeira vez, não foi mais capaz de desviar o olhar. Estava tão bonito de um jeito casual e despojado que era tão convidativo. Usava uma blusa branca com uma calça jeans bege e sapatos fechados. Seus cabelos estavam desordenados, pelas seguidas vezes que passava a mão pelos cachos. A barba parecia bem feita, aparada o suficiente para não ficar desgrenhada. Ele sentava-se de jeito confortável, as pernas mais abertas, a postura mais folgada. Em sua mão direita, uma garrafa de cerveja, indo de encontro aos lábios uma vez atrás da outra. A outra, que terminava de ajeitar os cachos, encontrava o caminho da coxa, tamborilando os dedos no ritmo da música.  

Poderia ser qualquer um. Na verdade, havia vários outros em posição semelhante, comportando-se de forma parecida. Poderia olhar para cada mesa e encontrar em todas um rapaz modesto, agindo tão naturalmente quanto ele. No entanto, nenhum deles era ele. E igual a ele, que tirava seu fôlego, que prendia seu olhar, que roubava sua atenção, só havia ele.  

E Nirav a olhava. Algumas pessoas conversavam ao seu lado, mas ele não prestava atenção. Os olhos continuavam presos ao seu, imutáveis, focados, quase sem piscar. E ele não o desviava, o sustentava de forma mais intensa, deixando-a sem fôlego, o coração acelerado, o estômago agitado e a garganta seca.   

O que era aquele olhar? Não sabia dizer se Nirav também tinha sua atenção vidrada a ela, como tinha a ele, ou se estaria apenas com o olhar viciado, encarando um fantasma do seu passado. Bem, não importava, pois ela poderia ficar sob a sombra daquele olhar por toda a noite, incapaz de desviar, dependente das sensações que causava em seu ser.  

Apenas quando Alice apareceu, abraçando-o por trás, envolvendo as mãos em seus ombros largos, Juno obrigou-se a desviar o olhar. Não sabia quanto tempo a troca de olhar durou, apesar de parecer tão pouco. Seu corpo adicto a ele, sentia necessidade de uma outra vez, só mais uma. Mesmo assim, lutou contra com todas suas forças, pois ainda se lembrava de todos os seus conflitos. E cada um deles a envolvia com pressão, mostrando a realidade. Pois quando cedeu à vontade de olhar de novo, encontrou os dois conversando, sorrindo um para o outro, entregando-se através do olhar, com as mãos envolvidas.  

Alice parecia tão serena, assim como ele, com um jeito tão pacífico e calmo, parecendo apenas a brisa em uma noite quente. Seu olhar suave derramava-se sobre ele, que retribuía. Conversavam de forma íntima, como dois amantes segredando algo divertido. E ele sorria, um sorriso largo e genuíno. Um sorriso que pertencia a Alice e apenas a ela. Alice, que estava no lugar que, talvez, nunca tivesse sido seu. Ao lado de Nirav. E não tinha o direito de interferir entre eles.  

— Finalmente!  

A voz veio de Theo, que atravessava o salão em direção a entrada, puxando toda a atenção para si. Com uma pequena garrafa de cerveja entre a mão erguida, ele caminhou até a pessoa que entrava e chamava-os até perto. Com os belos caracóis em torno de seu rosto delineado, usando um terno casual em listras amarelas e brancas, Juno não evitou o sorriso largo ao ver Helena cruzando a porta. E sem rodeios, não lutou contra a vontade de ir até ela.  

Antes que pudesse perceber, estavam todos ali, juntos. Como outrora estiveram, lado a lado, rindo e festejando. Juno olhou de Theo a Helena, Louise e Hester, Alice e Nirav. E manteve o sorriso. Assim estava bom, na verdade, estava ótimo.  

— Onde você estava? — Hester interrogou, com aspecto sério. — Estava ficando preocupada!  

— Peço perdão pelo meu atraso. Foi por um bom motivo. — com um riso alto e uma piscadela, Helena se desculpou.  

Então, estendeu a mão para trás, trazendo uma outra pessoa para o grupo. Uma mulher baixa, um tanto magricela, de pele pálida e salpicada de sardas. Os curtos cabelos arrepiados, com as laterais raspadas, eram da cor dourada. Seus olhos grandes eram de um azul brilhante, intensos. Já a boca pequena, fazia contraste com o nariz longo e, um pouco, adunco. Era tão bonita, esplêndida dentro de um macacão jeans sobre uma regata de seda preta, exibindo algumas tatuagens pelos braços.  

— Essa é Sarah. — anunciou, com os olhos brilhantes e sorriso bobo, entregando a surpresa antes mesmo de revelar. — Minha namorada!  

A surpresa tinha sido boa e a recepção ainda melhor. Hester, de todos ao redor, parecia a mais surpresa, com um sorriso grande e um olhar afiado. Cobrou da irmã a falta de cumplicidade, que fez todos rirem. E logo, cada um teve seu breve momento para ser apresentado à nova integrante. Era tímida, com poucas palavras desengonçadas nos lábios diante de tantos comentários. Talvez, nenhuma das duas esperava ser tão bem recebida, pois estava explícito o alívio quando se entreolharam, antes de um breve beijo.  

Por fim, Helena veio de encontro a Juno, abraçando-a com força. O suficiente para afugentar qualquer receio em se sentir sozinha, afinal Helena jamais permitiria.  

Não conseguia conter sua felicidade pela amiga. Na verdade, recordava-se bem de suas últimas conversas e a surpresa tornou-se mais especial. Apesar de um jeito implícito, já conhecia Sarah.  

— Ela é estonteante! — Juno comentou, boquiaberta ao observar Sarah conversar com Hester. — Ela mora em Florencia?  

Helena pareceu animada com a pergunta, abrindo um sorriso antes de responder:  

— Não, mora na cidade vizinha, mas tem família aqui. — respondeu, ajeitando a própria roupa. — Já nos encontramos algumas outras vezes lá e outras aqui.  

— E esteve todo esse tempo escondendo isso da gente? — Juno estreitou o olhar, arrancando um riso divertido de Helena.  

— Eu queria fazer uma surpresa. — ela deu de ombros.  

— E conseguiu! — sorriu, concordando. — Como a conheceu?  

— Ah, estávamos em um bar, numa comemoração e... — começou dizendo, até interromper a si própria com um riso nasal e abanar as mãos. — Quem eu quero enganar? Foi em um desses aplicativos de relacionamento!  

Juno abriu os lábios, dando um riso descrente.  

— Está brincando? É sério?  

— Sim! — ela se divertiu com sua reação. — No início, eu estava apenas me divertindo, mas fiquei surpreendida. Não é que funciona?!  

— Bom saber! Talvez eu precise testar!  

Helena arqueou as sobrancelhas, concordando. Ao redor, Sarah continuava sendo o centro das atenções, apesar de aparentar estar bem nervosa. Conversava com Nirav, que a fazia rir com algum comentário. Juno os admirou por um instante, sorrindo ao criar algum tipo de cenário falso. E Helena pareceu perceber.  

— E você, já conheceu alguém? — perguntou, observando-lhe com cuidado.  

Juno desviou o olhar com um suspiro. Com um balançar de ombros, pensou em cada um de seus colegas de trabalho, pensou em Elio. No entanto, quando pensava nele, não encontrava nada. Era só o Elio, seu colega de trabalho. Um homem desengonçado e divertido. Um amigo e apenas isso.  

— Conheci várias pessoas. Pessoas inteligentes, engraçadas, gentis e interessantes. — respondeu com um fio de voz, tendo o olhar preso no horizonte, retornando até a silhueta magra e alta que conversava, no centro do salão. — O problema é que nenhum deles era... ele. — com um simples e discreto gesto, apontou para Nirav.  

Helena balançou a cabeça, passando o olhar de um para o outro. Assistindo, analisando.  

— Ainda gosta dele, não é?  

Não precisaria responder, afinal sua amiga já sabia a resposta. E era tão óbvio. Tão óbvio que temia que pudesse ser percebido em um mero olhar, um pequeno gesto, solto no ar. O que isso não custaria?  

— Nunca deixei de gostar.  

Helena suspirou, medindo a sua reação. Talvez, não soubesse o que lhe dizer. Por isso, Juno sentiu-se uma tola. O que esperava que ela dissesse? Ou o que fizesse? Nada podia falar, sequer fazer. E não deveria tê-la envolvido dessa forma.  

— Você não tem vontade de voltar no tempo, na noite em que partiu e fazer as coisas diferentes? — perguntou, de repente, surpreendendo-a.  

— Eu nunca teria partido. — revelou, sem hesitar. Então, pensou na voz em sua cabeça, na imagem do homem, no nome de Nicholas. — Mas se eu tivesse ficado, teria sido tão pior.  

— Então, por que não explica isso a Nirav? — sugeriu, recebendo o olhar confuso de Juno.  

— Não sei se é o certo a se fazer.  

Helena franziu o cenho, sem entender. E como poderia? Com Helena era fácil, ela estava disposta a entender o seu lado, a permanecer ao seu lado. Já não podia dizer o mesmo em relação aos outros. Não quando sequer se sentia inserida em suas vidas. Não podia pedir que entendessem.  

— Do que tem tanto medo? — ela perguntou, fixando o olhar no seu, tentando procurar alguma resposta que não viria à tona.  

Tinha medo de tantas coisas. De não ser ouvida, de não ser acreditada. Além de tudo, tinha medo de ainda ser vista como uma mulher traiçoeira. Aquela que usou e abandonou Nirav. A mesma que poderia fazer tudo de novo.  

Não diria a Helena, sabia a objeção que daria. Não, ninguém diria algo assim em voz alta. Eram educados demais para isso. Entretanto, quando observava cada olhar, via a narrativa escancarada. E, bem, quem podia culpá-los?  

Percebendo seu pesado silêncio, Helena encostou em seu corpo, puxando sua atenção mais uma vez. Elas se entreolharam, por um instante.  

— Vocês dois merecem isso. E é só o que ele quer. — assim dito, acenou com a cabeça em direção ao centro do bar, antes de se afastar. — Você sabe o que ele quer.  

Nirav estava lá, observando-a de longe. Como também fazia, mantendo-se distante o suficiente, de um jeito seguro. Era a única forma de tê-lo sem perdê-lo.  

Só precisava cruzar o salão, atravessar todas as pessoas. Conseguia se imaginar fazendo isso, trombando nos corpos que dançavam, empurrando-os para que pudessem abrir seu caminho até ele. E então, quando chegasse lá, o que diria? Quando percebeu sua boca vazia de palavras, sentiu-se um verdadeiro fracasso. Era a sua história, a sua própria sobrevivência. Era a verdade. E estava torturando-a por tanto tempo. Por que não conseguia dizê-la em voz alta? Por que parecia tão difícil? Por que tinha tanto medo?   

“Porque você é incompetente o suficiente”, respondeu a voz de Nicholas. 

Então, olhava ao redor, procurando ir até Sarah e Helena, só para estar entre elas. Queria tanto escutá-las conversando e cantando enquanto dançavam pelo bar, enchendo o recinto de risadas e diversão. E simplesmente não conseguia. Por algum motivo, todos seus amigos pareciam tão distantes, fora de seu alcance. E assim, a voz persistia.

Com um suspiro de derrota, já não aguentava mais ficar sob seus olhares. E, como a covarde que era, continuou a fugir. Enquanto todos pareciam seguir suas vidas, ela só parecia regredir. Ao seu redor, seus amigos dançavam, conversavam e riam. Já ela, continuava com os passos para longe, evitando o contato, afastando-se cada vez mais, até ficar sozinha. Assim como Nicholas garantiu que ficaria.  

Aos poucos, a música foi deixada para trás. As vozes se tornaram distantes. As luzes abandonaram seu olhar. Quando percebeu, estava encarando o céu estrelado, sentindo o vento noturno e o clima abafado. Estava na antiga plataforma.   

Ao contrário do resto, tudo ali parecia permanecer igual a antes. Os bancos eram antigos e desgastados, dispostos ao longo da extensão velha e abandonada, com suas pilastras resistentes. E, bem à frente, estavam os trilhos, ofuscados pelos cascalhos, enferrujados e esquecidos.  

Sentada em um dos bancos, fechou os olhos. O vento balançou seus cabelos, acariciando seu rosto. O silêncio a consumiu, pouco a pouco. Então, foi capaz de escutar um ruído longínquo, quase perdido. Perto dali o rio ainda corria, atravessando a cidade de uma a ponta a outra. O mesmo rio que despencava de uma cachoeira, escondida entre a vegetação selvagem e a estrada de chão.  

O som tornava-se ainda mais alto em seus ouvidos, transformando-se em uma correnteza constante. Dentro dela, havia o som de risadas e brincadeiras. E tais sons se mesclavam, tornando-se em algo maior. Uma cena tão clara e tão vívida.  

Cachos molhados escorregavam por sua pele, arrepiando-a. Uma barba fria roçava em seu pescoço, fazendo cócegas que resultavam em seu grande sorriso. Mãos eufóricas tocavam seu corpo, deliciando-se em cada curva, em cada parte. Gotas de suor e água se misturavam, pingando em seu tronco, escorrendo por seus seios. E um par de olhos, tão escuros quanto a noite, admiravam seu rosto, contemplando cada detalhe. E, apesar de ambos estarem tão frios por conta da água, o olhar era tão quente, que a aquecia da cabeça aos pés.  

Um suspiro escapou de seus lábios e Juno soube que estava presa em sua própria imaginação. Não havia cachoeira alguma. Os risos, os beijos, os toques... Nada disso existia mais, presos há setes anos atrás. Deles, só restaram as lembranças. Quando abrisse os olhos, sabia que não haveria nada.  

No entanto, estava enganada. Para a sua surpresa, um barulho de passos se aproximava cada vez mais. Pouco a pouco, a presença se tornando mais íntima. Não precisou virar para saber quem era. Seu coração acelerado já anunciava a chegada de Nirav.  

Em silêncio, ele se sentou ao seu lado. Apenas um palmo os distanciava. Sua mão, apoiada na madeira velha, parecia quase encostar na dele. Se esticasse o dedo mindinho, seria capaz de tocá-lo. Saber disso fez seu coração descompassar. Ele estava tão perto, como há muito tempo não estava.  

Por que ele estava ali? O que o trouxe até ela? Quando pensou estar em total solidão, percebeu que ele estava ali. E o que isso significava? Talvez, devesse significar algo. Ou seria uma parte sua insistindo em procurar uma razão para continuar acreditando?  

— Eu sinto muito. — disse, simplesmente.  

Dentro de si, uma repentina coragem. Sentiu que, talvez, pudesse ser capaz de contar a verdade. Não sabia como diria ou o que diria, mas sentia-se quase disposta a dizer.  

— Pelo que? — ele perguntou, esperando ansioso.  

Não se olhavam. Havia algo que os impedia de olhar um para o outro. Não sabia dizer se era a grande distância dos anos ou a pouca distância física. Por algum motivo, sentiam que não deveriam se olhar. Porém, foi ele a quebrar esse implícito juramento. Diante do silêncio, Nirav olhou para Juno.  

Novamente, sua boca estava vazia de palavras enquanto sua mente era um turbilhão de pensamentos. Então, tudo o que ofereceu a ele foi outro olhar. E gostaria que ele pudesse entender só de olhá-la. Queria dizer a ele, queria tanto.  

— Lembra-se daquele vagão de trem? Quando me perguntou até onde eu iria? — sua voz era baixa, incerta, trêmula. Ainda assim, ele continuava a olhar em seus olhos, sem desviar. — Eu realmente fui até o fim da linha. Eu fui até não ter mais onde ir. Então, eu voltei. Porque eu sempre voltaria.  

Percebeu uma leve alteração rodeá-lo. De repente, os lábios ocultos por trás da barba estavam entreabertos. Seu peitoral subia e descia com mais frequência. E seus olhos estavam perdidos, mas estavam quentes. Escuros como a noite e quentes o suficiente para aquecer todo seu ser.  

— Então, por que ainda parece tão distante?  

Diante de uma pergunta, sentiu ter tantas respostas. E, nesse instante, sentiu-se capaz de contar a verdade, abrir a ferida, expor a cicatriz.  

No entanto, assim que o momento surgiu, o momento desapareceu. Bem diante dos seus olhos, mostrando o seu fracasso em tentar prolongá-lo. Por trás de Nirav, uma pessoa surgiu. Vestida com um curto vestido branco, com os longos cabelos tingidos a rodear sua magra e alta silhueta, Alice encostou as mãos nos ombros dele, curvando-se até poder dizer algo em seu ouvido.  

Elas se olharam, brevemente. Alice sorriu, cumprimentando-a com um aceno de cabeça, que foi retribuído às pressas do desespero. Então, sem mais conversas, Nirav se levantou. Não disse nada, apenas seguiu a mulher, segurando em sua mão. Juno os acompanhou com o olhar por um tempo, até perceber que ela havia o chamado para dançar.  

No início, pareceu uma cena difícil demais para ela. Depois, não conseguia desviar mais o olhar. De longe, acompanhava os dois corpos próximos, dançando entre todos os outros casais, como se fosse o único em destaque. Apesar da relutância dele em dançar, o fazia tão bem. E era tão bonito ao fazê-lo.  

As mãos deslizavam por toda a pele dela, pelas costas até os braços e, por fim, os pulsos. Conduzindo seu corpo fino com uma tremenda facilidade, fazendo-a quase flutuar no salão. Entre seus braços, ela parecia tão bela, como se encaixasse perfeitamente. E entre seus braços, onde esteve uma vez, gostaria tanto de estar outra vez. Gostaria de estar e, então, ficar.  

Era difícil não se imaginar no lugar de Alice, por mais errado que pudesse ser. Só não conseguia evitar. Afinal, as suas fantasias eram a única coisa que ainda tinha de Nirav.  

Estaria com os braços em torno do pescoço dele, sentindo o calor dos corpos em contato. Ele estaria sorrindo, com os cachos coroando sua testa úmida de suor. Os olhares estariam conectados, quase incapazes de piscar, concentrados um no outro. A barba dele roçaria em seu rosto, arrepiando toda a extensão de sua pele. E ela diria tudo a ele. Cada detalhe, cada verdade, cada sentimento.   

No entanto, não era ela lá, entre os braços dele, dançando junto com seu corpo, beijando seus lábios. Não era ela, não seria ela. Então, de nada adiantava idealizar.  

E agora, queria fugir, porque não podia ficar. Não conseguia superar seus desejos, seus próprios sentimentos, cujo quais não deveriam mais existir. O homem que dançava com a namorada já nada tinha a ver com esses. Insistir era só reafirmar o passado. E o passado já não podia ser recriado.  

Com passos acelerados, atravessou o salão em direção aos dois. E quando chegou até eles, continuou andando. Não parou e não olhou para trás.  Apesar disso, de alguma forma, sentiu o olhar de Nirav a acompanhar para fora do recinto. Ele não a chamou, não veio atrás. Não deveria mesmo fazer isso, então por que desejou tanto que o fizesse?  


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Notas finais do capítulo

Bem, aparentemente, tudo está bem entre Nirav e Alice. O que significa que uma parte já está ajustada, agora a que falta... depende de Juno. E ela está quase, tão perto.

Não vejo a hora de ver os dois se entendendo, finalmente. Dessa vez, faltou tão pouco. ♥



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