Cursed escrita por missad


Capítulo 2
II- ALUCINAÇÃO


Notas iniciais do capítulo

Oláaa pessoas! Trouxe mais um capítulo e espero que gostem ♥

Sumário de tradução de algumas palavras:

Strega - Bruxa (em italiano)
Clypeus - Escudo (latim)
Dolor - Dor (latim) {tive que procurar esse em alguns lugares pq no google tradutor está meio confuso kk espero que esteja correto}



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II

 

 

 

Acompanhava distraidamente com o dedo indicador os títulos dos livros interessantes nas prateleiras. A luz amarelada e aconchegante dava um ar muito charmoso ao recinto. De vez em quando olhava de soslaio Alastair e vovó conversarem. Mordi o lábio curiosa, me perguntando se continuaram o assunto sem mim ou se eu só estava um pouco paranoica. Tentei não borbulhar a mente com as coisas estranhas que vovó acabara de dizer.

E falhei miseravelmente.

Quer dizer então que o tal amigo dela não havia falecido e ela acabou não indo a nenhum enterro. Isso era bom, de certa forma. Porém não explicava o que ele teria a ver comigo e com meu irmão. Vovó também disse algo como nos esconder e proteger... mas de que? Ou de quem, eu deveria me perguntar.

Dei um salto com a vibração de meu celular no bolço do jeans, me tirando de meus devaneios. Embolei-me um pouco com ele nas mãos até, finalmente, atendê-lo:

 — Alô?

— Luna, oi. Sou eu, Henry. — Prendi a respiração e agradeci aos deuses que ninguém podesse ver meu rosto enrubescer atrás dos livros.

— Oi, Henry. — Eu disse nervosa, lembrando-me da conversa que tivera mais cedo com Alie. — Tudo bem?

— Sim, claro. — Havia uma pontada de nervosismo em sua voz, mas eu não poderia ter certeza. — É, você não está em casa...?

Franzi um pouco o cenho. Agora não havia dúvidas do nervosismo em sua voz geralmente calma.

— Hm, na verdade não. Eu e Alastair viemos encontrar a vovó. — Expliquei, ignorando veementemente a vozinha interior que me azucrinava para não dizer onde estávamos.

Vozinha paranoica e boba.

— Ah, entendo. Então estão em Londres? — Pensei ouvir um leve arfar em sua respiração, mas como disse, não poderia ter certeza.

De qualquer forma, a pergunta só fez deixar a vozinha paranoica mais alta.

— Aham. — Murmurei, ponderando que Londres era muito grande para que ele soubesse exatamente onde eu estaria.

E de toda forma, por que ele viria aqui atrás de mim? Não fazia sentido nenhum.

— Pensei que ela estava em um enterro.

— Ah, bem, ela estava eu acho... — Respondi confusa. Balancei a cabeça tentando endireitar os pensamentos. — Ela quis comemorar nosso aniversário em um restaurante aqui, foi isso. — Expliquei pigarreando, escolhendo deixar oculto o fato de que aparentemente não houvera enterro algum.

— Ah — ele respondeu. Devia estar desorientado com minha confusão.

Bati de leve a mão na testa, envergonhada.  Por que eu tinha de ser tão confusa?

— Isso é bacana. É um restaurante legal? — Continuou.

— Sim, sim. — Respondi casualmente, como se a pergunta não aumentasse a paranoia.

— Eu conheço? — Sua voz também era casual.

 Droga.

— Hm, não sei. É alguma coisa elfos... — Tentei parecer esquecida do nome, apesar de tentar também ignorar a vozinha.

Acredito que não haveria mal nenhum, caso dissesse o nome do restaurante. Eu estava vendo coisa onde não tinha.

— Legal! — Franzi o cenho novamente com seu entusiasmo. — Legal. — Repetiu mais calmamente agora. — Vejo você depois então...

— Henry, espere! — Chamei.

— Sim?

— Você me ligou para que... exatamente? — Perguntei ainda um pouco desconfiada – e nervosa, pois a questão baile ainda pairava minha mente.

Houve um breve silêncio em resposta. Ouvia apenas sua respiração irregular do outro lado.

— Eu... Queria saber se a encontraria em casa. Nada de mais. — Ele disse por fim. A voz ainda aparentando um pouco de nervosismo.

— Entendi. — Queria dizer que ele poderia me encontrar em casa amanhã, mas achei que era algo óbvio então permaneci em silêncio.

— Vejo você por aí. Tchau. — Henry disse rapidamente e desligou.

Encarei o celular um pouco aflita por alguns segundos, sem entender claramente o que essa conversa confusa – e constrangedora por minha parte – havia significado. De qualquer forma, poderia ter certeza de que a vozinha paranoica não era nada além disso: pura paranoia.

Os acontecimentos que vieram seguida foram rápidos em demasia. A luz aconchegante do local piscou, as lâmpadas soltando um barulho discreto e rápido. A escuridão durou apenas alguns segundos, meus olhos nem tiveram tempo de piscar para tentar acostumar a vista.

E então eu senti muitas coisas ao mesmo tempo.

Primeiro o cheiro. Inebriante e doce. Algo que nem com os melhores vocabulários e dicionários eu seria capaz de traduzir. Senti minha cabeça girar quando o aroma entrou por minhas narinas. Em seguida senti o toque frio e fluido de algum tecido sobre mim. Ergui as mãos cegamente, por puro reflexo, sentindo de leve nos dedos o tecido pesado de que eu não pude fazer ideia de que direção vinha.

Arfei nervosa, dando um meio passo para trás, tentando fugir do tecido desconhecido, mas me choquei em algo duro e grande a minhas costas. Arquejei novamente, sentindo um grito nascer na garganta. E então algo gélido como uma pedra de gelo tampou a metade inferior inteira de meu rosto antes que meu grito saísse.

Sentia a pele queimar onde o gelo tocava. Fechei os olhos e gemi com o aperto de ferro envolvendo meu corpo.

Eu estava presa. Meus pés não tocavam mais o chão. Eu podia sentir, de alguma forma, o vento esvoaçar meus cabelos. Não conseguia respirar com o gelo tampando meu rosto. Apesar de sentir o vento de algum lugar, nada era claro.

Eu só queria respirar, desesperadamente. Tentei violentamente me mover, me debater. Senti minha pele amaçar o ferro que me prendia, machucando meus ossos. Mas nada importava, eu só precisava respirar.

E então eu não tinha mais forças para me debater. Meus olhos ardiam e eu sabia que estava chorando, engasgada. Eu podia sentir minha consciência se esvair, as batidas de meu coração tomarem um ritmo mais lento e forte, martelando minha caixa torácica.

§§§

 

 

 

 

Tentei abrir os olhos, sentindo uma pontada aguda na cabeça. Gemi com as luzes distorcidas que rodopiavam, claras de mais, em cima de mim.

— Que maravilha! — Ouvi uma voz masculina desconhecida ecoar.

Gemi de novo, levando as mãos à cabeça, desnorteada. Onde é que eu estava?

— Onde... — minha voz saiu engasgada.

Shh, não se preocupe. — A voz disse.

Pisquei algumas vezes, esfregando os olhos e me apoiando em um braço para sentar. Eu devia estar no chão, pelo frio e dureza de onde meu corpo jazia. Senti algo extremamente gelado segurar a mão que eu a pouco esfregava os olhos.

Ofeguei de pavor, lembrando de súbito o que havia acontecido. As memórias inundaram minha mente em apenas uma batida de meu coração.

Abri os olhos apavorada.

Um homem branco como a neve, branco como nunca havia visto antes, segurava minha mão trêmula. Ele sorria, os dentes como marfim para mim. Seus olhos tinham um tom pavoroso de vermelho sangue, meio leitosos. Seus cabelos longos e negros confundiam-se com a capa pesada que o cobria. Provavelmente o tecido que sentira na cafeteria.

Senti a vista embaças com as lágrimas quentes se acumulando.

Num reflexo, tentei puxar a mão do gelo das do homem, mas foi inútil.

Observei tremendo, feito uma presa prestes a ser devorada, o sorriso esvair-se da face do desconhecido a minha frente. Seu rosto se inclinou levemente para a direita, como se estivesse confuso com algo.

Mas então seu sorriso voltou, três vezes maior. Os dentes brancos cintilaram na luz e ele soltou uma gargalhada que ecoou pelo recinto.

— Fascinante. — Seus olhos rubros quase arregalados cintilaram de entusiasmo.

— Tem certeza de que ela mereça mesmo nosso beijo, Aro? — Uma voz soprano feminina – quase infantil – disse, me chamando a atenção.

Desviei os olhos do homem a minha frente, reparando pela primeira vez o local onde me encontrava. As construções quase todas em mármore, extremamente brancas, machucaram minha vista. Não vi nenhuma janela, nada além do branco marmóreo.

Concentrei-me na mão gélida do homem, encarando seus olhos novamente. Então formas estranhas pairaram meus pensamentos, inebriados. Como se envoltos por uma bruma pesada.

O homem arfou me fazendo sentir seu hálito gélido, adocicado de mais. Engoli a náusea que me causou e me concentrei em seus olhos, nem ao menos pisquei.

Eu não saberia explicar com maestria o turbilhão de sentimentos e imagens confusas que abarrotaram minha mente ao mesmo tempo, quase como se nem estivessem lá.

Mas um nome permaneceu em minha mente.

— Alice... — repeti em um sussurro confuso as diferentes vozes que ecoavam em minha cabeça.

Eu não sei o que este nome significou, mas o homem me soltou imediatamente, como se repelido. Ele segurou a cabeça com uma das mãos e um som rouco, ruidosamente alto, medonho e peçonhento saiu de seus lábios finos, os dentes expostos.

Abracei a mim mesma, apavorada. Senti novamente a pontada forte, aguda na cabeça. Dez vezes mais forte agora.

As vozes diversas que começaram a murmurar pareciam muito distantes. Eu senti a confusão de brancos e luzes girar e então o chão frio em meu rosto.

— Aro! O que ela fez? — Ouvi alguém dizer.

 

Quem é Aro? O que estava acontecendo?

Desta vez, não perdi minha consciência totalmente. Ouvi a voz do homem que segurara minha mão ordenar que não me tocassem, respondendo a voz desconhecida. Ele devia ser o tal Aro.

Apesar de muito confuso, ouvi-lo dizer algo como que eles não poderiam cometer erros.

Consegui sentir algo me erguer do chão frio e, de repente, senti algo macio sob mim, quente. E tudo escureceu.

Permaneci imóvel, sem coragem nem para abrir os olhos. Prendi a respiração quando um soluço tentou escapar, sentindo meu rosto umedecer com as lágrimas. Não sei por quanto tempo fiquei assim, paralisada no breu. Mas eu sabia que não podia ficar para sempre. Onde é que eu estava? Onde estava Alastair e vovó? Será que estavam bem? Eu tinha que descobrir.

Forcei meus olhos a se abrirem e olhei com cautela o local pouco iluminado. Era um quadrado estreito, com uma cama simples onde eu me encontrava, um interruptor perto da porta e mais nada.

A luz que adentrava das frestas da porta me causaram arrepios. A sombra de dois pés irrompeu, seguida por duas batidas leves na porta.

Eu não respondi.

— Posso entrar? — Era uma voz feminina.

Perdurei em silêncio. Não é como se parecesse que adiantaria de algo caso eu respondesse.

Uma mulher alta adentrou o pequeno quarto, ascendendo no interruptor a luz forte da pequena lâmpada ao teto.

Ela era muito bonita, também branca mas com aspecto saudável; nem de longe parecida com o tal do Aro. Ela sorriu calidamente para mim, os lábios pintados de um tom forte de vermelho.

— Está com sede? — Perguntou erguendo uma garrafa de água sem rótulo.

Assenti, sentindo a garganta queimar e agradecendo mentalmente por não estar mais sentindo o cheiro adocicado que me deixava tonta. Abri a garrafa e a bebi desejosamente, com sede.

A mulher permaneceu parada, me observando beber a água sem dizer nada. Estendeu a mão para pegar a garrafinha vazia quando eu terminei. Enxuguei os lábios com as mangas do suéter e a fitei, confusa.

— Me chamo Margarete. — Ela disse casualmente, segurando-me delicadamente pelos cotovelos e me ajudando a ficar de pé. — Você precisa ir ao banheiro? — Ela disse me guiando para fora do quarto.

Assenti envergonhada.

Olhei envolta embasbacada para o lugar. Parecia um hotel de luxo, a decoração art déco iluminada, apesar de não haver, novamente, nenhum tipo de janela.

Ela me guiou por um corredor largo e vazio, com uma das mãos em minhas costas. Virou-se um passo a minha frente, empurrando uma porta larga e branca para eu entrar. O banheiro seguia a decoração do saguão de que viemos, mas os espelhos na parede onde as pias ficavam ocupavam praticamente a parede inteira.

Ela empurrou a portinhola da primeira cabine para que eu entrasse e a fechou atrás de mim. Era perfeitamente limpo e branco. O cheiro de produto de limpeza pairava suave no ar.

Conseguia observar os sapatos escarpam vermelhos parados em frente a minha cabine enquanto eu urinava. Completamente constrangedor. Engoli a vontade de chorar, me apressando para sair logo da cabine.

Encarei meu reflexo do enorme espelho enquanto lavava as mãos. Meus olhos estavam avermelhados e claramente esbugalhados de medo. O cabelo desgrenhado e embolado. Depois olhei para o reflexo de Margarete, concentrada em mim.

— Você não é como eles... — Disse, sem saber se o plural estaria certo por não ter conseguido observar com cuidado mais ninguém além de Aro.

Mas com certeza avistei mais pessoas com capas, então arrisquei, tentando relaxar minha expressão. Talvez Margarete fosse minha única esperança.

— Não. — Ela riu suavemente, o olhar esperançoso. — Ainda não. — Seu sorriso aumentou e eu reprimi um tremor, secando minhas mãos na roupa mesmo.

— Posso perguntar por quê? — Arrisquei, fingindo saber do que exatamente estávamos falando.

Ela me olhou cuidadosamente antes de responder.

— Vida eterna, beleza divinal... — Margarete sorriu timidamente.

Mas pareceu se arrepender no mesmo instante, as feições preocupadas. Como se tivesse falado de mais.

— Sim. — Eu concordei sorrindo, acompanhando seus paços. Fingindo ao máximo que estava tudo bem.

Ela tanto quanto eu, não devia saber o motivo para eu estar aqui, supus. Mas sem sombras de duvidas sabia muito bem onde estava e com quem – ou o que — estava lidando.

— Realmente fascinante. — Continuei. — Mas o que está esperando, então? — Retribui seu olhar brilhante de entusiasmo, quase inocente.

Senti uma pontada de medo que meu blefe na verdade não estivesse fazendo nenhum sentido.

— Você quer dizer, para me transformar? — Ela perguntou em um sussurro. — Não me diga que você também esta aqui por isso... — Margarete me fitou de cima a baixo, pela primeira vez desconfiada.

Gelei por um segundo. E então forcei uma risadinha casual que, por sua expressão, fora perfeitamente convincente.

— Não, vê? — Eu disse sorrindo, entortando levemente a cabeça para o lado. Estava agindo por puro instinto e intuição.

 Os olhos castanhos de Margarete se arregalaram em um instante, empalidecida,  e depois seu cenho enrugou confusa.

— Não, não pode ser. Vampiros não precisam beber água e muito menos usar o banheiro. Você está blefando. — Ela disse rápido.

Desta vez, não consegui fingir nada. Senti meu coração acelerar desenfreadamente.

Vampiros?

Eu nem via mais Margarete em minha frente. Só conseguia pensar que eu realmente devia estar maluca, delirando. Eu devia estar trancada em uma sala de hospício, como minha tia-bisavó. Sim, era isso então. Eu enlouqueci completamente em algum momento e tudo isso não passa de uma grande ilusão de uma mente doente.

Segurei a cabeça entra as mãos, tentando acalmar meu coração. Vi de relance o escarpam vermelho de Margarete afastar-se um passo para longe de mim.

Que sensação infernal. Eu podia sentir a raiva esquentar meu corpo. Trinquei os dentes, frustrada com tudo isso.

Respirei fundo e olhei Margarete nos olhos. Pensei que ela estivesse olhando para mim, mas reparando melhor, vi que olhava algo além de mim. Virei-me para tentar descobrir o que era, mas não havia mais ninguém no saguão.

— Margarete? — Eu toquei seu braço de leve, sentindo que sua pele estava bem mais quente do que minha mão.

Ela respondeu com um gemido torturado, seu corpo trêmulo. Afastei-me assustada.

— O que está acontecendo aqui? — Uma voz masculina e claramente irritada soou, antes de no segundo seguinte um homem, também encapado, surgir entre nós.

— Humana inútil. — Ele disse sustentando o peso desfalecido de Margarete, segurando-a pelo braço. Ela continuava com os olhos fixos em nada e tremendo, balbuciando coisas inaudíveis em choramingos.

De repente, mais outras duas pessoas encapadas juntaram-se a ele no saguão. Tentei me afastar, encolhida na parede perto de mim.

— Nossa, ela tem realmente um cheiro irresistível. — Uma menina quase do mesmo tamanho que eu disse, a mesma voz de mais cedo.

O timbre doce, infantil, dava-lhe a impressão de não passar dos quinze anos. Fazia-lhe jus ao rosto angelical. Os cabelos loiros presos rente ao coro cabeludo em um rabo de cavalo.

— Tem certeza de que ela será tão útil assim? — Um menino ao seu lado disse, a voz e o rosto muito parecidos com os da loira, mas era uma cabeça mais alto e seus cabelos mais escuros.

Ninguém respondeu.

Mais pessoas brotaram no salão, como fantasmas. Todos de olhos pavorosamente rubros.

— Levem-na até Aro. — O homem que segurava Margarete disse entre os dentes, sem me dirigir o olhar.

Em um piscar de olhos, os dois jovens me ergueram pelos cotovelos, um de cada lado. Tudo tornou-se um borrão. Senti meu estômago embrulhar.

E estávamos novamente na sala completamente marmórea de antes.

— Tsc. — A menina loira estava a minha frente agora. — Que pena. — Ela disse tocando meu rosto, as mãos frias como gelo. — Queria prova-la. — Seu rosto era inexpressivo.

— Jane, querida. Seja boazinha. — Aro surgiu atrás da menina, acariciando o topo de sua cabeça sem desviar os olhos medonhos de mim.

— Sim, mestre. — Ela suspirou e foi em um vulto para o lado do menino no canto do enorme salão.

— Então quer dizer que você estava aprontando com os humanos. — Ele disse soltando uma gargalhada áspera. Engoli em seco. — Há séculos não vejo um dom como este. — Ele disse se abaixando um pouco para me olhar de perto.

Prendi a respiração. O encarando com todo o súbito de coragem que me restava. Se eu iria me tornar janta de vampiro, pelo menos um pouco de coragem eu posso fingir ter...

— Definitivamente, não podemos esperar mais tempo.  — Ele suspirou, me olhando como uma criança olha um brinquedo novo. — Mas antes... — Seus lábios curvaram-se em um sorriso macabro. — Por que não se junta a nós, querido Henry.

Eu congelei onde estava. Meus pés parecendo pesados como chumbo. Lembrei-me de seu telefonema e de toda minha desconfiança.

Senti meu corpo começar a tremer.

Ou ele também poderia ter sido de alguma forma sequestrado, como eu.

Arfei ao ver a cabeleira platinada adentrar pela mesma porta de que eu havia entrado, minutos atrás.

— Oi, Luna. — Ele sorria, tranquilo.

Eu estava errada. Ele sabia exatamente o que estava acontecendo. Dei um passo para trás, instintivamente.

— Mas você... — minha voz soou fraca e trêmula. — Você é...

— Humano? — Henry riu com desdém. — Sim. Parece que já descobriu com o que está lindando, não é. — Seu rosto tomou tons de sarcasmo. — Não sentiu pena de entrar assim na mente da pobre Margarete? — Eu não consegui responder.

— Sim, Luna. Ainda sou humano. Mas não por muito tempo, com a sua ajuda. — Ele sorriu, caminhando por mim e parando ao lado de Aro. Virei-me para olhá-los, tonta e confusa.

Houve um breve e ensurdecedor silêncio.

Strega! — Aro sussurrou alto, como quem dá um susto em um bebê. Saltei sem sair do lugar.

Strega.

A palavra repetiu-se como um eco por minha mente. Consegui visualizar minha mãe e papai lendo histórias para mim e para meu irmão, histórias de bruxa. Podia ouvir vovó nos contando sobre lendas nos falando sobre as raízes da família e como muita coisa havia se perdido. Um turbilhão de cenas e fleshbacks enxurrou minha mente. A história que minha avó contava sobre sua própria tia ter sido trancafiada em um sanatório por ser diferente.

Alice!

Era o nome de minha tia-bisavó. O nome que ouvi quando Aro me tocou.

 E mesmo com todas essas peças, nada parecia se encaixar. Nada parecia fazer sentido.

Os humanos são tão frágeis não é? — Aro disse entre outra risada. — Agora que está esclarecida, venha Alec. — E então o menino parecido com Jane estava ao meu lado.

E eu não via mais nada além de uma densa fumaça negra. Perguntei-me se não estava morta. Mas esse vazio não conseguia impedir a dor que queimava em meu peito. Não segurei um soluço, mesmo sem sentir as lágrimas caírem.

Não, eu não podia estar morta. Eu não podia deixar que achassem Alastair, nem vovó. Se isso de alguma forma tem a ver com nossa linhagem, com nosso sangue... eles iriam atrás de Alie. Eu não podia desistir assim.

Forcei meus músculos a se mexerem, mesmo com a dormência. Debati-me tentando olhar em volta. De onde essa fumaça vinha? Eu não tinha visto nenhum fogo. Continuei forçando meus músculos, tentando me debater, pensando no fogo.

Um rosnado irrompeu a absoluta mudez. E a fumaça sumiu.

— Alec! — Era a voz de Jane, que agora sem a fumaça tampando minha visão, pude ver segurá-lo nos braços, enraivecida.

Vi seus olhos rubros cheios de ódio encontrarem os meus e sabia, de alguma forma, o que se viria. Uma dor insuportável, como se estivesse sendo queimada viva.

Ignorei a confusão que trepidava em minha mente com o fato de como eu poderia ser capaz de saber disso ou como havia conseguido me livrar da fumaça e, novamente por instinto, forcei meu latim precário.

Clypeus. — Eu disse firme, sentindo uma onda de calor percorrer meu corpo, mas nada me queimar.

Permaneci encarando os olhos, agora incrédulos, de Jane.

— Não, de novo não! — Ela berrou, erguendo-se.

E com isso, eu não poderia lutar.

Suas mãos estavam em meu pescoço, um aperto agonizante. Tossi engasgada, balançando os pés fora do chão enquanto ela me erguia pressionada a parede. Um rosnado metálico escapava de sua boca aberta, os dentes brilhantes e pontiagudos.

Então era o fim?

A imagem de meu irmão preencheu minha mente.

Não. Não podia terminar assim.

Não!

Segurei as mãos frias que prendiam dolorosamente meu pescoço, e dessa vez, não iria me deixar ficar confusa. Não importava agora se as coisas faziam sentido ou não. Eu não tinha escolha. Olhei nos olhos vítreos de Jane e soube ali, o que as visões confusas eram.

Memórias.

Alice de alguma forma estava nas memórias de Aro, mas eu lutei contra elas, embaralhadas. Dessa vez eu não lutava, sentia as memórias de Jane passarem como um álbum de fotos vivo e acelerado diante de meus olhos, mas muito mais rápido, com muito mais informações do que seria possível. Tantas, que era difícil focar apenas em uma.

No entanto, uma parecia latejar. A imagem de uma mulher linda, de cabelos escuros e incríveis olhos cor de ouro a encarando em um sorriso triunfal. Senti a frustração de Jane como se fosse minha. Seu dom não funcionava nessa mulher, por alguma razão.

Pare! — ela bradou. — Pare, saia da minha cabeça! — O aperto de Jane afrouxou minimamente, senti o silencio mortal no salão.

Eu imitei o sorriso da mulher, agora com o aperto frouxo. Imitei sem tirar da mente a imagem nítida, triunfal. Eu não sabia exatamente como ela conseguia repelir o dom de Jane. Mas eu queria muito ser capaz de fazê-la sentir a dor que ela causava aos outros.

E então a palavra veio em minha mente, como uma chave.

Dolor — Eu disse, mais baixo que da ultima vez, a voz presa com o aperto de ferro. Meus olhos ainda colados nos de Jane.

E ela cambaleou de joelhos, um rugido estilhaçado escapando de sua boca aberta. Eu também caí, tossindo e esfregando onde ela estava com a mão, me sufocando.

— Impressionante. — Era a voz de Aro.

Permaneci no chão, tirando da mente qualquer confusão que parecia vir com tudo isso. A adrenalina correndo gelada em minhas veias. Olhei com raiva para Henry, que parecia indiferente. Percebi então que o salão estava cheio.

Pousei meus olhos em um homem que olhava-me com os olhos tristonhos, como se nada daquilo o agradasse. Ele também usava uma capa, tinha a mesma pele de giz dos outros e os olhos rubros. Mas ainda sim, seus olhar tinha algo mais humano. Até mais humanos do que o próprio Henry.

Aro acompanhou curioso meu olhar.

— Marcus, irmão. — Ele levantou uma mão, chamando o homem tristonho.

— Sim? — Marcus disse já ao lado de Aro.

— Por que não faz as honras? — Aro sorriu macabro, como tudo o que fazia.

— Certamente, irmão. Mas a visita já está chegando. — Sua voz pacata também era tristonha e ele não me dirigia o olhar, estava fitando o vazio.

— Visita? — Ele repetiu confuso.

Repentinamente seu sorriso sumiu. Dando lugar a uma máscara perfeitamente imóvel, como uma estátua.

— Sim. Achamos que era alguma brincadeira de mau gosto. Todavia ao que parece, ele chega em breve. Talvez... — Marcus não conseguiu terminar.

 

 

 

 

 

 

Por que eu não havia saído do lugar.

Estava na mesma cafeteria, olhando os mesmos livros na mesma estante. A lâmpada tremeu, fazendo o mesmo barulho, e eu estava lá, observando Alastair e minha avó à luz amena amarelada que retornara.

Fiquei paralisada no lugar, sentindo o coração como um trator no peito. Engoli em seco. Eu realmente não estava sã. Meu rosto estava molhado de lágrimas. Eu os enxuguei com as mangas da blusa enquanto tentava regular a respiração.

Caminhei lentamente até a mesa quando me senti controlada o suficiente, sem nenhum apetite, preocupada apenas em tirar todas essas coisas inexplicáveis da mente para que não percebessem. Eu teria de ignora-las. Ao menos por hora.

Vovó e Alastair não pareceram notar nada de errado comigo. Talvez pelo fato de acharem ser uma reação pela conversa misteriosa de vovó. Talvez eu escondesse bem as coisas. De toda forma, estava bom o suficiente até que eu pudesse finalmente ficar sozinha e desabar. Pois era exatamente assim que eu me sentia, a beira de um precipício.

Naquela noite eu não dormi absolutamente nada. Não conseguia parar de chorar, de pensar. E nenhuma explicação parecia plausível além da óbvia: eu não estava mentalmente sã. Nem um pouco.

E, além disso, tinha medo de fechar os olhos e me deparar com todo aquele cenário novamente. Tinha medo de não conseguir escapar caso houvesse uma próxima vez. Presa, em cárcere de minha própria mente.

Peguei uma caderneta velha e pouco usada e anotei todo o delírio que tivera com o máximo de detalhes que minhas palavras conseguiam exprimir. Quando terminei, o dia já estava claro.

Enfiei a caderneta no fundo da gaveta, pensando seriamente se era ou não uma boa ideia contar tudo isso a Alastair. Eu sem dúvidas precisava de ajuda psiquiátrica depois daquilo. Mas preocupa-lo desse jeito me assolava.

Peguei minhas coisas e fui até o banheiro, enchendo com água quente a pequena banheira e afundando nela completamente. Na escuridão quente, me concentrei em relaxar meus músculos tensos.

Talvez eu pudesse esperar um pouco para contar a Alastair e procurar ajuda. Provavelmente não seria uma boa ideia pesquisar no google o que causaria alucinações tão reais. Só serviria para me deixar mais doida ainda.

Quando senti que já estava relaxada o suficiente para enfrentar o dia, me enxuguei rapidamente, sem me importar muito em quão desgrenhado meu cabelo iria ficar depois da água escaldante. Tentei secá-lo com o secador, mas desisti vendo o novelo de lã em que se transformava. Então escovei-o para cima, prendendo em uma trança embutida frouxa.

Vesti um par de jeans claros e despojados com uma blusa de mangas cumpridas tipo segunda pele simples preta. Calcei meus AllStars e desci as escadas bisbilhotando o celular. Ainda era cedo de mais para sair com Sara e teria que me ocupar até lá.

Arranjei uma tigela e derramei granola, despejando um pouco de iogurte em cima. Tenho certeza de que se Sara estivesse aqui acharia uma gororoba nojenta. Mas era minha preferida.

Enquanto colocava a cafeteira italiana no fogo, expulsei com todas as forças que tinha a lembrança da palavra strega e de todo o resto da alucinação. O medo vencia quaisquer que fossem minhas dúvidas e curiosidades sobre tudo que acontecera. Mordi o lábio olhando o jardim florido da vizinha e concentrando-me ao máximo em contar cada uma das flores, mantendo a mente ocupada. Eu já havia me torturado o suficiente esta madrugada e ainda teria a de hoje para isso. Precisava fingir sanidade ao menos enquanto estivesse com outras pessoas.

Tomei meu café o mais lentamente que pude, concentrada em cada golada e mastigada que dava. Contando todas e recontando cada vez que perdia a conta.

— Bom dia, querida. — Vovó disse sorridente descendo as escadas. — Acordou cedo. — Ela me olhou mais atentamente por um instante e acrescentou: — Ou ainda não dormiu?

Suspirei derrotada. Sabia o quão fisicamente esgotada eu estava, tanto quanto mentalmente.

— Não dormi. — Forcei um sorriso antes de tampa-lo bebericando o café preto. — Insônia. — Murmurei concentrando-me novamente em minha tigela de granola.

— Entendi. — Sua voz era um pouco preocupada enquanto ela servia uma xicrinha de café para si. — Talvez se tomar um pouco de chá ao invés de café todo dia, isso melhore. — Ela sorriu sentando-se à mesa comigo.

Sorri em resposta. Raramente ela bebia café como eu e Alie. Tipicamente inglesa, ela preferia chá.

Eu não quis tocar no assunto de ontem a noite e de sua conversa misteriosa. Não queria pressiona-la. Mas isso não me impediu de pensar sobre, enquanto jogávamos papo fora.

Ainda não fazia ideia do que aquilo poderia dizer, e por mais que parecesse um devaneio de uma mulher já muito idosa, eu não conseguia engolir isso. Vovó era lúcida de mais, cinte de mais. Não jogaria isso assim atoa, sem um propósito. Tentei ver alguma ligação em sua conversa sem aparente eira ou beira com meu próprio devaneio. Mas parei imediatamente com o pavor que ele me causava.

Nada tirava de minha cabeça que eu simplesmente estava entrando em um labirinto sem saída de insanidade. Que meu destino seria esse, o mesmo que o da tia-bisa Alice de quem vovó sempre contou. Passar meus dias me tratando.

É claro que hoje serei bem tratada, coisa que os pobres enfermos nem sempre tinham antigamente. Em todo caso, eu seria uma pobre enferma logo logo.

Oh, pobre de meu irmão, ter que enfrentar mais um trauma. Perder os pais em uma tragédia e ver sua irmã sucumbir a loucura por isso. Como eu posso ser tão egoísta e deixar isso acontecer?

Minha mente não parava de funcionar, sempre tentando expulsar todos esses pensamentos irritantes e angustiantes. Esperei fazendo tudo que podia para me ocupar enquanto as horas passavam, de vagar de mais.

Quando eram quase nove da manhã, Sara ligou. Finalmente. Em menos de meia hora ela estava buzinando na frente de casa em seu carro, acenando para mim. Saí gritando um até mais para vovó, animada finalmente por fazer algo que ocupasse de verdade minha mente.

Sara aproveitou para me atualizar de como as coisas andavam entre ela e Miro.

— Ah, foi lindo, Luna. Eu achei que ele não iria pedir nunca, sabe? Mas então ele estava lá, na festa da minha família, cantando uma musica romântica para mim na frente de todos. — Ela riu alegre, em júbilo.

— Meu deus, eu mal consigo imaginar isso. Parece coisa de filme. —acompanhei sua risada entusiasmada, tentando visualizar a cena.

— Eu sei, não é. — Ela riu mais uma vez. — E ai tivemos a ideia de combinar o penteado. — Disse ela apontando para o desenho geométrico na parte lateral mais curta de seu cabelo crespo.

— Ficou tão lindo. Achei a coisa mais romântica do mundo, juro. — Eu disse com sinceridade e ela sorriu garbosa. — Vocês são incríveis juntos, Sara. Estou de verdade muito feliz pelos dois.

— Obrigada, gatinha. — Ela disse afagando minha mão. — Mas e você e o Henry, hein?

Desviei o olhar. A alucinação borrando minhas ideias novamente.

— O que tem? — Perguntei.

— Ah, garota, você sabe. Vocês tem uma química.

— Você acha, é? — Perguntei me divertindo um pouco com aquilo.

Aparentemente todo mundo achava isso enquanto eu estava no meu mundo da lua, sem reparar em nada a minha volta. E tendo alucinações com vampiro nas horas vagas, é claro.

— Eu acho, e seu irmão acha também. — ela disse

— Como é que você sabe? Conversaram sobre isso? — Perguntei chocada.

— A gente não precisou conversar sobre, suas bochechas coradas falam por você. — Sara riu.

Tampei o rosto envergonhado, sentindo as bochechas quentes e acabei rindo com ela.

— Mas sabe... —disse estacionando em uma vaga apertada na calçada. — Não me leve a mal, por favor. — Sara me olhou intensamente com os olhos negros.

Assenti para que ela continuasse.

— Isso não passa de uma intuição boba, mas fique atenta. — Fiquei em silêncio, lembrando-me da sensação que a ligação dele ontem me gerara.

E é claro, expulsando as sensações às lembrança da ilusão com o garoto.

— Sabe como é, um olho no padre e outro na missa. Entende? — Ela perguntou desligando o motor e tirando a chave da ignição.

Assenti novamente.

— Obrigada, Sara. — Suspirei e depois sorri para ela, que retribuiu.

Saímos do carro e entramos na lojinha charmosa. Havia milhares de araras espalhadas pelo recinto não muito grande. Até um pouco abarrotado. Chapéus emperiquitados pendiam de alguns cabides com cordões longos de bijuterias brilhosas. No fundo do lugar, um espelho simplório, nem muito grande nem muito pequeno estava encostado à parede.

— É o paraíso. — Sara, disse iluminada, entrando e se enfiando pelas peças coloridas e de diversas texturas.

— Bom dia, mocinhas. — Uma idosa, pouco mais nova que vovó provavelmente, acenou para nós atrás de um balcão de madeira.

— Bom dia. — Respondi me esticando um pouco para olhá-la melhor, sentada em uma banqueta detrás do balcão; deixando o topo da cabeça visível só em alguns ângulos.

— E ai! — Sara cumprimentou sorridente. — Vocês tem uma coleção e tanto aqui. Estou amando.

— Ai, obrigada. — Uma gargalhada quente pintou o local. Sorri também. — Fiquem a vontade, lindinhas. — Ela disse por fim.

Eu me distraía facilmente com praticamente todas as coisas que olhava pelo brechó. Até coisas que nunca me imaginaria usando. Sara sempre me parava, mostrando uma peça ou um tecido perfeito.

Até que ela me puxou, animada como uma criancinha, para uma mesa larga coberta por um pano quadriculado. Ela estava atulhada por centenas de máscaras ao lado de alguns assessórios mais extravagantes e excêntricos.

— Me diz se hoje não é nosso dia de sorte. — Ela sorriu de orelha a orelha.

— Eu estava com um bom pressentimento sobre esse lugar. — Eu disse também sorrindo

Vasculhamos e brincamos com algumas das máscaras antes de começar a experimentar a que realmente gostávamos. Sara achou uma dourada envelhecida, delicada e com um ar rústico. Contrastava lindamente com a pele cor de canela, a realçando.

— É esta. — Eu sorri, olhando deslumbrada seu reflexo no espelho.

Ela era mais alta que eu, tinha o corpo mais esbelto e mais cheio, curvilíneo. Parecia uma modelo, ainda mais agora com essa máscara.

— Esse tom combina com as luzes do meu cabelo perfeitamente. Olha, se eu tentasse reproduzir eu tenho certeza de que não sairia com essa perfeição. —ela disse admirando o próprio reflexo.

 Concordei balançando a cabeça, animada com o achado.

Eu ainda não conseguira escolher a minha. Estava em dúvida entre várias. Uma preta simples de renda, nada de mais. Uma outra vinho acetinada, bem delicada. Mas eu ainda não sabia como seria meu vestido para escolher a máscara.

Desisti depois de uns minutos, caminhando pelas araras abarrotas. Não consegui deixar de sentir alívio por minha mente estar quase que inteiramente concentrada apenas nas roupas e em minhas ações presentes.

— Achou alguma coisa? — Sara perguntou quando já estava no balcão com a senhorinha e com todos os tecidos e outras coisas que achara.

— Ainda não. — Suspirei, curvando os lábios em um sorriso meio sem jeito.

— Desculpem a intromissão mas, estão indo a algum baile? — A idosa perguntou gentilmente, erguendo a linda máscara dourada de Sara antes de a colocar com cuidado junto às outras coisas em uma sacola.

— Isso. — Sara respondeu sorridente.

— Então — A mulher levantou-se da banqueta, caminhando bem lentamente até o canto atrás de si.

No chão havia um grande baú de madeira escura. Eu nem o teria notado caso ela não tivesse ido até ele. Ela o abriu com um pouco de dificuldade.

Eu e Sara trocamos um olhar rápido quando vimos lindos tecidos cintilarem à luz. A mulher debruçou-se um pouco, mexendo delicadamente de um lado para o outro a procura de algo. Sara não tirava os olhos dos variados tecidos de aparência cara, a boca quase escancarada.

— Achei. — A idosa disse erguendo o corpo e deixando a mostra um lindo vestido de cetim num tom cremoso de branco. Arfei maravilhada. — Ele é tão pequeno, acho que vai ficar perfeito em você. — Ela sorriu ternamente, exibindo os dentes amarelados.

— É este! — Sara segurou minha mão dando saltinhos de excitação. — Eu já consigo ver você nele, vai ficar deslumbrante.

Eu também conseguia me imaginar nele.

Segurei-o nas mãos e o tecido era ainda mais impressionante ao toque. Tão fluido e gelado que parecia água. Coloquei-o a frente de meu corpo, encarando meu reflexo no espelho enquanto Sara corria de volta a mesa de máscaras.

— Aqui, vai combinar perfeitamente. Só você pode usar esse tipo de máscara e parecer uma divindade. — Ela disse a colocando em mim.

Era realmente uma máscara diferente, e um pouco extravagante. Tinha as feições literalmente felinas, e até pontas triangulares como orelhas de gato. Mas ainda sim, inexplicavelmente linda e delicada. Também era branca, como o vestido, mas de um perolado mais opaco e com fundo lavanda.

— É isto então. — Eu disse sorrindo para Sara e a simpática idosa.

— Obrigada, foi realmente um achado. — agradeci mais uma vez a idosa, observando-a guardar o dinheiro dentro do caixa.

— Ah, não há de que. Você deu muita sorte. Ele está aqui tem poucas semanas.

— Ainda sim é um milagre não o terem levado. Me desculpe mas é um vestido muito bom por um preço bem baixo. — Sara disse.

— Sim, sim. Tem razão. Era mais caro quando chegou mas tivemos que abaixar o preço. Sempre ficava curto de mais ou apertado de mais nas clientes que se interessavam. Por sorte também, ninguém levou para aproveitar o tecido. Seria uma pena.

— Realmente, um pecado destruir essa costura impecável.

Fiquei ouvindo as duas conversarem alguns nomes técnicos que realmente não entendi, sobre o corte e a modelagem do vestido. Foi uma conversa breve, mas Sara saiu de lá conseguindo um emprego no brechó. Iria ajustar as roupas que precisassem e remodelar outras.

— Da pra acreditar? — Ela repetiu exuberante enquanto caminhávamos para o carro. — Sério, esse seu pressentimento estava muito mais do que certo, Luna. Que dia, minha amiga. — Nós duas rimos.

Decidimos passear um pouco pela cidade antes de voltarmos para casa. Fomos a uma sorveteria, depois passear em um lago perto dali, nomeando os patinhos e nos distraindo. Conversamos sobre nossos planos para o futuro enquanto eu escondia com maestria minhas suposições de acabar vivendo-os dentro de um hospício.

Quanto mais o dia passava na companhia de Sara, menos provável esse futuro parecia. Mais distante eu conseguia guardar os acontecimentos perturbadores da noite passada. Como se os tivesse empurrado para o fundo da gaveta, como fiz com a caderneta aonde eu o escrevera. Talvez não passasse disso. Um sonho acordada.

Talvez eu pudesse apenas ter lembrado do pesadelo que passara o dia inteiro de ontem tentando recordar. É, isso era bem plausível. Eu não estava ficando louca... apenas tive uma espécie de dejá vu que me fez lembrar assim, em um lapso, de meu sonho bem criativo.

Decidi por fim que manteria isso como verdade em minha mente. Por hora, era verossímil o suficiente para que eu não me martirizasse vinte e quatro horas por dia.

Quando chegamos em casa, a tarde já estava em seu esplendor. O céu em lindos tons de lavanda e alaranjados. Despedi-me de Sara e agradeci pelo dia.

 Eu não poderia dizer a ela o peso que havia me tirado das costas com essa tarde simplória, mas de algum modo, acho que ela sabia; pela expressão em seus olhos quando disse “não há de que”.

Passei o resto da tarde respondendo as mensagens pendentes no celular, ainda incrédula com a quantidade de convites que recebia. Devia ser algum tipo de engano ou coincidência. Talvez todas as pessoas já estivessem indisponíveis ou algo assim.

— Não entendo por que isso a surpreende, querida. Já se olhou no espelho? — Disse vovó, quando a contei sobre minha popularidade recém-descoberta.

Eu ri em resposta.

— É isso que avós devem dizer mesmo. — Eu disse ainda rindo. — Mas obrigada, vovó. Tive a quem puxar, não é?

Eu já havia mostrado a vovó minhas compras e comemorado alegremente a sorte de ter achado um vestido tão lindo.

O baile seria no próximo fim de semana, dando uma semana para quem precisasse de trabalhos extras para completar as notas que precisassem. Ou pelo menos fora o que eu entendi, e não sou a melhor entendedora em diversos aspectos. A cerimônia de colação de grau, com direito a becas e rolinhos de papel, seria no dia seguinte ao baile.

Quando já anoitecera, Alastair chegou em casa com Anna para o jantar. Era ele quem sempre o fazia. Não por obrigação, eu até que sabia me virar na cozinha – quando não estava colocando fogo acidentalmente em algo ou queimando a mim mesma, ou me cortando, ou quebrando algo... — e vovó era igualmente a ele, uma cozinheira de mão cheia. Ele fazia por gosto. Se tinha uma coisa de que meu irmão amava, essa coisa era cozinhar.

O prato de hoje fora uma torta de legumes gratinados, com bastante molho e babatas. E, como sempre, estava maravilhosamente delicioso. Comemos os quatro conversando, sobretudo sobre o baile.

Eu e Alastari nunca tínhamos ido a um baile assim antes. Obviamente havíamos visto em filmes e em séries, mas nada além.

— Ainda acho que as festas juninas são bem mais legais. — eu brinquei.

Mas com bastante fundos de verdade.

— O que é isso? — Anna perguntou sorridente, os olhos turquesa brilhando de curiosidade.

Deixei para que Alastair se contorcesse para tentar explicar, mas ele só sabia falar das comidas. Não posso julgá-lo. Como eu sentia falta de comer uma paçoquinha, um pé de moleque, uma pamonha...

— Além de comer isso tudo, nós também dançamos em volta de uma fogueira. — Eu disse interrompendo a descrição de sabores que Alastair dava.

Sorri com a reação de Anna, boquiaberta.

— Isso é bem, tipo... bruxaria. — Ela disse rindo e fazendo todos rirem um pouco.

Mas eu reprimi um tremor, sorrindo também, para que ninguém notasse.

Strega.

A palavra veio automaticamente em minha mente. Eu sabia que Anna pensaria isso, foi justamente o propósito da explicação rasa. Mas mesmo assim, deixou-me nervosa com a memória do lapso do sonho – eu não queria mais chama-lo de alucinação.

Não era como se antes de hoje, eu tivesse algum tipo de aversão a bruxaria e tudo que isso envolve. Pelo contrário. Sempre gostei do exotérico, do mágico e etc. Mas agora, de alguma forma mais profunda do que meu próprio entendimento, algo borbulhava estranhamente em mim. Algo novo, desconhecido e por isso: assustador.

Não disse mais nada durante o restante do jantar, escolhendo me esquivar discretamente dos assuntos que surgiam. Ninguém pareceu notar alguma diferença.

Retirei a mesa quando todos terminaram, guardando as sobras da torta na geladeira. Ergui as mangas da blusa e tirei o anel do dedo para lavar a louça. A água estava bem fria mas minhas mãos também estavam então não dei muita importância.

Quando terminei, Alastair estava na sala de estar abraçado á Anna no sofá. Estavam assistindo A Noiva Cadáver. Eu não havia visto vovó subir mas ela não estava com eles.

— Obrigada pelo jantar, maninho. — Alastair tirou os olhos da TV e sorriu para mim. — Boa noite, Anna. Vejo vocês depois. — Eu disse já subindo as escadas.

Alastair sabia que eu não iria dormir e sim estava dando-lhes um pouco de privacidade antes de ele ter de leva-la para casa. Entretanto hoje em específico, eu realmente estava exausta. Fruto de uma noite em claro e de um dia – graças aos deuses – produtivo e cheio.

Fechei a porta de meu quarto e as cortinas da janela. Às vezes dormia com elas abertas, para observar as estrelas e a lua. Todavia, hoje era um daqueles dias certos em que os contornos negros das árvores e o vulto dos animais noturnos me perturbariam.

Vesti um blusão velho de algodão do Pernalonga e uma calça de moletom – meu pijama – e enfiei meias nos pés, esfregando-os com as mãos para tentar esquentá-los. Apaguei a luz do quarto e decidi por deixar a pequena luminária de tomada em formato de cogumelo acesa esta noite. Suspirei, concentrada em me enrolar no edredom grosso e tentar relaxar os músculos, um de cada vez.

Não sei por quanto tempo fiquei encarando a luz amarelada e plácida do cogumelo na tomada até sentir os olhos cada vez mais pesados. Não lutei contra eles, sentindo a luz quente ainda leve por detrás das pálpebras agora fechadas.

E então eu já estava inconsciente, ainda vendo lindos cogumelos mágicos e brilhantes em minha mente. Um refúgio encantado longe da realidade.

 

 

 

 

 

 

 

A MÁSCARA DA LUNA


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Notas finais do capítulo

E aí? O que acharam?? Sintam-se a vontade para comentar e muito obrigada a quem leu até aqui ♥ Até o próximo capítulo



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