Momentos escrita por Nat King


Capítulo 6
Capítulo 6 - Desinteressante


Notas iniciais do capítulo

Olá! ♥

Segue mais um capítulo dessa fanfic! ♥ Espero que estejam gostando (se é que os nove acompanhamentos que o Nyah indica estão certos xD).

Gostaria de avisar que por problemas de logística (?) teremos um pequeno atraso na programação de posts. Mas até semana que vem vai sair tudo, prometo ;)

Façam uma boa leitura!



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Desinteressante

 

Os vizinhos já tinham se retirado para seus cômodos quando Yakov finalmente sentou para jantar. O dia tinha sido corrido e ele havia ficado responsável por três turmas extras, além de fechar o ginásio. Foi preciso pedir ao tio-avô que buscasse Margosha no rinque, ou a pobrezinha acabaria dormindo na arquibancada.

Exausto dado às poucas pausas realizadas ao longo das horas, ele sentiu o corpo pesar para baixo, como se pudesse vazar pelas bordas e atravessar o chão. Os pés latejavam e as têmporas pulsavam, implorando por descanso. Era bem provável que ele dormisse com o rosto metido no prato se piscasse um pouco mais lento.

— Aqui, Yakov. — Colocando o prato diante do sobrinho-neto, Alfonse o presenteou com um prato bem servido de chucrute, mingau de arroz e salsichas fritas. Cheirava muito bem, o repolho azedo sendo uma especialidade do velho padre. — Coma bastante, você anda precisando.

Foi com dificuldade que Yakov alcançou o garfo, a exaustão quase o convencendo a dormir sem comer, o que estaria fora de cogitação para o tio, que já estava sentado a sua frente, provavelmente antevendo a esquiva do sobrinho-neto. Ninguém escapava do olhar severo do velho padre. Yakov às vezes pensava era com aquela carranca que Alfonse convencia a população de Dresden a comparecer às missas. Divertia-se pensando se a temência era a Deus ou ao padre.

— Desperdiçar comida é pecado — alertou, aquele sotaque arrastado que pouco fazia questão de melhorar.

Yakov balbuciou qualquer coisa que sequer ele entendeu e deu a primeira garfada, enfim notando quão faminto estava. Sorte ter apenas o tio por testemunha, seria razão de deboche se fosse visto comendo daquele jeito na frente de Fomin — ou na frente de Lilia.

Ele parou ao se lembrar dela, garfo suspenso sobre a comida remexida, a bagunça sem classe que certamente o envergonharia no próximo sábado.

— Você anda distante esses dias…

— Só estou cansado, tio.

— Cansado você está sempre — ele riu rouco. O sorriso suave tinha a habilidade de transformar o rosto de traços pesados e linhas fundas, numa feição bondosa e convidativa como Ded Moroz. — O que te preocupa?

— Nada…

Cutucando uma salsicha, ele deu uma mordida distraidamente, sua mente ainda vagando na proposta feita há dois dias; você gostaria de jantar no próximo sábado?

E o pior é que ela havia concordado! E o próximo sábado seria dali dois dias!

— Isso tem a ver com a jovem que Margosha tanto fala sobre?

Yakov ergueu os olhos inchados pra o tio, sabendo não ter por onde escapar. De algum jeito, Alfonse sempre sabia como convencê-lo a falar. Ele sempre o procurava já sabendo tudo o que precisava.

— Talvez…

— E o que é que te aflige sobre ela? Ou é ela que o aflige?

Yakov repousou o garfo dentro do prato, percebendo não estar em condições de fazer qualquer outra coisa além de pensar naquela hora.

— É que nós iremos nos encontrar nesse sábado — confessou. Deveria ter dito aquilo antes, mas ele percebeu estar muito apavorado com a novidade para contar ao tio. — Deveria ter contado antes.

Alfonse estava sorrindo. Algo parecido com uma risada curta e Yakov o notou erguendo os ombros. Não era grande coisa.

— Não é como se eu não fosse estar em casa para cuidar de Margosha. — Mais uma vez, o silêncio. Pelo jeito, a iniciativa teria de ser toda de Alfonse para arrancar alguma coisa do sobrinho. — Fico feliz que tenha conhecido alguém. Você esteve bem ocupado nos últimos anos.

— É exatamente esse o meu receio. — Desconfortável, ele se remexeu na cadeira, evitando encarar o tio de frente. — Eu não sei o que esperar disso.

— E o que tem para esperar de um jantar além de comida e companhia?

Yakov finalmente olhou para o tio, aborrecimento em seu rosto. O velho parecia estar achando muita graça da situação para seu gosto.

— Tio, eu passei os últimos seis anos dedicados única e exclusivamente à minha filha. — Ele bufou, exausto. — E eu não me arrependo de nada, mas…!

— Mas…?

Os ombros de Yakov caíram e com ele seus olhos, fixos no prato.

— Eu não sei mais como começar uma conversa casual. É difícil conhecer novas pessoas totalmente do zero. Se fosse alguém do trabalho eu até teria um assunto em comum, provavelmente já a conheceria pelo menos de vista ou ouvido falar dela por terceiros, mas assim? — Yakov ergueu as mãos e apontou para a mesa, como se estivesse mostrando um amontoado de evidências. — Há quanto tempo não vejo um filme? Ou leio alguma coisa além do jornal e as aventuras de Cheburashka? — Dessa vez ele riu. — Não sou do tipo que passeia depois do trabalho, tio. Às nove horas costumo dar boa noite para fantoches. — Yakov se referia ao programa “Boa noite, pequeninos!” que assistia ao lado de Margosha. — Não sou uma pessoa interessante. Vou da casa para o trabalho e do trabalho para casa e meus amigos são os mesmos há mais de uma década. Nem sei se conseguiria ser amigos deles se os conhecesse hoje. — Respirando fundo, Yakov soltou o ar todo de uma vez, completamente frustrado. — Foi ela quem se ofereceu primeiro, para almoçar comigo, mas eu consigo ser uma bagunça completa em não ter nem mesmo um horário fixo no meio do dia para ir ao refeitório. Estar livre esse sábado é uma exceção. Vale mesmo a pena tentar conhecê-la? Não tenho nada a oferecer, só irei chateá-la. E mesmo se desse certo, eu tenho Margosha. Não posso deixá-la aos seus cuidados sempre que quiser marcar algum encontro.

Novamente, a derrota. Cabeça baixa, ombros curvos para a frente, ele sentia-se a um empurrão de tombar sobre a mesa e ficar ali mesmo. A sua frente, Alfonse chiou algo parecido com uma risada, apenas para Yakov surpreendê-lo com o rosto vermelho pelo riso segurado.

— Oh, Yakov, você sempre se preocupa demais…

— Eu tento — retrucou com o óbvio. — Por se preocupar de menos o senhor quase foi mandado para a Sibéria.

— Você está indo jantar com uma moça, não tem nada de ilegal nisso. — A careta apertada de Yakov mostrava sua contrariedade. — Está parecendo um velho chato, e você só tem vinte e cinco anos.

— Tio, você não está realmente entendendo…

— Eu entendo, entendo muito bem. Você está com medo. — O rosto de Yakov ganhou um vermelho intenso quase instantaneamente, mas ele manteve o cenho franzido, caso aquilo ainda fosse segurar um pouco de sua moral. — De quê, eu não sei. Decepcionar a moça? Não será culpa sua não atender as expectativas dela.

— As pessoas sempre esperam muito de mim, tio, você sabe…

— Bem? Todos te conhecem pelos merecidos feitos no gelo. Foram anos dessa sua cara ganhando jornais e noticiários, afinal. Por que não mostrar o que existe além do patinador?

Yakov entendia o que o velho queria dizer. Mas ele existia depois do gelo? Já não sabia mais. Suas conversas com os amigos geralmente era para atualizá-los sobre as últimas artimanhas da filha, ou reclamar da chefia. Sentia sua existência apagada, uma vez que lhe tiraram a profissão que amava, para colocá-lo em uma posição em que poderia vê-la, senti-la e tocá-la, sem de fato tê-la totalmente. Alfonse tinha suas razões por repreendê-lo, ele era mesmo muito jovem para estar amargurado daquele jeito, como se uma vida toda já tivesse se passado. Não havia; porém, ele vivera decepções o suficiente por uma existência. Ele bem merecia a bronca que ouvia do padre e de Irina de vez em quando.

— Ela já sabe que você tem uma filha, Yakov. Já pode cortar esse medo de rejeitarem Margosha da sua lista de pavores.

— É o principal fator para pisarem nessa casa.

— Oh, então já está pensando em apresentá-la para mim? — O rosto enrugado estava apertado naquela expressão zombeteira que sempre deixava Yakov desconcertado.

— O que quero dizer é que não tem como imaginar levar um encontro adiante se isso não incluir Margosha.

— Sei.

— Tio… — abaixando a cabeça, Yakov decidiu ocupar a boca com comida para evitar falar qualquer coisa que pudesse ser usada injustamente contra si.

— Apenas tente conhecê-la sem a guarda toda alta, vai acabar traumatizando a moça. — Se erguendo, Alfonse deu a volta na mesa, tocando o ombro do sobrinho, tentando oferecer assim algum tipo de conforto. — Tente só não pensar muito. Vá sem planejar demais.

— O senhor sabe que eu não funciono muito bem no improviso.

— Tente, pelo menos uma vez na vida, Yakov, não seja tão resistente. Sua melhor decisão foi feita por impulso e está muito bem até hoje. — Ele apontou para o cômodo onde Margosha dormia. Yakov sorriu pequeno e concordou. Não conseguiria nada discordando dele. Era irônico Alfonse cobrar-lhe, quando era ele a pessoa mais teimosa que Yakov conhecia.

— Vou tentar.

Vai tentar, tsc. — Dando-lhe as costas, ele seguiu para o quarto. — Fique aí tentando ser menos chato que eu tentarei dormir. Gute Nacht.

Schlaf gut — respondeu o pouco de alemão que sabia, voltando a dar atenção à comida já fria. Algumas garfadas desinteressadas depois, e ele empurrou o prato para a frente, cotovelos sobre a mesa, rosto escondido entre as mãos. Por que ele não conseguia se acalmar? Por que era tão difícil aplicar os conselhos do tio e as reprimendas dos amigos em sua vida?

Por que tinha tanto medo?

Porque Yakov não gostava de perder.

Yakov não gostava de perder décimos em sua pontuação por um erro facilmente antecipado. Yakov não gostava de perder posições no pódio por corrupção às suas costas. Yakov não gostava de ver o patrocínio sendo distribuído de forma desigual entre os patinadores, prejudicando as oportunidades de seus amigos. Yakov não gostava de saber não ter tido como fazer algo para manter a mãe viva. Yakov não gostava de perder nada, fossem conquistas ou pessoas. Se vestia aquela couraça, era para evitar mostrar sua sensibilidade, grande demais para a própria segurança. Toda aquela cara feia não passava de um jeito de esconder os golpes que escondia por trás; ela em si nunca foi capaz de segurar as pancadas da vida. Se ele se apegasse a mais alguém, somente para vê-lo partir depois, seria outro ataque, mais uma cicatriz para a colcha de retalhos que trazia na alma, tudo isso por ser insuficiente. Não era russo o suficiente, não era influente o suficiente para fazer o nome dos amigos entre patrocinadores, ou ajudar a mãe doente... Não, Yakov Feltsman era uma pessoa totalmente desinteressante. As pessoas que ainda o admiravam, o faziam por algo que ele já não era mais, e Lilia… Lilia era uma bailarina muito talentosa, que certamente faria carreira na profissão, junto com outros bailarinos igualmente impressionantes. Ela ascenderia, e ele nada teria a acrescentar, mais uma vez. Com aquele tornozelo reclamando até hoje, ele poderia até dizer não ter condições de segui-la tão longe.

Esse era Yakov Feltsman, a piada de um homem que antecipava o abandono, por já tê-lo vivido.

Cansado de pensar, ele limpou o prato e seguiu para o banheiro, sabendo que a vizinha o estaria esperando do lado de fora assim que terminasse o banho, reclamando do barulho. Mais cobranças. Nada com o qual ele já não estivesse acostumado.

.:.

Já era sábado, o dia do jantar, horas contadas para o encontro, e Lilia sentia como se estivesse às vésperas do fim do mundo. Por que havia tomada a iniciativa de convidar Yakov para sair, por quê?!

Não deveria ser nada demais, ela só estava indo jantar com ele, não fazendo uma seleção para o Bolshoi. Era um encontro casual, como outros que ela já havia tido antes, alguns bons, outros completamente esquecíveis, mas no fim, todos se tratavam da mesma coisa, comer algo diferente e jogar conversa fora.

Mas o que se conversa com um ex-campeão Olímpico?!

Que enorme besteira era essa impressão de Feltsman estar algum patamar acima do seu. Não era como se ele fosse um tipo de divindade, pelo contrário, o patinador se mostrou uma pessoa até bem acessível e gentil nas duas vezes que haviam se esbarrado. Poderia ser a gentileza que uma figura pública já estava acostumada? Poderia… Mas mesmo tempo, parecia extremamente genuíno. Por que ele teria perdido seu tempo para acompanhá-la para casa, se não fosse o caso?

Ou ele poderia estar apenas grato pela filha. Era evidente quão protetor Yakov era com a pequena Margosha.

— Será que eu posso convidar minhas bailarinas preferidas para jantar hoje? — Irisa Phorkomova, como gostava de lembrar a todos, agora, saltitou até onde estavam Lilia e Sinya. Enquanto Filatova já tinha se vestido e terminava de amarrar as sapatilhas, Baranovskaya ainda estava segurando as fitas, olhando para o nada.

— Como é que eu me tornei uma pessoa favorita assim tão rápido? — Sinya falou para si mesma, sendo ouvida por Lilia e ignorada por Irisa.

— Os parentes do Lukya lá para os lados de Vladivostok mandaram peixe e caviar de presente de casamento, estou pensando em fazer bolinhos!

— E como é que a gente faz para voltar, depois? — Quis saber Sinya. Ela não era muito entusiasta de passeios após o serviço, muito menos feitos em cima da hora, e, se precisasse desfrutar de um dia de lazer, certamente seria antes das cinco da tarde.

— Não se preocupe que Daniyal já está convidado, nada que duas viagens não levem vocês para casa. — Para Irisa, a solução era simples. — Ou a gente junta os dois sofás e vocês podem dormir na sala!

— Acho que não vou poder. — Sinya havia pensado nessas exatas palavras para negar a oferta; para sua surpresa e a de Phorkomova, quem as disse havia sido Lilia.

— Ué? E por que não, Lilia? — Irisa já começava a cobrar. Fosse qual fosse a desculpa, a moça já estava pensando em como contornar a situação a seu favor.

Lilia girou as fitas rapidamente, se atrapalhando ao fazer o nó, acabando com um amontoado frouxo de cetim escorrendo pelo tornozelo. Frustrada, ela levou as mãos nervosas a se firmarem ao redor do pé agitado, denúncia de sua agitação. Ela não podia contar nem mesmo com seu próprio corpo como álibi. Sentia-se traída por si mesma.

Sem saída — ou Irisa acabaria por arrancar a verdade dela à força —, Lilia respirou fundo, daquela forma audível e pouco graciosa que só a fazia parecer mais ridícula. Recomponha-se, Lilia Baranovskaya!

— Porque eu tenho um compromisso hoje.

Sinya concordou e terminou de espetar um grampo no coque, apenas por segurança, enquanto Irisa fazia questão de mostrar quão surpresa estava. Se Lilia não estaria em seu jantar, que concentraria as únicas pessoas com quem tinha amizade próxima, quem seria seu acompanhante?!

— Não é do Kirov.

— O quê?

— Seu compromisso não é com alguém do Kirov, somos do mesmo corpo de baile e eu não te vi muito próxima de ninguém, ainda, para dar tempo de estar arranjando compromisso.

Filatova encarou Irisa com uma careta que podia muito bem significar “meu Deus do céu eu só ando com loucos” ou “que linha de raciocínio estúpida é essa?”, Lilia jamais saberia. Ela mesma já havia desistido de tentar acompanhar as voltas que a mente de Irisa dava para chegar à tantas conclusões inesperadas.

— Já parou para pensar que o compromisso pode ser comigo mesma?

— Você está o tempo todo consigo mesma.

— Não é nada demais, Irisa, é só um jantar…

— Precisa que eu deixe a chave com você, ou vai dormir fora? — Sinya perguntou aquilo com tanta naturalidade que Lilia se sentiu ruborizar. A própria Irisa ficou completamente sem fala com a calmaria com a qual Sinya levava aquela situação.

— Não estou indo dormir fora.

— E também não está indo matar ninguém! — Irisa deu de ombros. Qual o problema de Lilia estar saindo com alguém e com isso estar alimentando sua imaginação que já voava alto querendo a amiga casada antes da próxima temporada? — E então? Quem é?

Irisa era o tipo de pessoa que vencia pelo cansaço, contudo, ela nem precisaria tentar o feito com Lilia, a própria já queria ter conversado sobre Yakov antes. Na verdade, ela teria bombardeado Sinya antes, assim que a menina tivesse chegado no apartamento na última terça-feira; Lilia não sabia porque tinha travado até mesmo para isso. Ou melhor, ela sabia, só não gostava de ter de admitir em voz alta. Ela tentou isso de frente para o espelho do banheiro e se sentiu ridícula.

— Você sabe quem é, ele veio no dia da formatura.

Irisa arregalou os olhos, precisando sentar no banco depois disso. Sinya, sem entender nada, apenas se encostou no armário, esperando a boa vontade de alguém ali em traduzir para ela o assunto.

O mais próximo de uma resposta que ela teve, foi o grito entusiasmado de Irisa, agudo e numa frequência sonora possivelmente só compreendida por golfinhos. Pelo jeito, era algo bom. Claro, para quem achava que aquela reação havia sido positiva.

Sinyasinyasinyasinyasinyasinyasinyaaaaaaa, vem aqui!! — Chamou Irisa, mãos agitadas e pulinhos sentados. Filatova se encolheu, olhando ao redor antes de se aproximar. Lilia parecia profundamente envergonhada agora que escondia o rosto entre os joelhos dobrados, talvez precisasse de um pouco de apoio moral. — Você já estava sabendo?

— Não, Irisa, ela não estava sabendo… — a voz de Lilia veio de baixo, abafada pela vergonha.

— Sabendo o quê?

Se inclinando para Sinya, Irisa escondeu a lateral dos lábios com uma das mãos, cuidando para que a fofoca não ecoasse para longe. Do outro lado, Lilia parecia encolher mais.

— A Lilia aqui vai se encontrar com Yakov Feltsman.

Dessa vez Sinya sorriu, tomando o espaço no banco que Irisa tinha aberto para ela.

— Quando minha mãe disse que o viu na apresentação, eu achei que ela estava sonhando — riu Filatova. — Ela era super fã dele, ficou decepcionada quando parou de patinar. Quem diria que eu ficaria sabendo que ele tem uma vida, parece tão reservado quando a gente o vê atuando como técnico nas apresentações…

— Quero é saber de onde a Lilia tá tirando tempo para ver ele! — Irisa se inclinou interessada. — Eu ainda não consegui desempacotar metade das coisas que trouxe da minha mãe.

— Você fala como se eu estivesse o encontrando há meses, Irisa. — Erguendo o rosto vermelho para as duas garotas, Lilia tentava manter-se séria. — Esbarrei acidentalmente nele duas vezes e apenas aconteceu de… — Sua voz minguou, reduzindo o suficiente para que Irisa e Sinya precisassem se aproximar mais. — ...eu perguntar se podia vê-lo de novo.

Irisa estava em êxtase, seu rosto sorridente e olhos brilhantes, entusiasta do tipo mais rocambolesco de romance possível, e a história de Lilia estava bem parecendo plot genérico de banca de revista. Irisa amava, tinha uma coleção!

— Mulher de ação, está certa, Lilia! — Sinya já via isso de outra forma. — Melhor conhecer logo e saber pra que lado isso vai dar, do que ele ficar te enrolando sabe-se lá até quando. Dependendo, você se livra logo.

— Ai que horror, Sinya, não é pra torcer pela derrota, tem que torcer pela vitória!

— Não estou torcendo pela derrota, eu só disse que é melhor conhecer as intenções de alguém logo pra não ficar perdendo tempo, depois.

Irisa negou tudo balançando a cabeça, olhos fechados em uma expressão de pura sabedoria.

— Você é muito novinha, Sinya, claramente não tem experiência nenhuma com o mundo.

Sinya franziu as sobrancelhas, o rosto redondo corando por inteiro.

— Disse a idosa, três anos a minha frente, um poço de sabedoria e conhecimento.

Não foi nenhuma palavra de Lilia que as interrompeu, mas a falta dela; silenciosa, ela amarrava suas fitas sem olhar ao redor, pensamentos longe, concentração oscilante. Certamente não teria um bom rendimento durante o ensaio.

— Lilka, por que não está sendo uma velha reclamona pra cima da gente? — questionou Irisa, inclinando-se até o rosto descansar no ombro.

— Ela tem razão, você parece preocupada.

Respirando fundo, Lilia recobrou a postura, omoplatas encaixadas, costelas para dentro, o rosto impassível, a bailarina que sempre era, a garota pouco expressiva que qualquer pessoa de fora poderia ver, aquela com cara de poucos amigos e que de fato não os possuía em grande quantidade. Era melhor que assim pensassem, que a vissem como uma pessoa difícil, que seu rosto não inspirasse confiança. Isso evitava que se aproximassem e descobrissem sua fraqueza. Se fingisse que as piadinhas por ser a mais velha da turma não machucavam, cedo ou tarde elas iriam parar de acontecer. Se treinasse de madrugada, menos erraria em aula, e menos os professores chamariam sua atenção, mandando-a desistir por ser tarde demais. Se engolisse as críticas por ter reprovado em duas admissões do Vaganova, ninguém a veria chorar. Entrar para a escola não era um feito memorável, era um já era hora. Destacar-se em aula era uma necessidade, ou qualquer escorregão descontaria suas notas, resultando em sua eliminação. Não podia se dar ao luxo de ser mediana, quando entrava atrás do resto da turma. Não podia se dar ao luxo de ser mediana quando estava atrás de todos eles.

Lilia era completamente desinteressante.

— Estou com medo e isso é ridículo, eu sei, ninguém precisa falar  — começou, um exasperar cansado acompanhando o desabafo. — E eu não deveria achar que existem pessoas melhores do que eu, mas sinceramente? Sinto que qualquer pessoa é.

— Lilia… — Irisa conhecia a luta da amiga. Costumava ensaiar com ela os exercícios que tinha no Vaganova, antes de Baranovskaya finalmente se juntar à escola; várias foram as vezes que viu Lilia afastar as lágrimas enquanto a imitava.

— Ouço desde que comecei a dançar que “se eu quisesse ser uma bailarina, deveria ter começado antes”, ou que seria apenas uma bailarina de fundo de cena. Vi crianças alcançando a ponta aos sete, mas aos dez a professora se recusava a me colocar em uma, dizendo que eu não tinha força nos pés o suficiente. Nunca soube se era verdade ou não, ela era uma bruxa comigo. — Lembrar da reprovação evidente no rosto da velha senhora que a admitiu no último lugar da fila de crianças frente a barra sempre trazia lágrimas aos seus olhos. “Você se destaca demais ficando no meio” reprovava ela. — E eu sei que só me colocaram para fazer par com o Danik porque queriam atrasá-lo — riu sem humor. — Estava chamando mais atenção que o preferido, afinal. Por que não colocá-lo com a mais atrasada da turma? — suspirou, relaxando a postura, exausta de tanto carregar aquela angústia. — E lá vou eu, correndo por mim e por ele, porque não poderia escorregar que a culpa recairia sobre Daniyal por ele ser o condutor, nada de faltar para não prejudicá-lo nas aulas em pares… — Lilia fechou os olhos, temendo o tipo de olhar que poderia estar recebendo. Falando assim ela sentia-se tão infantil. — Juro que não sei como me formei e com honra! Às vezes nem parece que ganhei dois papéis de destaque para a formatura. Me sinto tão aquém de todos eles — ela referia-se aos demais bailarinos que compunham o balé Kirov. —, me sinto uma bailarina muito inferior a vocês, como se na primeira apresentação oficial eu fosse tropeçar e levar todo mundo num efeito dominó de babados e… Meu Deus,  eu arremessei o leque na minha primeira apresentação formal como bailarina! — riu, mãos cobrindo o rosto. Não tinha graça como tentava mostrar a si mesma. Lilia queria muito chorar. — Eu nunca de fato alcancei alguém além de Irisa e agora você, Sinya. Se ainda fosse alguém do corpo de baile, sabe, eu poderia estar nervosa, mas é uma pessoa do nosso meio, provavelmente eu já teria visto de longe, ou ouvido falar sobre, mas ele? Ele é Yakov Feltsman. — As duas bailarinas se preparavam para retrucar, quando ela continuou. — Eu nem sei porque tomei a inciativa de convidá-lo. Vale mesmo a pena tentar conhecê-lo? O homem que aos dezoito levou o ouro olímpico com folga? Que em sessenta e oito colocou um patinador no pódio nacional? Que história minha eu vou contar? A de que ficava chorando de noite pra minha mãe não ouvir? Não tenho nada a oferecer, só irei chateá-lo. E mesmo se desse certo, ele tem Margosha. Não posso cobrar que ele abandone os cuidados com a filha sempre que quiser marcar algum encontro.

Ela finalmente se calou, mergulhando o vestiário num silêncio pesado. Era uma sorte que apenas as três estivessem ali, sortes de quem chega mais cedo.

— Eu jamais imaginaria que você pensasse tudo isso, Lilia — confessou Sinya. — Quero dizer, eu te vi passando suas variações no dia da formatura, antes de ir se arrumar na camarim. Eu pensei “caramba, vou me formar ao lado de todas essas bailarinas experientes, o que é que eu tô fazendo aqui?” — Irisa riu, se inclinando para envolver um dos braços ao redor de Lilia. — “Eu quase sumo nesse tutu, minha nossa!” — Dessa vez, Lilia também sorriu. — “Olha só essa garota que fez Kitri, até jogando o leque fora ela parece profissional!” — Lilia escondeu o rosto novamente. Se envergonharia até a morte por aquilo. — Eu sei como é ser assombrada pela insegurança. Não pelos mesmos motivos que você, é claro, mas eu entendo. Não é simplesmente enfrentar e fazer acontecer, a gente sabe que não. É difícil superar as coisas quando a gente ouve da maioria o oposto. Como se convencer de que merece fazer parte de um grupo, se te negaram um, antes? Não é sua culpa se sentir assim...

— Lilka, se eu penso nos anos que nos conhecemos, eu só consigo lembrar de como você se dedicava e se esforçava, na escola, nas aulas de balé… — Ela riu ao lembrar, confessando com a voz começando a embargar. Irisa, sempre dramática. — Lembro que eu prestava atenção nas aulas para poder passar para você depois exatamente como os exercícios eram, e você os fazia melhor do que qualquer menina da classe. — Lilia esfregou os olhos; ainda não estava chorando, mas sentia poder derramar lágrimas a qualquer momento. — Você é uma das pessoas mais fortes que eu conheço e a sua história mostra isso, Lilka…

— E só de como chegou tão longe, já é uma história e tanto pra contar.

Lilia respirou fundo, sentindo o aperto no coração afrouxar. Nunca se imaginou desabafar, muito menos de uma vez só, todas aquelas situações que constantemente cutucavam sua mente e abalavam sua calma.

— Obrigada por me socorrerem — agradeceu em voz baixa. — Excelente maneira de começar o dia, eu sei.

— Como ódio no café da manhã, isso não foi nada — brincou Sinya, abanando o ar como se não fosse nada.

— Espero que não por minha causa…

— O ódio é cumulativo de uma semana toda de estresse com trabalho e escola — disse, antes de chamar atenção de Irisa. — Aceito ir no seu jantar especial de bolinhos, desde que você me ajude com minha redação, Irisa.

— Eu ajudo! — A garota estava empolgada novamente, o abraço dado em Lilia estreitando sem que ela notasse. — E ainda te devolvemos antes que a Lilia chegue!  — Ao senti-la enrijecer, Irisa reduziu o tom. — Você ainda vai...? 

Baranovskaya olhou para as sapatilhas, pés batendo contra o piso.

— Vou. — Tanto Irisa quanto Sinya sorriram para sua decisão. — Mas acho bom ter bolinhos quando eu voltar.

— Justo.

Sorrindo um pouco mais calma, ela se levantou. Estava decidido.

.:.

Yakov teve a estranha impressão de que duas cabecinhas escondidas atrás da porta olhavam para ele.

Ao notá-las recuando após serem notadas, confirmou ser verdade.

Ele até chegou a olhar ao redor, procurando a pessoa pela qual esperava ter sido confundida, mas não, somente ele estava ali, parado em frente ao Kirov às sete horas da noite, rígido feito uma estátua. Uma estátua apavorada.

Mais nervoso ainda ele ficou quando reconheceu Lilia atravessando a porta de entrada, acenando em despedida para duas bailarinas que se afastavam aos tropeços, sem saber para que lado olhar. Se Yakov tivesse reparado melhor, teria notado se tratar das mesmas cabeças que o espiavam há pouco.

Ele não havia reparado por estar distraído demais encarando Lilia se aproximar, provavelmente sustentando a maior cara de besta do mundo. Oh, se Efimiya estivesse ali, Yakov não teria um pingo de paz pelo resto daquela noite. 

— Oi… —  Lilia foi a primeira a cumprimentar, o pegando completamente desprevenido. Era ele quem deveria tê-la cumprimentado antes, ao invés de se comportar como um bobo.

— Boa noite, Lilia. Tudo bem? — ...que bosta de cumprimento é esse, Feltsman?, pensou, bronqueando a si mesmo. Você pode fazer melhor do que isso, vamos, é só pensar.

— Tudo, sim. Como foi sua semana? — Ela levou uma mecha de cabelo inexistente para trás da orelha. Não que Yakov tenha notado.

— Cansativa, não via a hora do dia de hoje acabar... — Ao perceber a interpretação errada que aquela frase poderia passar, arregalou os olhos e se corrigiu prontamente. — ...porque assim eu poderia te ver!

Um pouco desesperado, talvez? Esperava que não.

Para sua surpresa e alívio, ela sorriu suavemente.

— Também esperava te ver.

Lilia esperava que ele não notasse o nervosismo em sua voz.

Ele não notou.

— Bem, que bom então que ninguém me segurou, hoje, odiaria te fazer esperar — tentou fazer uma piada, sem saber se de fato funciona. Yakov e piadas não funcionavam muito. — Posso…? — perguntou, apontando para a bolsa dela. Agradecendo, ela entregou a sacola, ambos começando a se afastar lentamente do teatro. — Descobri um restaurante com um cardápio bem variado. Levei minha filha para provar o blini, ela aprovou. Fiquei interessado no goluptsi deles.

— Faz tempo que não como goluptsi! — Sem saber o que fazer com as mãos, Lilia tentava ajeitar a roupa. Por que havia aceitado as dicas das amigas naquele breve momento de desespero? A blusa rosa-claro de Irisa claramente era maior do que ela esperava, a gola alta alcançando o queixo, enquanto a saia de Sinya claramente era curta demais. Sentar vestindo ela seria um problema. — Minha mãe costumava fazer sempre quando eu morava com ela, mas aí eu entrei no Vaganova, a comida do refeitório não é tão variada.

E já começamos falando sobre balé, Lilia, que previsível.

— Acho que nenhum de nós consegue fugir das cantinas, não? — ele riu. — Eu tento variar tanto quanto possível as refeições em casa, Margosha gosta de participar do processo, ela lava o repolho ou me entrega uma colher e já se sente importante no processo — sorriu. — Gosto de incentivar.

E já começamos falando sobre Margosha, Yakov, que previsível.

Olhando para si, Lilia sorria discretamente. O cabelo preso em um rabo de cavalo bagunçava levemente com o vento calmo. Não soube dizer o que sentiu, mas não era o saltar de um coração aos pulos, mais como a sensação de estar caindo e caindo… acompanhada da vontade de querer cair para sempre.

— Me desculpe — se notou dizendo. —, acho que só sei falar sobre a minha filha.

Lilia arregalou os olhos verdes, surpresa em vê-lo tão desconcertado com aquilo. Estaria ele tão nervoso quanto ela? Não… Claro que não…

Certo?

— Não se preocupe, eu só sei falar de balé.

— Balé é bom! Eu tinha aulas quando patinava, gostava bastante.

— Verdade? — Lilia estava empolgada. Sentindo-se um pouco mais confiante, Yakov sorriu.

— E sabe com quem eu costumava ensaiar? — Ela continuou o olhando interessada. — Soloviev.

— Sinto muito por você. — Lilia enrugou o nariz, fazendo Yakov rir alto pela reação inesperada.

— Por que?! Ele é uma ótima pessoa!

— Pois me apresente esse aí que você fala, eu nunca nem vi! — Ela rebateu, quase indignada. — Soloviev não tolera os novatos, acho que não tolera nem os mais antigos.

— Não pode ser! Esse não é o Soloviev que eu conheci!

— Ah, Yakov Feltsman, o mundo das artes… — dramatizou tal qual imaginava Irisa o fazendo. — Ele corrompe até o mais puro dos corações.

Yakov riu, concordando com ela.

— E como. Nunca mais fui o mesmo depois de interpretar o Rei Rato na adaptação do balé júnior.

Você já dançou O Quebra-Nozes? — Lilia não podia estar mais empolgada. O que mais ela tinha para descobrir sobre Yakov Feltsman.

— O que eu fiz, eu não sei, não enxergava nada com aquela máscara. — Lilia riu, alto e desconcertante, mas que encantou Yakov. Tinha sido ele responsável por provocar uma risada tão espontânea?

— Ela é horrível, não é? Passei coisa parecida na mesma produção, mas como um dos filhos da Mother Ginger, sabe, aqueles que saem debaixo daquela saia que parece uma tenda? Sete crianças embaixo dela, ninguém sabia para onde estava andando! — Ela ria ao lembrar. — Eu era a mais velha da turma, tinha que andar o tempo todo arcada para a frente, era horrível!

Tão natural quanto o caminhar suave e a conversa jogada fora, foi Yakov oferecendo o braço dobrado antes de atravessar a rua, gentilmente pego por Lilia. Continuando a trocar histórias e risadas diversas até o estabelecimento, nenhum dos dois poderia dizer estar desfrutando de uma noite desinteressante.

Mais tarde, quando Lilia chegou em casa, ela descobriu que o jantar de bolinhos havia sido feito lá — e que todos a esperavam no escuro.

Mais tarde, quando Yakov chegou em casa, ele descobriu que Irina tinha ligado e que, por acaso, Margosha havia contado que o pai tinha saído com a nova namorada. Lagutina não acreditou quando ele ligou de volta e tentou dizer o contrário.


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Notas finais do capítulo

Irina: "CRIANÇA NÃO MENTE, FELTSMAN, QUE É QUE CÊ ANDA ESCONDENDO DA GENTE?? >:o"

Ai, ai, o que eu faço com as bolinhas de insegurança que eu mesma criei? :v Difícil quando você é acostumado com drama, tudo que você escreve começa a pender pro tema. Fazer o que :v

Segue tabelinha de curiosidades do dia!

— Ded Moroz é o Papai Noel russo;
— Cheburashka é o personagem homônimo de uma animação stop motion que se popularizou no fim dos anos 60, aparecendo primeiro em formato de livro. Aceito pelúcias de presente :v *folgada*
— "Boa noite, pequeninos!" ("Spokôinoi nôtchi, malichi!") é um programa infantil também surgido nos anos 60, e que perdura até hoje! Com dez minutos de duração, ele passa antes do jornal local. A ideia é que a criançada deveria ir dormir depois de se despedir dos fantoches de pelúcia. Curiosidade extra: o Kermit (sapo Caco dos Muppets, no Brasil), já se encontrou com Khriucha (o porquinho do programa) na era soviética, numa espécie de reunião diplomática.
— Goluptsi é uma espécie de "charuto" recheado, que pode ser de pimentão ou couve. Temos a mesmíssima coisa no Brasil.
— Blini é um tipo de panqueca que pode ser recheado com todo tipo de coisa. Pelas fotos parece bom :v
— Gute Nacht: Boa noite de despedida, aquele que se diz quando se despede/vai dormir, equivalente ao "good night" inglês.
— Schlaf gut: Durma bem.

E por hoje é isso ;) Te espero no próximo capítulo!



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