O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 13
∾ E parece não haver mais ninguém, além de si mesmo, para culpar.


Notas iniciais do capítulo

Bem, primeira, olá!

Em segundo, gostaria de avisar que o conteúdo a seguir pode ser sensível à algumas pessoas.

Em terceiro, foi o capítulo mais difícil para mim. Eu tive que remexer em memórias para dar autenticidade aos acontecimentos e, por mais que seja uma boa terapia expressar tais coisas na escrita, nunca é fácil relembrar algumas coisas. Quando percebi que a história estava rumando para esse ponto, eu me preparei para esse capítulo, mas ainda não pareceu suficiente para encarar alguns monstros do passado.

Enfim, prometo que a dor e o sofrimento não se estende além daqui. O que vem por aí é esperançoso. Afinal, não estamos aqui como observadores sádicos dos abusos alheios.



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Havia um ar gelado, um tanto imóvel, por toda a cidade de Florencia. Não vento, não como nos dias anteriores, só frio. Ainda assim, era uma noite agradável. O céu estava limpo, sem nenhuma nuvem para esconder a lua minguante rodeada de todo tipo de estrelas, umas mais brilhantes do que outras. 

A cidade estava viva, mesmo com o frio ostensivo. As luzes estavam acesas a todo o redor, desde os postes até as casas brilhavam em seus focos de luz, trazendo um ar aconchegante para as ruas úmidas da garoa anterior. Pessoas andavam de um lado para o outro, acompanhadas e também sozinhas. Todas enroladas em capotes mais grossos, roupas mais quentes, até mesmo cachecóis. O burburinho das conversas misturado com o som úmido dos sapatos na rua molhada era reconfortante. 

Juno olhou ao redor, contemplando a vista simples, porém, bela. Seus olhos acompanharam das pessoas caminhando até o céu noturno, admirando a lua. Respirou fundo, sentindo o ar fresco e gelado. Por um instante, sentiu os dedos de Nicholas brincando com os seus, como sempre fazia quando estavam de mãos dadas. Havia uma certa e limitada sensação de paz. 

— Estamos bem? — o namorado perguntou, antes de pousar os lábios em seus cabelos presos, beijando-os com ternura. 

De certa forma, estavam bem, Juno não precisava responder. Tinham feito as pazes. Ou melhor, Nicholas havia pedido desculpas pelo tom usado na discussão anterior, desculpando-se até pelo modo como falou de seus amigos. Percebeu o quão injusto e rude estava sendo com ela, que desistiu da insistência de ir embora. Nicholas resolveu ficar, por Juno. E ela não estava só grata, também aliviada. 

No entanto, ainda sentia uma certa inquietação crescendo. Era silenciosa e latente, aumentando aos poucos, invadindo o espaço de seus pensamentos. Não sabia dizer bem o porquê, mas desconfiava se tratar de onde estavam indo. Uma festa, na casa de Louise. 

Há alguns dias que Juno vinha declinando convites de suas amigas para se encontrarem. Cada vez era uma desculpa diferente, embora todas elas tivessem um fundo de verdade. Ainda assim, a verdade por trás do distanciamento permanecia escondida, um segredo longe das outras vistas. Porém, dessa vez, Lou havia insistido e Juno não teve coragem de negar. Até mesmo Nicholas pareceu animado em ir. 

— Você está bonita hoje. — elogiou, caminhando ao lado dela, admirando-a. 

Era uma reunião social com os amigos, sem necessidade de formalidade. Juno usava apenas um macacão simples e escuro, com os braços cobertos por uma jaqueta jeans. Já Nicholas usava uma camisa clara de abotoar, coberta por um casaco mais grosso em tom queimado, junto com calça escura. 

— Está animada? — ele a puxou para atravessarem a rua depressa. Estavam a um quarteirão da casa da amiga e já conseguiam escutar a música animada que tocava lá. — Quero dançar com você hoje. 

Juno passou o olhar por ele, ponderando suas palavras. Estava realmente animado, ou só estava tentando compensar de alguma forma? 

— Já faz um bom tempo desde que saímos para dançar. — ela respondeu, tornando a visão para frente. 

Tentava soar tão animada quanto ele parecia estar. Porém, cada vez mais que se aproximavam da casa, a inquietação crescia mais e mais dentro de Juno, ensurdecendo-a um pouco a cada passo. 

Apesar de óbvio, ela não sabia o que esperar. Não conseguia antecipar nada, além do seu despreparo para lidar com a situação. No fundo, não queria ter que encarar o que estava por vir. Sabia que iria doer, só não sabia se conseguiria suportar.  

Por todos aqueles dias tentou esquecer tudo o que aconteceu, tentando focar apenas no que tinha ao seu lado, obrigando-se a fazer dar certo. Afinal, era o que precisava fazer, apesar de covarde, conseguiria seguir em frente. Ou, pelo menos, foi o que havia convencido a si mesma. Agora, já não tinha tanta certeza.  

Foi quando seus olhos encontraram a silhueta de Louise, vestida em um belo macacão claro, com os cabelos esvoaçantes, que teve a impressão de estrangulamento. O ar pareceu insuficiente, embora fosse abundante. Teve de apertar a mão de Nicholas e torcer para que ele não notasse a sua instabilidade. 

E mesmo com sua cabeça tornando-se um tumulto de pensamentos que falhou em esconder, ela manteve vestido o sorriso mais caloroso que pôde quando chegou ao portão da casa e viu a amiga pela primeira vez depois de tudo, porque era o que precisava fazer. 

Não podia fingir que não doía. Ver Louise era lembrar de tudo e, portanto, encarar as próprias feridas. Não conseguia apagar a memória da foto, assim como não era capaz de relevar o que havia acontecido entre Louise e Nirav. Entretanto, tudo o que podia fazer era engolir sua própria dor. 

No momento em que recebeu o abraço da amiga, Juno começou a notar seu próprio fracasso em tentar negar seus sentimentos. 

— Nossa, você sumiu! — Louise comentou em tom de reprovação, entregando a saudade que sentia. 

Juno sentiu-se culpada. Como antes, a culpa derramou-se por seu ser, inundado cada parte sua e reivindicando cada sentimento. 

O que deveria dizer? Estava evitando-a por ter beijado o homem que Juno não podia ter? Por que estava com inveja, remoendo ciúmes infantil de uma relação fadada ao fracasso? Não podia dizer nada disso. Prezava demais pela amizade que havia construído com Louise para tratá-la dessa forma. Então, apenas disse: 

— Desculpe. — e foi tudo o que conseguiu dizer, mas se Louise pudesse decifrá-la, saberia que em tais desculpas havia muito mais do que parecia. Havia desculpas por ter escondido a verdade. Desculpas por ter ficado com raiva dela, mesmo sem merecer. Desculpas por desejar o mesmo rapaz que ela. 

E, no entanto, Lou não pareceu enxergar nada além do que seu sorriso comum. Recebeu-a como sempre, tão animada e espontânea. Na verdade, já parecia um pouco alterada pelas bebidas ingeridas, o que a deixava ainda mais extrovertida. 

Tentando deixar o peso dos seus pecados para trás, Juno respirou fundo, acompanhando seu namorado. A festa estava animada, mesmo no jardim várias pessoas se reuniam para beber, conversar e até fumar. Imaginava que dentro da casa haveria a maior concentração de movimento. 

Não era a primeira vez que visitava a casa de Louise, mesmo assim sempre ficava admirada. O jardim bem cuidado, apesar de não tão grande, era seu lugar favorito. Havia ali uma árvore grande, com a copa espaçosa que se estendia por todo o lugar. Por toda ela havia pequenas luzes espelhadas, iluminando-a inteira, desde o grosso tronco até as folhas mais distantes. 

A casa em si não era menos adorável. Com a varanda circundando ao redor, de frente até atrás, não era tão grande quanto parecia. O tom externo rubro das paredes em contraste com as janelas e portas brancas era agradável. Por dentro, dividia-se em uma sala espaçosa, cercada por dois quartos, uma cozinha e um banheiro. Era uma casa comum, porém, um bom lugar que Juno imaginava ser para se viver todos os dias. 

Como havia imaginado, a casa estava bem cheia de pessoas, que dançavam e brincavam, bebiam e conversavam, riam e cantavam. Pessoas que Juno conhecia apenas de vistas e outras que nunca tinha visto antes. Mais pessoas do que imaginava. Pessoas o suficiente para conseguir abafar o ruído em seus pensamentos. E, no meio de todas aquelas pessoas, estava a única que parecia se destacar. A única que os olhos de Juno pareciam procurar até encontrar. A fonte da sua inquietação. 

Do outro lado da sala, conversando despojadamente, estava um rapaz de pele marrom e cabelos encaracolados. Era alto e magro. Tinha uma barba espessa. E um sorriso contagiante. Do outro lado da sala, vestindo kurta indiana de cor amarela com uma calça branca dobrada nos calcanhares, estava Nirav. 

Foi inevitável um pequeno sorriso surgir nos lábios de Juno ao notar a presença dele. Por mais que se esforçasse para evitar, era involuntário. Era só como seu corpo reagia. Mesmo que já não pudesse restar mais nada entre eles, não conseguia impedir os impulsos aos quais seu corpo se acostumou. 

Ao seu lado, Nicholas começava a conversar com Theo, que vinha ao encontro do casal, alheio a qualquer reação de Juno. Hester também se aproximava, segurando dois copos na mão. Estavam tão belos. Ela com os cabelos soltos ao natural, usando uma blusa rosa de gola alta e jeans claro acima da cintura. E ele com um sobretudo marrom, por cima de uma blusa verde e calça branca. 

— Nossa, como é bom ver você! — Hester disse, abraçando-a com força e com cuidado pelos copos que trazia na mão. — Já encontrou com Lou, por aí? 

— Sim, ela já está bem alterada, não é? — brincou, observando Hester revirar os olhos. — Onde está Helena? 

Hester fez um gesto com a mão, apontando para as pessoas que dançavam. 

— Por aí, você sabe, rebolando... 

Juno sorriu, olhando ao redor em busca da amiga quando seus olhos viciados reencontraram Nirav. Dessa vez, Louise estava ao seu lado, ficando na ponta dos pés para conseguir falar algo em seu ouvido. Ele riu ao escutar o que tinha para falar. Juno não sabia dizer se estavam tão íntimos ou se sempre foram assim por, afinal, serem amigos. De qualquer forma, a pontada de inveja cutucou desagradável. 

Ela suspirou, sem conseguir desviar a atenção. Seus olhos continuavam a pairar sobre eles até que, em um instante, foi capturado por Nirav. Até então, ele não parecia tê-la notado ali. Ele não pareceu esboçar reação alguma, apenas sustentou o olhar ao ajeitar os cabelos. Havia tanto espaço entre eles agora, como se tivessem separados por um oceano inteiro. Uma distância palpável, excruciante. 

E ainda assim, Juno sentiu-se como na primeira vez que o viu. Por um momento, foi capaz de retornar a fatídica noite em que o conheceu e acabou percebendo que o sentimento permanecia intacto, apesar de tudo.  

Através da sala espaçosa, através de todas as pessoas, eles mantiveram os olhares conectados. Havia tanta coisa implícita em seus olhos, que o peso pareceu desproporcional a ponto de o contato ser rompido. Nirav abaixou a cabeça, interrompendo o breve momento que aproveitaram. Já Juno não conseguiu evitar o impulso de ir até ele. 

— Aonde vai? — Nicholas a segurou a mão que tinha atrelada a sua, puxando-a de volta, não só para perto dele, também para a realidade. 

Um olhar, apenas um olhar, foi o suficiente para fazê-la esquecer da mão que a segurava. E, mais uma vez, Juno notava seu fracasso em tentar extinguir seus sentimentos. 

— Eu vou buscar algo para beber. — respondeu com as primeiras palavras que vieram à sua mente. — Você quer? 

Ele recusou, mas deixou-a ir soltando sua mão. Juno não esperou um segundo a mais. 

Sabia que não era justo. Tudo estava se ajeitando, encontrando uma saída sem grandes danos. E mesmo assim, ela ainda insistia em ir até Nirav, pois não conseguia evitar, era mais forte do que ela. 

Entretanto, ele já não estava mais no mesmo lugar de antes. Enquanto ela se deslocava através da sala, ele desaparecia do seu alcance. Olhou ao redor, sentindo-se um tanto perdida ao tentar encontrá-lo. A casa pareceu imensa nesse instante. Talvez fosse um sinal, que ela ignorou e não desistiu até encontrar o pequeno vislumbre da sua silhueta. 

Como se estivesse fazendo um jogo com ela, Nirav deixou-se ser visto para voltar a escapar. Juno poderia ter dado risada, se não temesse o verdadeiro significado da fuga. Talvez, ele também estivesse tentando manter as coisas do jeito que estavam, se esforçando para fugir da bagunça caótica que Juno havia criado. 

Os desencontros tiveram fim na varanda traseira, onde encontraram-se entre algumas poucas pessoas conversavam. Juno percebeu a inquietação crescer em seu peito, onde seu coração disparava descompensado. Ele ainda estava longe, mas parecia esperar por ela, parado próximo ao balaústre que cercava a varanda. Então, se aproximou, respirando fundo. 

— Ei. 

Por um momento, Nirav se manteve em silêncio, torturando Juno com a lacuna de suas palavras. Ela o observou desviar o rosto, procurando qualquer outro ponto para encara que não fosse a mulher a sua frente. 

Não demorou para que ela reconsiderasse a ideia de se aproximar, temendo estar importunando-o com sua insistência. 

— Desculpe por ter discutido com Nicholas. — ele declarou, de repente. 

Foi pega de surpresa. E notou que ele a fitava com um jeito incerto, que tenta resistir a vontade de olhar. 

— Nirav... 

— E por beijado você. — dessa vez, ele a olhou diretamente. 

— Não! — a palavra escapou de sua boca com urgência. — Sou eu quem deveria pedir desculpas. Por tudo o que fiz, tudo o que disse... Eu nos coloquei na pior situação possível. 

Juno abaixou a cabeça, incapaz de encará-lo mais. Sentia-se tão envergonhada quanto covarde. E, mais uma vez, incompetente para fazer o que era certo. 

— Bem, nós dois sabíamos o que podia acontecer. — ele suspirou, apoiando os cotovelos sobre o parapeito. — Você estava certa. Foi um erro, não deveria ter acontecido. 

Aquelas palavras significavam o ponto final. O que havia entre eles havia encontrado seu fim. Deveria ser o suficiente para seguirem em frente. Então, por que não se sentia satisfeita? 

— Eu sei... — comprimindo os lábios, ela tornou a contemplá-lo, agora de costas. — Eu sinto muito. 

— Eu também sinto. 

— Seria muito te pedir para não deixar isso ficar entre nós? — ela pediu com a voz quase sussurrada, suplicando quase em silêncio. — Não deixar que isso nos afaste mais do que já afastou... 

— Está tudo bem. Não se preocupe. — sua resposta não pareceu tão precisa, porém o suficiente. 

Houve um breve momento de silêncio. Ambos permaneceram lado a lado, sem nada falar, apenas fitando o céu noturno enquanto escutavam a música aumentar de volume dentro da casa. E ainda que ele garantisse que tudo estava bem, ainda havia algo entre eles. Algo que ainda parecia, ao mesmo tempo, tentar aproximar e afastar. 

— Então, você e Louise... — Juno começou, já se arrependendo logo que ouviu o suspiro dele. — É algo sério? 

Ele virou o rosto em sua direção um instante, depois tornando a fitar o céu. Apenas balançou a cabeça de modo negativo. 

— Não. — ele deu um riso nasal desconfortável. — Não foi nada demais, mas talvez eu tenha que conversar com ela depois. Não quero que ela se magoe, e deixe de ser minha amiga. 

— Entendo. — contorceu os lábios, sem saber muito o que dizer ou o que fazer. Ele ainda estava do seu lado, deveria aproveitar a oportunidade enquanto ainda a tinha. — E sua mãe? 

— Vai conseguir vir para minha formatura, apesar de tudo. 

Juno sorriu, lembrando-se desse detalhe. 

— E quando vai ser? 

— Nas próximas semanas. — ele ajeitou os cabelos, já se afastando do parapeito. — Depois estou pensando em voltar com minha mãe e visitar meu avô. Já faz um tempo que não o vejo. 

Significava mais distância entre eles e isso assustava Juno. Continuariam se afastando, independente de respostas otimistas com garantias vazias, tanto dele quanto dela própria, até não haver mais nada. E então, quando ela tivesse de retornar para casa, Nirav seria apenas um fantasma no fundo de sua mente. 

—  Que bom. — ela sorriu, sentindo os lábios tremerem. — Fico feliz por você. 

Nirav apenas anuiu, começando a se afastar, pouco a pouco, reafirmando os terrores internos ao deixá-la sozinha. Juno fechou os olhos, sentindo como se estivesse perdendo uma parte sua ao tê-lo partindo. 

De alguma forma, não conseguia aceitar um fim tão pessimista. Parecia injusto ignorar toda uma relação por conta de um erro. A verdade é que eram muito mais do que meros amantes, antes de tudo foram amigos. Encontraram-se um no outro de um jeito tão íntimo que, por vezes, nem uma relação amorosa conseguia ser. Entregaram um ao outro seus desejos e segredos, medos e prazeres. Entregaram muito mais do que o pecado de uma traição. 

Todas as conversas, brincadeiras e até mesmo danças. Cada momento compartilhado e cada olhar trocado. Tudo o que tiveram deveria significar mais do que um equívoco. Não deveria terminar ali, assim, resumido a um erro. 

— Nirav. — desesperada, chamou-o de volta. Seu coração estava acelerado, como se estivesse à beira de um precipício prestes a pular. 

Ele parou, diante da porta, preste a retornar para a festa. Ali, parado, deu a ela um olhar esperançoso, como se estivesse esperando por esse pedido desde o início. 

— Você ainda é um dos meus melhores amigos. — Juno insistiu, controlando a vontade de chorar. 

Nirav apenas sorriu. Um sorriso pequeno, apenas com os lábios, que quase se perdia na barba. E deixou-a na varanda, sozinha, com a inquietação corroendo seu cerne. Percebeu que, sim, estivera à beira do precipício, sem coragem de pular, apenas rodopiou por ele, contemplando a queda. 

Diante do seu próprio fracasso, decidiu retornar ao ponto inicial, para a pessoa que deixou esperando com uma desculpa qualquer. Portanto, teve, pelo menos, o capricho de alcançar a cozinha para surrupiar uma cerveja antes de encontrar Nicholas. 

A festa estava agitada. Se antes era apenas um tumulto de pessoas transitando e conversando, agora a música alta puxava a maior parte para o centro da sala para dançar. Juno reconheceu suas amigas com os demais, desejando estar entre elas o mais rápido possível. Apesar de não se sentir tão animada, pensou que dançar pudesse dissipar a angústia antes que fosse consumida. 

Encontrou Nicholas no mesmo lugar de antes, encostado na parede, sem se enturmar com ninguém. Uma visão quase deplorável, de um sujeito mais velho que não se encaixava no seu mundo. 

— Você demorou. — ele reclamou quando se aproximou, embora sequer tenha prestado a se olhar para ela. 

— Desculpe. Eu parei para conversar com algumas pessoas. — ela tomou um gole da cerveja, sem muita vontade. O gosto amargou em sua boca. 

— É, imagino. 

Juno o fitou, percebendo algo diferente em seu comportamento. Para alguém que estava animado há alguns minutos, seu semblante entregava o oposto, uma insatisfação quase gritante. Não conseguia esconder o desconforto que, em um primeiro momento, Juno não entendeu até observar a sala mais uma vez e notar a figura encostada na parede contrária, bebendo uma cerveja. 

Não importava se tivessem feito as pazes. A briga poderia ter ficado para trás, esquecida, apagada nos pedidos desculpas. No entanto, o motivo da briga não deixaria de existir. E Nirav estava bem ali, do lado oposto da sala, diante dos olhos incomodados de Nicholas. 

Tentando amenizar a situação, Juno se aproximou do namorado, encostando o corpo no dele. Não podia julgá-lo por sentir ciúmes, mesmo que não soubesse da verdade. Se ele soubesse da verdade, então... 

— Quer dançar? — perguntou, calando os próprios pensamentos com a voz. 

— Não. — respondeu, curto e grosso, sem sequer olhá-la. 

A hostilidade do comportamento de Nicholas começou a despertar irritação em Juno, que estava se esforçando para compensá-lo, mostrando que estava ali com ele e por ele. 

— Você disse que queria dançar comigo hoje à noite. — insistiu. 

— Eu perdi a vontade. — ele a encarou, como se a alertasse que estava perturbando com o assunto. — Não quero dançar, Juno. 

Ela o encarou de volta, observando o semblante emburrado. Sua irritação falou mais alto naquele momento quando, ao bufar, tomou um gole generoso da cerveja. 

— Bem, eu quero dançar. — disse com firmeza, demonstrando a indignação em sua voz. — Eu vou dançar. 

— Se é o que você quer. 

— Certo. — balançou a cabeça, afastando-se em direção as pessoas que dançavam no centro da sala e abandonando a cerveja em qualquer lugar aleatório. 

No momento em que o deixou, arrependeu-se de imediato por tê-lo desafiado. Ele não tinha culpa se ela era a errada, tentando compensar todos pelos seus pecados e ainda assim, falhando miseravelmente. Mesmo assim, Juno não recuou, seguiu em frente, principalmente por Helena vir em sua direção com o sorriso mais precioso e radiante, envolvendo os braços em torno de seu tronco. 

— Olá, sumida! — brincou, exibindo uma certa embriaguez, que fez Juno rir. 

Permitiu-se ser levada até o centro da sala, acolhida pelo calor humano das pessoas que dançavam ao redor, trombando umas nas outras ao embalar o corpo ao ritmo da música, que agora dava lugar para uma menos agitada, porém não menos dançante. 

De mãos dadas a Helena, Juno rodopiou pela sala, sendo conduzida pela amiga. Risadas escaparam de sua boca, fazendo-a esquecer, por um momento, qualquer preocupação que nublava sua mente. Ao ouvir também as risadas de Helena, conseguiu relaxar, se deixando levar. 

A música envolvia as duas garotas que dançavam juntas, divertindo-se com risadinhas infantis. Juno agora conduzia a dança, rodopiando Helena em seus braços, fazendo-a esbarrar em outras pessoas e rir pelos acidentes. E ela estava tão bela quanto, provavelmente, estava bêbada. Suas longas tranças dançavam junto com seu corpo, se enroscando no vestido vermelho e de mangas longas. Juno percebeu que sorria, já entregue ao momento, ao admirar a amiga que se divertia com seus passos de danças. 

Nesse momento, deixou–se apreciar a sala, observando cada detalhe. Toda a energia ao som de música e risadas era tudo o que parecia importar para Juno. Sentia-se parte daquele lugar, como se conhecesse todas as pessoas desde sempre, mesmo até as que nunca vira antes. Gostava de contemplar toda a história que havia ao seu redor, as desconhecidas, as explícitas e até as segredadas. Como um todo, sentia-se pertencer àquelas pessoas, àquela cidade. Sentia-se em casa. 

 Seus olhos atentaram-se, agora, às partes importantes do seu lar. Hester estava abraçada ao namorado, Theo, que bebia cerveja e balançava o corpo sem compromisso. Louise acabava de se aproximar, dançando junto com Helena, exibindo seus belos cabelos ruivos. E, vindo do canto da sala, com o olhar fixo a admirá-la, Nirav. 

Conforme caminhava em sua direção, tudo pareceu ficar em segundo plano, acontecendo em uma realidade um tanto distante. Apenas o olhar que a seguia parecia existir. Nirav sorriu. Nesse momento, Juno soube que tudo estava bem entre eles. 

Ele não precisou pedir, pois sabia que ela aceitaria. Apenas segurou sua mão esquerda, puxando-a para dançar. E nada mais pareceu importar. Somente os movimentos que o corpo dele fazia ao conduzir o seu. Só os braços que contornavam seu tronco, empurrando para longe e puxando para perto. Apenas as mãos entrelaçadas nas suas, com os dedos a brincar com os seus. 

Juno fechou os olhos, aproveitando o momento e ao se deixar ser levada pelos toques de Nirav. E, apesar de não querer perdê-lo de vista, tinha-o gravado em sua memória como um retrato. Conseguia ver os cachos de seus cabelos oscilando com os movimentos do corpo, derramando-se sobre seus olhos caídos e preguiçosos. O belo sorriso em seus lábios, de quando em quando, transformando-se em uma risada contagiante, contornado pela barba escura e espessa, que causava cócegas só de lembrar do seu toque. E o seu cheiro. O cheiro dos cabelos lavados, do banho tomado e o cheiro natural da sua pele. 

Quando abriu os olhos, encontrou tudo o que sua mente recriou e muito além. Nirav estava com à sua frente, ocupando todo o seu campo de visão, roubando toda sua atenção. Percebeu o quão ofegante estava, não por esforço físico algum, apenas por tudo o que sentia ao vê-lo diante de si. E a cada segundo que se passava, percebia o sentimento se alastrar, crescer até não haver mais espaço para caber. 

 Estava apaixonada por Nirav. Era ele quem fazia seu coração acelerar. Por ele, sentia as tão famosas borboletas no estômago. Era ele quem queria, não outra pessoa. Era ele, desde o momento em que o conheceu. 

Então, nesse momento, percebeu o seu total fracasso ao tentar extinguir o sentimento que não desapareceria. Nem mesmo se quisesse. 

— Nirav. — sussurrou enquanto ainda dançava com ele. Apesar de baixa, sua voz não passou despercebida. 

— Sim? 

Os olhares se encontraram. Juno observou o par de olhos pretos, tão escuros quanto a noite do lado de fora. Podia perder-se em sua escuridão massiva e confortável. Contemplando aqueles olhos, Juno sentiu-se novamente à beira do precipício. E, dessa vez, estava determinada a saltar. 

Só precisava dizer a verdade. Algumas poucas palavras. Palavras as quais conseguia sentir o sabor na ponta de sua língua, prestes a se verbalizarem. “Eu estou apaixonada por você.” 

— Eu... 

No entanto, como em um sonho bom que se desperta à contragosto, a declaração de Juno foi interrompida antes mesmo de começar. Cortada abruptamente, de repente, por Nicholas. 

— Estou perdendo alguma coisa? 

Com um susto, Juno afastou-se de imediato ao notar a presença de Nicholas. Sua voz era baixa, sem intenção de chamar atenção, porém não fazia esforço em exibir a ira que o consumia, o que a preocupou. 

— Estamos só dançando. — Nirav respondeu, tornando a se aproximar dela. — Algum problema? 

Nicholas deu um riso nasal de total desdém. 

— Por onde você quer que eu comece? — devolveu, começando a aumentar o tom de voz, assim como a diminuir a distância entre ele e Nirav. 

— Nicholas, por favor! — mesmo com receio de intervir, Juno tentou afastá-los. — Pare com isso! 

Não demorou para algumas pessoas notarem a tensão crescente, abrindo espaço para Hester e Theo vir em suporte a Nirav. 

— O que está acontecendo aqui? — Theo perguntou, demonstrando preocupação com o amigo. 

— É exatamente o que eu gostaria de saber. — Nicholas os encarou com desgosto. 

Agora, todos já começavam a ter noção da discussão, parando para assistir com curiosidade. Louise e Helena também se apoiaram ao redor de Nirav, o que deixou Juno mais aliviada. 

— Nicholas, chega! Estávamos só dançando! 

— E ele precisa agarrar você? Que porra de dança é essa, Juno? — a voz dele tomou proporções maiores, provocando um burburinho alarmado pela sala. 

Um tanto revoltado, Nirav se impôs, tentando se soltar das mãos do amigo para ir de encontro a Nicholas. 

— É melhor abaixar o tom de voz! — alertou-o, apontando-lhe a mão, que logo foi puxada para baixo por Helena. 

— É melhor você ficar na sua! 

Juno sentiu seu braço ser puxado por Hester, que a encarava com um semblante inibidor. 

— É melhor vocês irem. — sugeriu, bem apavorada. — Isso não vai dar certo. 

Sem muita opção, Juno acabou concordando. Queria evitar um problema ainda maior. Por isso, começou a empurrar Nicholas para longe, mesmo não conseguindo equiparar força com ele, que ainda insistia em continuar com a discussão. 

— Chega! Já deu! — gritou para ele, afastando-o de Nirav o mais rápido que podia. 

— Pelo menos nisso você está certa. Já deu! — ele tomou sua mão com força, conduzindo-a para fora da casa, ainda que contra sua vontade. — Vamos embora! 

Mesmo com ele segurando-a com força, temendo agravar a situação, Juno resistiu lutar contra a mão que a segurava. Ainda assim, a adrenalina crescente começava a estremecer suas extremidades. 

Olhando para trás, notando Nirav insatisfeito rodeado pelos amigos que tentavam acalmá-lo em vão, Juno protestou ao tentar se soltar. A situação era injusta e humilhante. Não queria deixar Nirav. Por fim, quando já estavam para fora do portão do jardim, Juno conseguiu se soltar. 

— Você não quer me desafiar, Juno. — ele rosnou, tentando tomar sua mão de novo. 

Juno respirou fundo, sentindo os lábios e o queixo tremerem. Percebeu o receio do que estava prestes a fazer, mas fez mesmo assim. 

— Eu não vou a lugar nenhum com você! — bramiu, mantendo o tom alto de desafio ao contrariá-lo. Precisava ser rude para conseguir se impor. 

Nicholas avançou até ela, assustando-a ao apontar o dedo em seu rosto. 

— Presta atenção em como você fala comigo! 

O medo a consumiu por inteiro, escorrendo por cada membro de seu corpo, reduzindo toda a coragem que tinha a um pavor paralisante. Sua voz se calou, desaparecendo em sua garganta, como se estivesse sendo estrangulada. 

O temor transformava o mundo em um vácuo surdo, o único som parecia ser o do sangue pulsando dentro de seus próprios ouvidos. Em choque, parecia não escutar mais nada, apenas a agitação que se formava vindo da maldita casa de encontro a ela. 

Quando seu olhar opaco identificou Nirav, gritando ao vir em direção a eles, Juno sentiu o gosto do desespero. Quando seus ouvidos abafados escutaram o xingamento violento de Nicholas, Juno estremeceu de medo. A tragédia era iminente. 

Desesperada, se colocou entre os dois, antes que pudessem se chocar. Por sorte, outras pessoas apareceram para fazer o mesmo, caso contrário não tinha certeza se conseguiria suportar. 

Novamente, o tumulto da briga formava-se ao seu redor. Pessoas gritavam, mandando Nicholas se afastar, empurrando-o para trás. Juno estava atormentada diante da tensão, perdida entre os gritos. Tudo o que conseguia fazer era tentar tirar Nirav dali, com o medo zumbindo em suas orelhas como uma sirene. Queria protegê-lo do pior que, agora, parecia inevitável. 

— O que está fazendo? — repreendeu Nirav, não por raiva, por medo. — Perdeu sua cabeça? 

— Não precisa ir com ele. Sabe que não tem de ir com ele...  

— Por favor, volta, vá embora! — implorou angustiada, mesmo quando o que mais queria era o contrário. 

Nirav se recusou com avidez, insatisfeito e revoltado, balançando a cabeça como negação. E, no meio de toda a confusão, disse em tom alto e claro: 

— Eu estou apaixonado por você! 

O mundo paralisou bem diante dos olhos de Juno. Todo a gritaria e tensão tornaram-se mudos aos seus ouvidos, ensurdecidos pelas palavras que escutava. Mais uma vez, todo o resto do mundo ficou em segundo plano para dar destaque ao homem à sua frente. Nada mais parecia importar, além de Nirav. 

Era tudo o que queria escutar dele. Era tudo o que queria dizer a ele. A verdade que não conseguia mais esconder, ou melhor, não precisava esconder. Esse sentimento, até então tão segredado, agora estava escancarado, explícito, destrinchado para quem quiser ouvir. Nicholas ou Louise. Theo, Hester e Helena. Toda a festa. Não importava quem. Todos sabiam da verdade e, ao mesmo tempo que era um alívio, também era um tormento. 

Apenas um grito assustado despertou Juno, jogando-a com violência contra a realidade. Ainda desnorteada, só conseguiu identificar Nirav caído no chão. Suas mãos tentavam segurar o próprio rosto, que sangrava. O desespero tomou conta de si ao perceber o que havia acontecido. Seu primeiro instinto foi ir de encontro a ele, tentar ajudá-lo. No entanto, a mesma mão que havia o agredido, agora a puxava para longe. 

Juno ainda estava paralisada, sem saber como mantinha-se de pé ao seguir Nicholas ou porque estava seguindo-o. Sua mente não conseguia processar tudo o que estava acontecendo. Parecia um pesadelo horrível, cujo qual não conseguia despertar de maneira alguma. 

O sangue latejava em seus ouvidos, tornando-se mais intenso a cada passo obrigado que tomava. Aos poucos, as pessoas desapareceram do seu ponto de vista, deixando-a ainda mais desamparada. O zumbido tornou-se insuportável, obrigando-a a parar. 

— Você vem comigo! — Nicholas insistiu, enfurecido. 

— Eu não vou a lugar nenhum com você! — respondeu com avidez, tentando calar o zumbido em sua cabeça. — Eu não quero mais... 

Nicholas deu um riso de escárnio, meneando com a cabeça.  

— Se você acha que vai ser tão fácil assim, não está prestando atenção. 

— Você agrediu! — Juno rugiu, indignada. Agora já pareciam estar longe demais da casa de Louise, longe de todos. — Ele não fez nada contra você, mesmo assim o agrediu! 

— E vou fazer ainda pior se me der motivo! — ameaçou, insistindo em manter-se perto o suficiente dela, para que não pudesse recuar. 

O pânico dominou seu corpo, fazendo-a piscar sem reação diante da declaração de Nicholas. As lágrimas ardem no canto de seus olhos, teimosas demais para serem contidas. 

— Isso é uma ameaça? 

— Oh, isso não depende de mim, Juno. — sua feição era puro desgosto, raiva e desdém. 

— Você não faria isso... — começou a sentir sua voz falhar, oscilar diante de uma vontade incontrolável de chorar. 

— Bem, já que se importa tanto com ele, deveria pensar na situação em que o colocou. 

Juno sentiu o chão parecer rachar sob seus pés, cedendo pouco a pouco para engoli-la. Cada parte de seu corpo estremeceu enquanto observava o homem a sua frente. O que ele estava se tornando? Teria sido sempre assim? Como nunca foi capaz de ver sua face verdadeira? 

— Como tem coragem? Por que... 

— Chega! Não vou mais suportar isso! — ele a cortou, esfregando as mãos no rosto, impaciente. — Como você tem coragem de fazer isso comigo? Eu sempre estive ao seu lado, Juno, mesmo quando você não tinha ninguém. Eu te ajudei com tudo o que eu pude. Até mesmo pela sua mãe, eu fiz tudo o que podia fazer por ela, só por você! Eu sempre fiz tudo por você e é assim que me retribuí? 

Sua raiva parecia se transformar em dor, mostrando-o prestes a quebrar, como ela, e também chorar. E ainda era capaz de infligir culpa em Juno, obrigando-a remoer o próprio remorso pelo que havia feito a ele. 

— Nicholas, eu... 

— Não, você não fazer isso. Não comigo. — declarou, tornando a assumir a ira em sua entonação. — Eu não aceito! 

— Não pode tomar decisões por mim. — Juno protestou, tentando elevar um último resquício de coragem. — Não pode fazer isso. 

— Você não tem o direito de fazer isso comigo! — ele vociferou, com o rosto bem próximo, escarrando sua raiva contra a face dela. — Você precisa de mim, sabe que precisa! Eu preciso de você! Eu... 

Mesmo com o medo despedaçando cada parte de si, Juno respirou fundo ao tentar enfrentá-lo. 

— Eu não quero mais! — gritou para o rosto dele, sentindo o corpo estremecer. — Chega, eu estou cansada disso. Não vou para lugar nenhum com você. Eu não quero mais! Eu vou ficar! 

Por um instante, não conseguiu ler sua expressão. Ele pareceu um tanto incrédulo ao escutá-la. Porém, logo em seguida, seu semblante intimidador a fez arrepender-se de suas palavras. 

— Ah, você vai ficar? — ele segurou seus ombros, sem força ou intenção de machucar, apenas intimidar. — Tem certeza? 

Ela quis responder, mas temia não ser forte o suficiente para conseguir. E, com o seu silêncio de deixa, ele prosseguiu com tom condescendente: 

— E vai fazer o quê? Abandonar toda sua vida e tudo o que você tem? Vai abrir mão da sua carreira? Vai abandonar sua mãe, para ficar? — Nicholas cuspiu todas as palavras em sua cara, e ainda que sua voz fosse suave, cortava como uma lâmina. A pior parte era que, no fundo, ele estava só falando a verdade. — Em troca de quê? Acha que vai valer a pena fugir? Acha que ele vai ser suficiente quando perceber que perdeu tudo? Você não vai ter mais nada, vai estar totalmente vazia! 

 Nesse momento, entendeu como o conceito de fazer a escolha certa, no fim, não era escolha alguma. Ela não tinha escolha. Era apenas uma ilusão que a fazia acreditar ainda estar no comando de sua própria vida, sem notar em como havia entregado tudo o que era para Nicholas agir como bem entender. 

Desde a sua carreira até a sua própria mãe. Pouco a pouco, Nicholas invadiu sua vida, tomando o controle com a desculpa de se importar em ajudá-la. No fim, era apenas um meio de controlar a ela própria. Juno só gostaria de ter percebido antes de ser tarde demais. Gostaria de ter enfrentado quando ainda era cedo e o medo não a consumia como agora. 

— Então, vá em frente. Escolha com cuidado para não se arrepender. — advertiu, uma última vez, olhando no fundo de seus olhos dominados. — Porque você vai se arrepender se me deixar. Eu vou garantir que se arrependa. 

O mundo ficou embaçado, surdo e lento. Apenas o sangue latejando entre seus ouvidos resistia, agindo como uma sirene. Era o medo que a dominava, diante das ameaças e da imprevisibilidade daquele homem. 

Queria gritar, pedir ajuda, ser socorrida, porém estava paralisada. Queria resistir, lutar contra ele, mas não era tão forte quanto pensava. E estava sozinha, pois quando olhava ao redor, só restava Nicholas. E agora, tinha medo. 

Cada parte da sua vida já não parecia mais pertencer-lhe. Como se fizesse parte de outra pessoa e não um ser próprio. Não era uma dependência só emocional, era algo além, que reclamava seu direito de livre arbítrio, por mais absurdo que parecesse. Nicholas estava tão impregnado em sua existência, que se tornava difícil separar a sua vida da dele. Como chegou em tal ponto? Como permitiu que isso acontecesse? 

Pensou em sua faculdade e em sua carreira. No fundo, tais coisas podiam parecer superficiais demais, Juno não parecia se importar em abrir mão. Então, pensou em Nirav. Por fim, pensou em sua própria mãe. E viu como havia colocado tudo o que mais prezava em risco. Nicholas estavam em todos esses detalhes, sem intenção de deixá-los. 

Não, nem todo amor do mundo seria suficiente para suportar uma situação assim. Era mesmo como estar atrelada a um arame farpado, que começava a cortar quem estava ao redor. Agora, o arame farpado parecia estar em torno de sua própria garganta, estrangulando enquanto também corta. 

Não teria escolha, senão ficar atrelada ao arame farpado, porque era tudo o que restava fazer. Não era forte o suficiente para tentar se soltar. Estava com medo demais para se cortar. Todos os seus pecados causaram o estrago que encarava, marcando sua pele como um corte.  

Era uma tragédia anunciada e ela, inconsequente, acreditou que estava fazendo o certo ao fazer tudo errado, até ser tarde demais. Já não restava nada para Juno, além de lidar com as consequências de seus erros. A culpa era sua, então se tivesse de pagar pelos seus pecados, pagaria sozinha. Era um preço pelo qual estava disposta a pagar. 


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Notas finais do capítulo

Um capítulo grande, massivo e complicado.

Dessa vez, não vou falar da Juno, dos seus erros e seus pecados, porque não há nada no mundo que justifique passar por isso. Ela teve, sim, seus deslizes, cometeu equívocos, traiu uma pessoa. E, ainda assim, não justifica.

De qualquer forma, quero dizer que, por vezes, tive medo desse capítulo ser exagerado ou fantasioso demais. Entretanto, eu passei por isso. Eu escutei palavras muito parecidas. E eu conheço pessoas, muitas aliás, que passaram pelo mesmo. Situações até mais extremas. Então, e isso é um exercício para mim também, sempre que nos pegarmos questionando se tal situação abusiva é plausível, que sejamos capazes de entender que sim. Enfim, medo é uma coisa bem quieta. E eu descobri isso bem cedo.

Por fim, se estiverem passando por momentos assim, saibam que não estão sozinhos. Procurem ajuda, não se deixem calar. E mesmo se a coragem faltar, entendam que vocês não são fracos por não conseguirem se impor. O problema nunca vai estar na vítima, vai estar no agressor.



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