Orgulho, Preconeito e um Copo de Limonada escrita por Youth


Capítulo 2
2 - Emma, a casamenteira, e Jan, bonito até demais




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Jane, eu acredito que se você viesse do passado para o 21 você surtaria na primeira rua que cruzasse. Não pelas inovações tecnológicas, como carros, aviões e paus de selfie, menos ainda pelas minissaias, bermudas ou diversificação racial e massificação cultural (voltada para a tentativa idônea de padronizar as pessoas, estabelecendo ideais de "bonito", necessário e na moda voltados única e exclusivamente para cultivar o sentimento de necessidade de inserção, favorecendo grandemente o capitalismo e deixando as marcas famosas cada vez mais ricas...). Não, não só por isso, mas por uma questão menos clara mais igualmente problemática: a saúde mental.

Não sei como era na sua época, mas acredito que não devia ser fácil também, imagino, todos esses espartilhos, anáguas e... cavalos... dragões, varíola, essas coisas... Com toda certeza nem todas as pessoas se mantinham completamente sãs até o fim da curta vida de vocês, que morriam de doenças virais por conta da ausência de higiene, inclusive, um aviso. Mas, enfim, apesar de todos os avanços da medicina, como penicilina, vacina e transplantes, ainda vivemos um século de pessoas doentes: talvez não dos corpos, a saúde tácita, mas mental. As pessoas adoecem por completo antes dos trinta anos, sempre se cobrando uma perfeição inexata, se comparando com pessoas bem-sucedidas (Um primo, um amigo, o irmão), surtam por completo quando não conseguem atingir tais metas, mas não procuram ajuda, aliás, se remediam de café, drogas ilícitas, vinho, sexo sem proteção, e acreditam que tais profilaxias momentâneas bastaram para a eternidade. Obviamente não dá certo, mas, mesmo assim, continuamos reféns da rotina esmagadora, nos comparando constantemente com pessoas perfeitas, "adoecendo" e voltando a nos remediar de falsas sensações de cura.

Comigo não é diferente, mas isso deve ser óbvio para você nesse ponto da história. Mesmo antes do acidente de três anos atrás eu já não era a pessoa mais confiante do mundo. É assim quando se tem um irmão perfeito, sabe, não sei se você teve a oportunidade (Acredito que sim, afinal na época de vocês não tinha televisão), mas é extremamente frustrante você ter um irmão que é bonito, bom em música, bom em carisma, bom em matemática, bom em argumentação, bom em coisas inteligentes de todo tipo, bom e adorado... E você nem sequer pode se considerar bom, sabe. Às vezes eu detestava estar sempre à sombra dele, mas, na maioria esmagadora das vezes, tudo que eu sabia sentir era orgulho de ter alguém tão incrível para dizer "Ei, olha: meu irmão sabe os números de pi de cor" (Não sei se na época de vocês já haviam descoberto o número de Pi, mas se isso ajuda confesso que nem eu sei muito sobre ele). E como deve ser fácil de imaginar, depois do acidente tudo que era desagradável e me trazia os piores sentimentos se expandiu de uma maneira desgastante, então, com minha autoestima mais caída que nunca, me comparar se tornou parte dos meus dias: me comparava com Jan, como ele é bonito e todos o adoram, com minha irmã, que é um gênio por completo em química, com uma garota da minha escola, Emma, que era praticamente uma bruxa dos algoritmos, conseguindo configurar inteligências artificiais com a mesma facilidade que escovava os dentes...

A primazia da necessidade de tentar ser uma versão melhor ou boa o suficiente de outras pessoas ao meu redor desgastou toda minha ânsia por melhoria e adaptação conforme os anos foram passando... Talvez por isso em alguns momentos eu entregava redações em guardanapos, mas em outros sequer tinha ânimo por escrever, mesmo que em um papel de pão. Mesmo assim estou aqui, agora, fruto da minha ansiedade, escrevendo como se nada nunca tivesse acontecido e eu nunca tivesse perdido toda essa "magia estranha" que me faz querer mudar, me transformar, me adaptar... E sabe porquê? Por fruto da minha necessidade de comparação, sim, a mesma que me fez querer desistir de tudo e me tornar uma sombra apática dos meus amigos considerados melhores e mais interessantes. Como? Boa pergunta, Jane Austen. Boa pergunta.

Um dia responderei com prazer. Só preciso descobrir como antes.

 

Havia acatado a ideia animada e ansiosa de Jan de ir à cafeteria sem motivo algum, além de conhecer os tais novos moradores da cidade — que, para mim, de novos nada tinham (Pelo menos o rapaz, que acabei me esbarrando algum tempo atrás e passando por uma experiência desagradável). Aproveitaria também para tomar minha segunda atitude estranha em menos de um dia: comprar um livro, depois de aceitar escrever um. Sim, tecnicamente eu havia prometido à Jane Austen e à Érica que iria ler algum dos títulos escritos pela escritora inglesa do século dezenove e, sem motivo especial algum (Mesmo que ainda tivesse uma certa faísca de curiosidade gritando em súplica por um segundo encontro com Dan, abafada continuamente por todo orgulho e amor próprio que eu ainda tinha), eu decidi cumprir com a promessa e me esforçar ao máximo possível para ler alguma bobagem austeniana. Eu, definitivamente, não estava na melhor das minhas piores fases, se é que dá para me compreender.

Obviamente Jan poderia ter ido sem mim e muito provavelmente teria obtido os mesmos resultados que teria com a minha presença à sua sombra, de braços cruzados, fingindo que estava numa visita comum e desmotivada à minha mãe. Tamanha minha surpresa (Leia aqui com um tom palpável de ironia) quando percebi que noventa e nove por cento das pessoas da minha escola tiveram a mesmíssima ideia, e estavam ali, fingindo que se interessavam verdadeiramente por livros e cafeína, enquanto atormentavam Daniel e a garota que o acompanhava, com perguntas desvairadas e irritantes. O olhar de tédio dele era afável. Dava para cortar o clima de desinteresse com uma faca de pão. A moça, por outro lado, tratava a todos com milhares de sorrisos amigáveis, sempre carismática e exageradamente simpática. Ela parecia Jan numa versão feminina. Era assustador.

— Ei — cumprimentei minha mãe quando a encontrei atrás do balcão. Seu olhar era surpreso, mas exaustivamente contente. Um sorriso coloriu sua face com maestria.

— Oi, meu bem — ela disse, por fim, se inclinando sobre o balcão e beijando meu rosto — O que vieram fazer aqui? Quer dinheiro pro lanche? — ela questionou, já botando a mão no bolso, sendo surpreendida pela minha negativa imediata. Então, ela colocou os braços para trás e me encarou com um olhar confuso.

— Oi tia Ofélia — Jan disse, às minhas costas, e pela primeira vez minha mãe o percebeu, perdendo sua expressão confusa e se acalmando de imediato. Jan tinha um sorriso carismático (E minha mãe o adorava o suficiente para confiar a ele minha vida).

— Oi Janilson — ela disse, por fim — Já sei... Vieram tomar um café? Um suco? Fiz da minha limonada especial! — a cafeteria só era tão famosa graças a famosa limonada que minha mãe fazia, que era doce, mas também azeda na mesma medida. Ela brincava dizendo que aquilo representava as duas faces do amor: a boa e a, bem, complicada. Muitos casais apaixonados foram formados com a tal limonada presente durante o primeiro, o segundo, o terceiro encontro... Mas também muitos acabavam antes mesmo dos copos se esvaziarem. Um copo cheio de limonada significava coração partido... Um copo vazio, bem, acho que fica subentendido. Era a dicotomia do amor.

— Não, valeu, mãe — respondi, olhando ao redor, procurando nada de especial (Nada além de Daniel, confesso). Havia certa esperança intrínseca em mim de olhar, por algum momento, e encontrar os olhos dele perdidos por ali, talvez procurando pelos meus. Talvez o visse sentado, sozinho, e lhe ofereceria um copo de limonada, e, depois que bebêssemos de todo o âmago adocicado e azedo, conseguiríamos nos resolver e toda a imagem que eu tinha pré conceituada dele nas minhas memórias se apagasse... E toda aquela luz que eu conseguia enxergar nele finalmente faria sentido.

Ele estava ali, mas não estava procurando por mim. Conseguiu se livrar das importunações das pessoas da escola, sentou-se na escada em espiral que dava para o segundo andar e estava lendo seu livro, alheio a tudo e a todos, com uma expressão amarga e odiosa. Então, ao encarar aquela carranca orgulhosa e arrogante, senti tudo que houve no outro dia me atingir novamente, como se tivesse acabado de acontecer. Como ele parecia perfeito lendo... Tão inteligente, tão bonito, tão... Tudo que eu jamais conseguiria ser. Isso me assustava... mas também me trazia um misto de sensações estranhas, sabe. Como quando tem alguém que você detesta mais do que tudo, mas não aceita, jamais, que ele seja melhor que você em qualquer coisa... Tal qual a Anne de Green Gables, que odiou Gilbert Blythe por cinco anos, competindo constantemente para ser a melhor na frente dele... Então, ao passo que não me sentia o suficiente para me comparar, como se nunca pudesse ser alguém tão bom quanto ele (Sendo que eu nem sabia como ele era naquele instante, sabe, mal o conhecia, mas eu sou muito surtado), quis, desesperadamente, esmagar aquela carinha arrogante, não no sentido literal, mas no figurativo (Afinal ainda era uma carinha muito bonita para ser esmagada), me tornando tão bom quanto ele em qualquer coisa que fosse.

Então ele esboçou um sorriso repentino naquela expressão odiosa e impassível. Tudo pareceu perder o sentido. Eu disse outrora, o sorriso de Daniel, quando decidia dar o ar de sua graça, era extremamente divino e, magistralmente, derrubava todas as forças da minha raiva. Todo o brilho daquela rápida e discreta mostrada de dentes, tão brancos que se assemelhavam a pérolas, colocou meu coração de joelhos diante dele, quase como quando estamos extremamente bravos e vemos um vídeo de algum filhotinho fofo. Creio, inclusive, que murmurei um daqueles constrangedores sons que surgem inesperadamente quando estamos na presença de algo muito bonitinho... E também posso dizer que senti meus lábios se convergindo para o princípio de um sorriso, mas então a carranca de Dan voltou a marcar sua face, quando ele passou de página e deu uma rápida olhada pela livraria. E, no momento mais inoportuno (Quando eu o encarava com um olhar curioso e cheio de compaixão), os olhos dele se encontraram com o meu.

Ele me encarou. Eu o encarei de volta. Ninguém disse nada. Ele ergueu as sobrancelhas, quase como se fosse sorrir para mim ou me cumprimentar, mas só se voltou ao livro entre seus dedos e pareceu ignorar tudo, novamente. Meu coração se tornou um misto de decepção, por não ter havido sequer um cumprimento, ainda que seco, mas nem um pouco de surpresa. Suspirei profundamente e chacoalhei o rosto, tentando lembrar do motivo pela vinda a livraria.

— Mãe, vocês têm Orgulho E Preconceito? Queria ler — mamãe, que esteve nos últimos instantes absorta, conversando com Jan sobre Daniel e a irmã, Caroline, me encarou com um olhar confuso, surpreso, mas indiscretamente feliz. Fazia alguns anos que não pegava um livro por conta própria, sem que alguém precisasse me ameaçar ou algo do tipo. O sorriso dela pareceu iluminar cada canto da cafeteria e estava praticamente impossível esconder sua animação, pelo canto do olho pude perceber que Dan havia, novamente, erguido os olhos do livro. Já sentiu como se alguém te encarasse enquanto estava de costas? Foi algo assim.

— Temos, claro, claro! — ela respondeu de imediato, saindo de trás do balcão mais rápido que podia imaginar, com uma animação contagiante nos olhos — Temos uma sessão inteira de Jane Austen, inclusive, quer que eu busque pra você, amor? — ela perguntou, extremamente disposta e animada. Por um momento pensei em acatar, pois sabia o quanto isso significava para ela, afinal, em um momento você tem três filhos, viciados em literatura, que liam por dias e horas e semanas seguidas, em outro, por conta de uma ponte, uma motocicleta e um rio, você só tinha um. Mas, então, duas garotas se aproximaram para comprar alguma coisa da cafeteria e ela pareceu meio desconcertada da ideia de deixar de atende-las, então, simplesmente sorri e agradeci.

— Só me dizer onde é. Jan me ajuda — afirmei, convicto. Mamãe sorriu em concordância e indicou o segundo andar.

Enquanto subimos a escada em espiral, tentei, infrutiferamente, encontrar Dan no primeiro andar, já que não estava mais sentado entre os degraus. Em algum momento entre a chegada das garotas e o que começamos a subir para o segundo andar ele havia saído, sabe-se lá para onde. Senti um grande alívio por não ter que encontrar com ele, novamente.

O livro estava exatamente onde minha mãe havia indicado, havia, aliás, uma prateleira inteira dedicada à Jane Austen, com alguns de seus títulos, distribuídos em várias e várias edições divergentes. Jan se encaixou num cantinho qualquer e ficou digitando algo no celular, com um olhar pensativo, posso jurar que fofocava sobre os olhos de Caroline — que ele fez questão de elogiar para minha mãe. Me perguntei em que momento me tornei tão fraco ao ponto de estar acompanhando um amigo com um crush. Definitivamente irritante. Devia comentar sobre isso com Austen.

Foleio algumas versões de Orgulho e Preconceito. Tirando diagramação, ilustrações e pompa desnecessária, todas, aos meus olhos, pareciam a mesmíssima coisa; a mesma história de dois corações que se odiavam até o momento que decidiram que se amavam. Isso era tão ou mais irritante quanto alguém que se apaixona logo à primeira vista... Quando constatei isso, não pude deixar de desviar um olhar julgador sobre as páginas e encarar Jan, absorto numa atmosfera rosa e vermelha, cheirando a chocolate e paixão, completamente enfeitiçado por uma garota com quem sequer conversou. Por um instante me lembro de Daniel e penso como era irônico pensar que o que sentia por ele era o completo oposto daquilo que meu amigo sentia pela sua irmã: tudo que eu queria era mandar aquele arrogantezinho de meia tigela para a casa do... carvalho. E, tudo que Jan queria, era ir para qualquer lugar, inclusive a casa do..., com Caroline.

Tão subitamente quando como desapareceu, Daniel surgiu entre as prateleiras, observando curiosa e silenciosamente às minhas costas. Só me dei por uma presença quando ouvi o que parecia uma tosse forçada notavelmente, como se ele dissesse "estou aqui". Seus olhos pareciam mais escuros que o de costume, iluminados pela luz ínfima que atravessava as vidraças, cópias fajutas e baratas de vidraria vitoriana, nas janelas da livraria, deixando suas pupilas brilhosas, bem como sua pele, que pareceu tão mais macia que o de costume. Seus lábios eram vermelhos e extremamente beijáveis. Em algum momento entre o instante que me virei e o enxerguei e o que deixei o livro em minhas mãos despencar no chão com a surpresa do momento, pude jurar enxergar um resquício de sorriso lutando para aparecer naquele rosto impassível.

Ele era tão lindo, mas tão lindo... Que podia tirá-lo para dançar ali mesmo:

— Gosta de dançar, senhor Daniel? — eu perguntaria, tal qual Elizabeth perguntou à senhor Darcy.

— Quando não posso evitar — ele responderia, tal qual senhor Darcy.

E nenhum de nós dançaria, mas continuaríamos a nos odiar cada vez mais e mais.

— Essa edição é péssima — ele disse, por fim, diante de mim com olhos tão curiosos quanto os de uma criança. Um olhar amargo e descompensado recaía sobre mim como uma faca atirada por um assassino e acertava meu coração em cheio — A tradução é muito mal feita. A capa é bonita, claro, mas o texto... Jane Austen teria chorado — Daniel afirmou, cheio de si. Senti minhas feições faciais se tornarem levemente mais "debochadas" e desinteressadas involuntariamente enquanto ouvia toda aquela demonstração de volúpia sexual. Uma parte de mim, a mais infantil, sentia vontade de dizer "Ah é? E quem te perguntou?" e outra continuava inclinada a uma dança. Sem muitas delongas e sem mais palavras de incentivo, Daniel deixou nossa presença tão rápido quando chegou, sem se despedir, sem olhar para trás e sem cumprimentar. Ele cheirava muito bem.

Jan me encarou com um olhar confuso e surpreso. Podia ouvi-lo dizendo "que porra foi essa", então nem precisaram muitas palavras para que eu respondesse:

— E esse é Daniel. Mal posso esperar para conhecer Caroline — afirmei, me apegando a toda ironia do momento.

Talvez, se eu fosse levemente mais orgulhoso, teria sido teimoso e pego o mesmo livro que Daniel condenou, mas uma parte minha guiou minha mente e minhas ações, então o devolvi à estante e peguei uma edição mais antiga, menos bonita, mas, aparentemente, mais bem traduzida. Jan me encarou com um olhar de julgamento.

— Que foi?

— Por que você se importa com o que aquele babaca diz? — ele questionou. Suspirei.

— Ele entende mais de livros que eu, no fim — respondi

— Bom, eu confio mais em você que nele — ele respondeu, com um olhar simpático. Jan era o tipo de pessoa que você queria ter sempre por perto. É meu amigo desde muito antes de eu poder entender o que era amizade. Quando éramos crianças, achávamos que éramos irmãos gêmeos univitelinos e nada que os outros pudessem dizer podia mudar essa concepção. Ele cresceu, ficou muito bonito e muito popular. Sua doçura e amizade cativavam a todos, mas, mesmo assim, sua popularidade nunca subiu à cabeça e ele continuou sendo meu melhor amigo todos os dias. E eu o admirava muito por isso, pois só eu e ele sabemos a enorme provação que é manter uma amizade comigo. Infelizmente era hétero... Se não me casaria com ele.

Em certo momento da vida, um ou dois anos da morte de Mariano, contei a ele sobre como preferia sonhar que beijava o Brad Pitt e não a Angelina Jolie. A reação dele foi a mais inesperada possível: ele me encarou com aqueles enormes e redondos olhos por muito tempo e me abraçou por mais tempo ainda. Não trocamos nenhuma palavra sobre isso, talvez porque fosse algo complicado para ele entender de cara, no fim, mas não passou um dia e ele já me falava sobre seu primo, que também gostava de outros caras...

Depois da morte de Mariano ele se tornou mais próximo de mim ainda, sempre atira colo, quase como uma sombra fortuita, tentando me proteger a maldade das pessoas e me ajudando a me erguer sempre que caía... ou quando me atirava no chão. Não fosse ele, não sei se seria forte o suficiente para continuar vivo. Isso é algo que pretendo lhe contar, Jane. Então farei uma nota mental para mais tarde.

Ah, mas ele só tinha um defeito: não podia ver um rabo de saia.

Caroline descia a escada em espiral, distraída com alguma coisa que procurava freneticamente em sua bolsa, com um olhar confuso e curioso. Estava sentado num canto da cafeteria, folheando a edição de Orgulho e Preconceito e olhando de vez em quando Daniel digitando no notebook do outro lado do andar. Jan esteve distraído observando o movimento por grande parte dos instantes que ali estávamos — ele não era muito fã de livros -, mas foi só encontrar os olhos escuros de Caroline em toda a imensidão daquelas páginas e lombadas que ele retornou a própria realidade e correu, disfarçadamente, para perto da escadaria, onde poderia fingir um encontro espontâneo e se apresentar devidamente.

Ainda distraída, Caroline se esbarrou em Jan, que havia pego um livro qualquer das prateleiras e fingindo que estava lendo só para poder fingir que o encontro havia sido acidental. A moça ergueu os belos e redondos olhos e encontrou o sorriso mais adocicado de Jan diante do seu olhar. Não pôde evitar sorrir também... Ninguém pode. Detesto quando ele faz isso.

— Ah, oi — ela disse, meio desajeitada.

— Ei, oi — ele respondeu, envergonhado. A aura entre os dois era deplorável de tão doce. Podia enxergar os coraçõezinhos do Cupido voando ao redor de ambos.

Eles se encararam por longos instantes, mas nada disseram. Sorriram um para o outro, com a tensão sexual tão forte e vívida que podia ser cortada por uma faca, tão vermelhos quanto o sangue que corria sob sua pele, e se despediram tão rápido quando se encontraram, sem que um tirasse o outro dos pensamentos. Jan quase desmaiou de tanta paixão. Agora os corações haviam subido direto para seus olhos.

— Acho que vou ter diabetes — disse para mim mesmo, mas outra pessoa ouviu.

— Meu deus o que foi isso? — aquela voz suave e cheia de animosidade era sem igual, então foi só ouvir as primeiras sílabas que logo a imagem da dona veio à minha mente. Suspirei e contei até cinco, tentando manter minha calma — Que droga, é óbvio que eles se amam... Não acredito que saíram sem nem sequer trocarem abraços.

— Bom dia, Emma — eu disse, por fim, erguendo os olhos e observando os cachos loiros de Emma presos à um rabo de cavalo grosseiro, caindo sobre seus ombros largos e colorindo sua pele rosada. Seus lábios estavam num tom de violeta adorável e seus olhos com uma maquiagem azul bem fraca. Emma me encarou de soslaio, como se só tivesse me percebido agora. Ela usava o uniforme laranja e amarelo da cafeteria.

— Ah — ela disse, num tom desapontado — oi — afirmou.

— Oi — respondi com um sorriso debochado. A expressão de Emma mudou drasticamente para uma preocupação atenuada com pensamento e confabulação. Ela se acocorou na estante, alisando os cabelos e torcendo os lábios em biquinhos. Aquilo definitivamente não era um bom sinal... Conhecia Emma o suficiente para saber o que viria a seguir.

— Obviamente eles precisam de um empurrãozinho — ela disse, com ar cheio de si, elevado em graciosidade e santidade. Seu olhar exibia um orgulho e um brilho incomum. Eu continuava a encarar tentando imaginar uma maneira de sair sem que ela percebesse — Não acha, Elias?

Então ela tinha me percebido, no fim.

Emma... Como vou explicar Emma? Acho que não tem muita explicação, no fim. Ela é independente, inteligente e muito competitiva. Saiu de casa quando completou dezoito anos... Na verdade foi expulsa, o que atrasou seu ano escolar e a obrigou a encontrar um emprego aqui na cafeteria.

O porque dela ter sido expulsa, Jane, é algo complicado demais para alguém de sua época entender... Aliás... O que é complicado são os fatores que levaram ao fato, não os liames e as nuances que o fizeram acontecer. Preconceito é preconceito, independente da época que se encontre, imagino eu. Pessoas com mente fechada com toda certeza sempre existiram e sempre vão existir, mesmo na sua época em que ter a mente fechada era ter a mente certa. Não posso dizer como Emma se sente ou como ela enxerga o mundo, mas definitivamente não é da mesma maneira que eu ou que você... Pelo menos eu acho.

Imagino o quão difícil deva ter sido para ela ter nascido num corpo que não lhe pertencia, num gênero que não lhe cabia e ser obrigada a performar continuamente por longos anos a vida de uma pessoa que ela definitivamente não era. Hoje Emma é Emma, mas alguns anos atrás não era... Era uma pessoa, uma pessoa que morreu e que não merece menção nesse momento. Só que os pais dela não aceitaram sua verdadeira feição e tentaram colocá-la novamente na pele de alguém que não lhe pertencia... Então ela foi embora, começou a viver com uma tia e se tornou patrona da própria existência.

Dentre outros fatores, Emma é uma casamenteira autoproclamada. Diz que sua razão em vida é a de unir casais desafortunados a encontrar a felicidade. Se isso já deu certo alguma vez? Eu duvido que ela discorde, mas prefiro não comentar. Ah, e ela também é um gênio da informática.

— Elias? Estou falando com você — ela disse meio impaciente. Percebi que estava absorto, escrevendo no diário literário, ignorando tudo que acontecia aos arredores. Ergui meus olhos para Emma e sorriu, meio desconcertado.

— Desculpa, tava fazendo um trabalho — afirmei, enfiando o diário de volta na mochila com receio de que ela tivesse percebido o que escrevia. Emma suspirou, jogou o pano de prato de carregava em mãos nos ombros e abriu espaço no sofá onde eu estava, sentando-se ao meu lado sem um convite formal para tal. O uniforme laranja e amarelo, de gola polo, e a calça jeans longas se acentuavam a seu corpo alto e magro. Os cabelos loiros, como já disse, pendiam num emblemático rabo de cavalo. Deus do céu... Como eu explicaria para Jane Austen que Rabo de Cavalo é o nome de um penteado popular do século vinte e um?

Emma continuava a observar Jan e Caroline de longe, ignorando minha existência, com um olhar pensativo e analítico, fazendo biquinho e pensando em mil e uma coisas. Olhei para os lados, levemente envergonhado por tanto contato com ela — não que não fôssemos amigos, pelo contrário, se pudesse definir meu conceito de amizade no momento, elegeria Jan, que definitivamente era meu melhor amigo, e Emma, como a colega de trabalho da minha mãe que estudava comigo e com quem trocava algumas palavras, mas nada muito próximo... no sentido literal da palavra. Naquele instante podia sentir seu cheiro adocicado de tão próximo que estavam nossos corpos. Ela parecia não se importar.

— O que você sabe sobre eles, Emma? — questionei por fim, dando alguns pulinhos para o lado contrário ao que a garota ocupava no sofá, tentando me desvencilhar do contato físico. A garota desviou o olhar por um instante e me encarou, como se não entendesse o que eu havia dito — Daniel, Caroline, sabe, sua família, essas coisas.

Ela suspirou.

— Bem pouco — respondeu — Só vi os dois, uma mulher, um cara mais velho e um rapaz, talvez na minha idade — afirmou. Senti minhas sobrancelhas erguerem, em curiosidade, não sabia que havia outro rapaz. Jan estava distraído, tentando fingir naturalidade, entre fileiras de livros, procurando a melhor maneira de se aproximar de Caroline. Emma havia perdido o interesse e pareceu disposta a fofocar — Esse rapaz, sabe, William o nome...

— Sei — na verdade não sabia, mas queria ouvir até onde ela podia ir. Alguma coisa no fundo do meu coração dizia que não seria boa coisa. Emma olhou para os lados, como se o que fosse me segredar se tratasse de um mistério litúrgico.

— Então, foi meio que assim, eles chegaram aqui bem cedo... Umas seis ou sete da manhã, achando que não tinha ninguém ainda, mas, bem, você sabe que eu geralmente passo aqui antes de ir pra academia.

— Minha mãe disse que você vem aqui porque deixar seu notebook carregando a noite — respondi, com um sorriso irônico. Emma revirou os olhos e esboçou uma expressão de culpa.

— Sim, tem isso também. Conta de luz é cara, sabia? Um notebook a mais carregando não faz diferença, é só chegar cedo para buscar que... — ela suspirou e coçou os olhos — Enfim... Eu estava aqui e ouvi eles chegando. Fiquei quietinha na cozinha e percebi que eles estavam discutindo, o William e aquele homem... Acho que o pai deles. Caroline, Daniel e esse William. — com olhos atentos e ouvidos abertos, consumia cada palavra das fofocas de Emma com um olhar atento e curioso. Ela gesticulava freneticamente enquanto falava, além de usar e abusar de um tom dramático. Era engraçado — Esse William tava acusando o Daniel de coisas bem tensas, sabe, dizendo que ele fez os pais ficarem contra ele... Dizendo que o Daniel roubava dinheiro e inventava mentiras sobre ele... E que estava cansado de ter que ver o próprio pai passando a mão na cabeça dele e fugindo todas as vezes que a situação ficava tão tensa que era impossível encarar.

Por um instante imaginei que isso explicava a vinda repentina de Daniel e sua família para uma cidadezinha no meio do nada, no meio do semestre letivo, sem maiores explicações ou razões.

— Nossa, que bizarro — afirmei, por fim. Emma concordou com um olhar absorto e cheio de curiosidade. — E o que aconteceu depois? — questionei. Emma sorriu.

— Bem, eu estava numa posição muito confortável na cozinha, então dormi e só acordei com a voz da sua mãe na minha cabeça — ela disse, por fim, e sorriu novamente. Então, ouriçou-se no sofá e arregalou os olhos, observando Jan tomando iniciativa de se sentar ao lado de Caroline, finalmente, animada — Ei, olha, parece que ele teve coragem, finalmente — ela sussurrou, dando um tapinha no meu ombro. Não pude evitar sorrir, apesar de continuar irritado por estar sendo parte disso.

— E seus amigos? Tem tido notícias? — sim, eu falei isso alto o suficiente para que Emma pudesse ouvir, mas mesmo assim ela preferiu fingir que eu não tinha falado nada, com um olhar sorridente e meticuloso para Jan e Caroline na mesma mesa. Esse assunto era bem delicado, definitivamente. Emma mantinha contato com os amigos que eram um ano avançados (Já que ela estava um ano atrasada), mas eles haviam saído da escola, se formado, e agora construíam suas vidas, faziam faculdade e esse tipo de coisa... E ela parecia sozinha, literalmente — Tudo bem, Emma?

Não havia piedade exagerada nas minhas palavras, mas ela me olhou com toda sua raiva e todo seu orgulho ferido. O nariz em pé e os lábios franzidos davam a entender que ela não estava inclinada a ter alguém com pena de si.

— Estou ótima e não estou sozinha, se é o que está querendo perguntar, apesar de tanto rodeio — ela afirmou, num tom mais irritado, me olhando no fundo da alma. Foi assustador.

— Eu sei, eu só... — e não, eu não tinha palavras para isso, mas soou como se eu estivesse mais penoso ainda. Emma odiava que tivessem pena de si.

— Vou ficar bem. Obrigada pela preocupação — ela afirmou, mas definitivamente ela não estava bem. Eu era, provavelmente, a única pessoa mais jovem que ela que ela podia convidar para alguma coisa e que provavelmente apareceria, já que os antigos amigos esqueceram que ela existia. Minha mãe sempre comentava como vinha achando Emma solitária, cheia de suspiros tristes e meio desapontada desde a formatura dos amigos (Que poderia ter sido dela também).

— Mamãe tinha comentado que ia te chamar para jantar lá em casa sexta, ela já falou com você? — tentei dizer, numa tentativa de amenizar a situação. Emma riu de nervoso, cerrou os olhos e se levantou graciosamente, ignorando tudo e todos e voltando para seus afazeres (Antes, todavia, acertou o pano-de-prato que levava nos ombros nas costas de algum rapaz aleatório que estava em seu caminho, numa tentativa de descarregar a raiva, penso eu).

Então, como o filho pródigo, Jan retornou a minha presença com uma aura radiante e um olhar exalando luz e paixão. Meu deus, era deprimente, Jane. Completamente. Mas eu não podia deixar de ficar feliz por ele.

Das boas novas que trazia consigo, após muito lutar contra a própria timidez (Incomum, inclusive, já que ele sempre foi uma das pessoas com as melhores desenvolturas e carisma que já havia conhecido), destacava-se o fato de ter descoberto que Caroline, sim, estudaria conosco, como já suspeitava... Mas, bem, traria aquele alguém a atira colo. Dan.

Então suspirei. Me absorvi pelos meus próprios pensamentos e tudo no mundo pareceu se cobrir de uma neblina espessa que apagou todo o resto que não era a perspectiva de ter que dividir com Daniel todos os dias da minha vida pelo resto dos dias do ano. Como um feitiço sagaz e ordinário, não consegui pensar ou perceber nada mais, até que cheguei em casa e comecei a escrever tudo e... bem, cá estou eu.

Não que fosse uma surpresa —afinal já era meio óbvio, já que só tem uma escola na cidade.

Mas ter a confirmação, Jane, é uma situação completamente diferente. Elizabeth Bennet sabia que poderia se encontrar com o senhor Darcy em Pemberley, mas mesmo assim ficou mexida e sentida quando seus olhos se encontraram com os dele, diante da enorme mansão dos Darcy... E, a partir daí, nada nunca mais foi a mesma coisa. Como será quando o encontrar na sala de aula?

E, além de tudo isso, ainda haviam as fofocas de Emma, diretamente da boca de WIlliam, provavelmente o irmão de Daniel. Ele havia mesmo roubado? Era alguém tão podre assim? Apesar de tudo... Não podia ter certeza de que sim.

Então, deixei o diário de lado, sobre a cama, e me voltei a edição não-tão-bonita, mas bem traduzida de Orgulho e Preconceito, e continuei minha leitura, absorto em ideias, pensamentos e visões.

 


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