Atemporal escrita por Deusa Nariko


Capítulo 1
Capítulo Único: Atemporal


Notas iniciais do capítulo

Escrevi essa one-shot para o SasuSakuTwitFest que ocorreu na semana passada no Twitter e foi promovido pelo Fandom SasuSaku.

Boa leitura!



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A t e m p o r a l

Por Deusa Nariko

 

 

O tempo é muito lento para os que esperam

Muito rápido para os que têm medo

Muito longo para os que lamentam

Muito curto para os que festejam

Mas, para os que amam, o tempo é eterno.

 

Henry Van Dyke

 

CAÍA UMA CHUVA FORTE SOBRE A PROVÍNCIA de Shinano quando um cavalo passou a galope, espirrando lama sob as patas poderosas e velozes.

Campos alagados de arrozais estendiam-se até o horizonte, intermináveis. A vasta várzea perdia-se muito além da vista e as chuvas dos últimos dias tinham feito com que o rio que cortava o campo transbordasse, e com que as suas águas turvas cobrissem a extensa plantação, de modo que apenas algumas áreas pequenas tinham permanecido intactas.

O corcel negro corria por uma trilha estreita e enlameada que serpenteava ao longo de todo o arrozal, resfolegando no ar frio da alvorada. Tinha corrido naquele ritmo alucinado durante boa parte da madrugada. Seu condutor não se permitira desacelerar, forçando o animal a manter o ritmo. Cada milha que deixavam para trás tornava-o mais exausto e mais indomável até o ponto em que começou a relinchar em protesto.

Aninhado sobre o seu dorso e tão castigado pela chuva quanto ele, havia um homem jovem e bem-apessoado, de postura altiva e elegante, cabelos pretos como as penas de um corvo e olhos tão densos quanto a noite. Agarrada às costas dele, havia uma jovem mulher de traços peculiares. Suas mãos seguravam-se às vestimentas do homem com desespero, como se temesse escorregar da sela a qualquer momento. O rosto escondia-se nas costas fortes e masculinas, tentando extrair calor humano através das roupas encharcadas a qualquer preço.

As peculiares madeixas de um rosa claro, até mesmo primaveril, colavam-se às suas faces e às suas costas com o mesmo empenho que ela se segurava ao soturno cavaleiro. Os dentes batiam-se e os lábios tinham se tornado quase azuis devido ao frio e à umidade.

Sakura abandonara qualquer esperança de voltar a sentir algum tipo de calor havia algumas horas. Tinha cogitado lamentar-se, alertá-lo de que os tremores que sentia estavam afligindo-a. Mas sempre desistira no último minuto. Sabia por que precisavam continuar em fuga e sabia por que não podiam desacelerar nem por um segundo. Saber de tudo isso, contudo, ainda não servia para aliviar o frio que lhe infiltrara até os ossos, tornando-a pouco mais do que uma escultura rígida de gelo na sela. Por isso, tinha cerrado os dentes e se obrigado a suportar o mau tempo enquanto se agarrava com cada vez mais afinco ao homem que conduzia o cavalo.

O nome dele era Sasuke. Uchiha Sasuke. E ela lhe devia a vida.

Tinham se encontrado por acaso e seus caminhos só haviam se cruzado devido às artimanhas do destino. Não tinham nascido nem mesmo na mesma era para início de conversa.

Enquanto o seu corpo ainda sofria pelo frio intenso, sua mente divagou para o dia em que tudo aquilo começou. Medo e fascínio tomaram seu coração quase simultaneamente assim que se recordou de como tinha ido parar naquele tempo.

• ❈ •

Um tipo diferente de tempestade tinha trazido Sakura até ali.

Caminhava pela orla da praia de Yuigahama quando o tempo inesperadamente mudou. O céu escureceu. Nuvens cinzentas bloquearam a luz do sol e rajadas fortes de vento atiraram as curtas madeixas cor-de-rosa contra os seus olhos, tapando a sua visão por um momento. O vento tinha até mesmo secado o suor da pele.

Estava mandando uma mensagem para a melhor amiga, Ino, para que desmarcassem o programa que haviam marcado. Espiando o céu outra vez, Sakura concluiu que uma tempestade violenta estava se aproximando — e depressa.

O mar estava se tornando mais agitado a cada minuto. Os poucos transeuntes que ainda restavam na praia foram abandonando-a um a um, até que restou apenas Sakura e a imensidão do oceano diante dela. Ino ainda não tinha respondido a sua mensagem.

Ela deu as costas para o mar e digitou mais uma mensagem para Ino, avisando-a de que procuraria abrigo da chuva forte que estava a caminho. Foi quando ouviu o primeiro pedido de socorro. Erguendo a cabeça, vasculhou a praia atrás da origem do grito. Então o ouviu de novo.

Era um menino e a sua voz se difundia por alguns bons metros, espalhando-se através das águas agitadas e rebentando junto às ondas. Sakura localizou-o a mais ou menos trinta metros da faixa de areia; enxergou um braço agitando-se para fora das águas turvas, depois o topo de uma cabeça.

Não pensou duas vezes antes de descalçar as sandálias, largar o celular e correr em direção à água. Avançou o mais depressa que pôde, lutando contra a força das ondas, que quebravam à sua volta uma após a outra, lançando borrifos de espuma branca e salgada.

Estava com a água na altura do peito quando se atirou e começou a nadar. Por sorte, sempre havia sido uma exímia nadadora. Na adolescência, tinha até mesmo participado da equipe de natação e ganhado alguns prêmios. Troféus que, hoje em dia, apenas ajuntavam poeira e teias de aranha numa caixa de papelão em algum lugar na casa dos pais; tesouros de uma Sakura mais jovem, mais ingênua que já não lhe serviam.

Em pouco tempo, nadando contra a forte torrente de água, alcançou o ponto onde tinha avistado o menino, mas ele havia desaparecido. Desesperada, ela afundou, procurando por qualquer sinal dele. A corrente estava forte, puxava-a insistentemente em outra direção. Sakura lutou e nadou na direção oposta, vasculhando as águas escuras atrás do menino. Não o encontrou.

Apavorada, emergiu em busca de ar. Recuperou o fôlego e então mergulhou outra vez. Era conhecida pela teimosia, não desistiria dele assim tão fácil. Mas, tornou a retornar à superfície, frustrada, dois minutos e meio depois. O menino havia simplesmente desaparecido.

Sakura nadou por mais alguns metros, vasculhou ao seu redor e descobriu-se sozinha, assustada e com frio. Estava prestes a nadar de volta para a praia quando uma onda muito grande quebrou-se bem sobre a sua cabeça, empurrando-a para baixo e lançando-a num turbilhão de água salgada.

Lutou para retornar à superfície, mas outra onda a fez submergir. Cada onda quebrava mais violenta do que a anterior. Até que ela percebeu com pavor que estava se afastando cada vez mais da praia. E que estava se afogando.

Uma última onda, muito maior do que as outras, arrebentou sobre a sua cabeça e ela não conseguiu mais retornar à superfície depois disso. Afundou nas águas escuras, frias e revoltas no momento em que os pulmões desistiram de pedir por oxigênio.

Sua vista tornava-se um breu; o último facho de luz esmoreceu, pálido e insignificante, quando ela pairou, plácida e serena, em meio às águas. Seu último instinto foi o de fechar os olhos e abandonar todo o medo e toda a dor.

• ❈ •

Sakura emergiu da água bruscamente, puxando o ar para dentro dos pulmões em arquejos sofridos e contínuos. Então se deu conta de onde estava: numa casa de banho com água quente e perfumada à sua volta. Também estava nua, e longas madeixas cor-de-rosa flutuavam sobre a superfície da água junto a pétalas de flores.

Aturdida, levou as mãos até os olhos a fim de cobri-los. Percebeu que a pele dos dedos enrugara-se, o que queria dizer que devia estar ali já fazia algum tempo. Voltou a abrir os olhos para examinar o entorno com mais atenção.

Brumas de vapor subiam a partir da espaçosa banheira quadrada e enchiam todo o cômodo. As paredes se fechavam ao seu redor, sólidas e protetoras, mas, de algum modo, não conseguiram oferecer conforto nenhum a ela.

Onde eu estou?, perguntava-se enquanto se movia pela água. Alcançou a borda escorregadia da banheira, içando seu corpo para cima. Pisou com cuidado no piso molhado, vasculhando com os olhos todos os objetos próximos. Encontrou uma yukata seca e usou-a para esconder a nudez e proteger-se do frio.

Eu morri?, Sakura indagou-se, imaginando se aquele lugar seria alguma espécie de paraíso. Lembrava-se apenas de ter se afogado no mar, da escuridão ter se fechado sobre ela. De que forma poderia ter ido parar naquele lugar senão por haver passado para outro plano?

Ouviu o som de passos e pensou em se esconder, mas não havia lugar nenhum para isso. A porta pesada abriu-se para revelar um séquito de mulheres disciplinadas e soturnas, que quase se moviam em sincronia ao pisar na vaporosa casa de banho. Todas vestiam quimonos escuros, de tons sóbrios e monocromáticos, e tinham os cabelos pretos firmemente presos.

— Hime-sama, já terminou o seu banho? Estamos aqui para ajudá-la a se vestir — uma delas, a mais velha com manchas de grisalho em meio ao cabelo negro, anunciou solenemente.

— H-Hime-sama? — Sakura ecoou, aturdida, olhando ao seu redor para descobrir se a mulher se referia a outrem; não havia mais ninguém ali, contudo.

A mulher aquiesceu. E, em seguida, ordenou às outras mulheres para que fossem adiante e cumprissem os seus deveres. Todas avançaram ao mesmo tempo, cercando Sakura numa velocidade espantosa. Ignoraram tantos os seus questionamentos quanto os seus protestos enquanto a vestiam com um quimono seco e limpo, de cores claras e bordados finos, calçavam os seus pés com tamancos de madeira e a arrastavam para fora da casa de banho.

Levaram-na por corredores intricados até terem-na encerrada num quarto luxuoso. Sakura olhou estupefata para a mobília e para a decoração, ambos tão antigos que pareciam ter saído direto de uma pintura. Uma vez ali, foi despida e vestida de novo, desta vez com um quimono pesado muito mais elaborado; eram camadas e mais camadas de roupa, uma mais suntuosa do que a anterior. Seu cabelo foi escovado até se tornar uma cascata de seda rósea, e foi modelado num penteado no alto da sua cabeça com uma infinidade de grampos coloridos e preciosos.

As mulheres continuaram a ignorar todas as suas perguntas e, no fim de tudo, ela se viu arrumada e pronta para partir, muito embora o destino permanecesse uma incógnita. A mulher de antes a examinou com um olhar crítico e então assentiu consigo mesma.

— Está pronta para partir, Hime-sama.

— Mas para onde estão me levando? — Sakura insistiu e recebeu uma reprimenda da mulher.

— Para onde mais haveria de ir hoje, Hime-sama?! Para o seu casamento, é claro!

Isso bastou para que Sakura estagnasse, incrédula, enquanto as servas passaram a lutar para tirá-la do quarto e para levá-la a outro lugar, uma vez que ela se mostrou indisposta a cooperar e ir obedientemente.

 

• ❈ •

De algum modo, Sakura acabou dentro de uma carruagem maciça com dois cavalos robustos prontos para puxá-la.

Do lado de fora, um castelo erguia-se no topo de uma colina verdejante. Árvores de cerejeira flanqueavam-no, e as suas flores enchiam o ar com uma doçura delicada e inconfundível. Uma brisa suave espalhava as suas pétalas; uma delas entrou pela abertura da carruagem e pousou sobre o colo de Sakura.

Descobrira poucas informações nas últimas horas, enquanto era aprontada para o casamento. Como por exemplo, aquela era a província de Kotsuke, as terras da sua família havia gerações. As servas ainda a chamavam de Sakura, embora adicionassem honoríficos precisos sempre que se dirigissem a ela. Era uma princesa, membro da aristocracia, mas a informação não lhe trouxe conforto algum.

Suspirando, ela abandonou o plano de fuga que tecera na última hora. Havia homens demais vigiando-a, soldados fortes e soturnos usando armaduras completas e portando espadas e lanças. Encostou a cabeça no fundo da carruagem e amaldiçoou a própria sorte. Aonde diabos eu vim parar?, lamentava-se.

A mesma serva de antes tornou a surgir, inspecionou-a uma última vez do lado de fora e então lhe fez uma rígida mesura:

— Que o seu casamento com Takasugi-dono traga paz e prosperidade para estas terras, Sakura-hime.

Sakura estremeceu ante as palavras, mas não ousou vocalizar uma só sílaba.

Um homem sisudo surgiu diante da abertura depois que a serva partiu, retornando ao castelo, e assentiu para Sakura. Em seguida fechou a sua única rota de fuga, encarcerando-a dentro da carruagem. O condutor atiçou os cavalos com as rédeas, que relincharam inquietos, e a carruagem partiu por uma estrada íngreme e sinuosa.

Sakura tornou a cobrir os olhos com as palmas das mãos, debruçando-se sobre si mesma até que se apequenasse e terminasse encolhida sobre o assento almofadado. Desejava poder despertar daquele sonho, desejava poder voltar para a vida que tinha. Sem que percebesse, lágrimas quentes escorreram pelas suas bochechas, molhando-as.

Chorou porque se sentia assustada e, mais do que tudo, desesperadamente sozinha.

• ❈ •

 

A carruagem viajava escoltada por mais ou menos duas dúzias de soldados fortemente armados. Sakura os tinha contado pelo menos meia dúzia de vezes a fim de se assegurar das posições que ocupavam. O capitão do destacamento ia só um pouco mais à frente dela mesma, montado num cavalo de pelagem castanha e de temperamento indócil.

Tinha começado a cair uma garoa na última hora, quando o comboio adentrou uma floresta cerrada e sombria, o que amuara os soldados e deixara Sakura ainda mais inquieta no seu abrigo. Ouvira a serva referir a um homem chamado Takasugi como seu futuro marido, além de ter se referido à própria Sakura como uma princesa, a filha de um lorde rico e prestigiado.

Continuava sem saber como havia ido parar naquele lugar, mas a julgar pelos costumes e pelas vestimentas das pessoas que vira, e pelo cenário, não era difícil deduzir que se encontrava numa época remota, num Japão de muito, muito antes que ela nascesse.

Sakura subitamente teve o impulso de se levantar e de afastar o tecido grosso da abertura da carruagem. Olhou por cima das cabeças da fileira de homens que a guardava.

— Com licença? — perguntou a nenhum deles em particular, mas quem emparelhou o cavalo com a carruagem, atendendo ao seu chamado, foi o líder da vanguarda.

— Hime-sama, por favor, permaneça dentro da carruagem. Ultrapassamos há muito a fronteira da província do seu pai e agora estamos num território desconhecido. Será mais seguro que permaneça lá dentro até que alcancemos o castelo de Takasugi-dono na cidade de Uyeda.

— Eu só tenho algumas perguntas a fazer — ela explicou-se. — Em que ano estamos?

O capitão mostrou-se aturdido por um momento, mas não demorou a respondê-la.

— Estamos no terceiro ano do governo de Iemitsu-dono, vigésimo terceiro ano desde que Ieyasu-dono instituiu-se no poder.

— Bingo! — Sakura exultou-se por estar correta e arrancou uma careta do soldado devido à sua reação exagerada; ela fechou-se no interior da carruagem para ruminar o que havia descoberto.

Então percebeu a enormidade da situação — e tudo o que ela implicava.

— Eu voltei no tempo — sussurrou apavorada; mais precisamente, para o período Edo da história do seu país, o Xogunato dos Tokugawa, instituído por Ieyasu no ano de 1603. Se o seu neto, Iemitsu, era quem governava há três anos, isso significava que ela havia voltado para o ano de 1626.

Sakura tinha viajado quase quatrocentos anos no tempo.

Isso não pode estar acontecendo comigo!, pensou à beira das lágrimas. Tem que ser um sonho, declarou, mas, quando fechou os olhos e tornou a abri-los, viu-se ainda no interior de uma carruagem que viajava por uma estrada sulcada, vestindo um suntuoso quimono e a caminho de uma boda que não desejava.

E o mais agravante: não tinha ideia de como voltar para a era a qual pertencia.

• ❈ •

 

Bandoleiros atacaram a carruagem ao cair da noite. Sakura estava a ponto de pegar no sono, sendo despertada pelos solavancos da carruagem vez por outra, quando notou uma movimentação incomum do lado de fora.

O primeiro som que ouviu foi a voz do capitão gritando ordens, comandando os soldados a se organizarem e a defenderem a carruagem com as suas vidas. Então ouviu os gritos. Pavorosas lamúrias de homens moribundos e súplicas para que suas vidas fossem poupadas.

Ela encolheu-se dentro da carruagem, mas desistiu de permanecer lá dentro depois que a primeira flecha atravessou a madeira e a ponta ficou a centímetros de perfurar a pele da sua garganta. Então, livrou-se de algumas camadas de roupa, espiou a estrada por uma fresta no tecido e saltou, sem medo, para fora.

Caiu sobre os joelhos e as palmas das mãos em meio à estrada lamacenta, sujando o quimono caro que vestia instantaneamente. Uma espiadela ao redor bastou para que vislumbrasse os corpos dos soldados abatidos a golpes de espadas, lanças e flechadas. Os cavalos relinchavam, assustados, devido ao odor de sangue fresco e de morte.

Árvores silentes e sombrias cercavam-na de ambos os lados da estrada, os ramos cheios e retorcidos, pesados devido à chuva fina. Não viu nem sinal dos bandoleiros que atacaram o comboio, muito embora não tê-los visto não significasse que não estivessem escondidos atrás das árvores e sob as sombras criadas pelo céu escuro.

Aos tropeços, Sakura se ergueu e se pôs a correr. Agindo por instinto, infiltrou-se na floresta, desviando da estrada, e enfiou-se entre as árvores com o intuito de ter mais cobertura para despistá-los.

Ouviu cavalos relinchando e cavalgando, as patas fortes amassavam o solo úmido da floresta. Também ouviu brados masculinos, e então risos. No meio da fuga, arranhou o rosto, as mãos e os braços e rasgou o quimono por mais de uma vez, deixando fiapos de tecido colorido presos a ramos e arbustos espinhentos.

Conteve as lágrimas e engoliu os gritos de ajuda, direcionando os seus esforços apenas para a fuga. Por fim, chegou a uma clareira e lá foi cercada. Deteve-se tão abruptamente na corrida que tornou a cair em meio às folhas e raízes úmidas enquanto um homem montado num cavalo surgia de repente na sua frente, bloqueando o caminho.

Suas vestes eram puídas e escuras e ele trazia sobre um ombro musculoso uma grande lança. Os olhos fitavam-na de maneira impiedosa enquanto um dos cantos da boca erguia-se num meio sorriso cruel.

Mais deles surgiram, de todas as partes e de todos os lados. Portavam espadas e arcos, e vinham quase todos montados. Alguns usavam partes de armaduras descombinadas, roubadas de adversários caídos. Nenhum deles mostrou-lhe o menor gesto de compaixão enquanto se aproximavam cada vez mais, assustando-a.

Sakura se colocou de pé. Estava com frio, dolorida dos arranhões que tinha espalhados pelo corpo, mas decidiu no último segundo que não se renderia com facilidade. Dificultaria a sua captura até onde pudesse para aqueles homens cruéis. Portanto, encarou-os todos de queixo erguido e olhos em chamas.

Um dos homens trotou seu cavalo até perto dela.

— Não dificulte as coisas para nós, Hime-sama. Tudo o que queremos é o resgate que o seu pai nos pagará quando o informarmos que estamos com a sua amada filha.

Audaciosa, Sakura cuspiu no lodo sob as patas do cavalo do bandido e enxugou a água do rosto com fúria.

— Vão todos para o inferno! — rugiu. — Todos vocês! Não me renderei sem uma luta!

— Como quiser. — Foi a resposta sibilada do bandido, indicando para que os seus subordinados avançassem. — Peguem-na — ordenou.

Os homens obedeceram-no no mesmo momento, instando seus cavalos na direção de Sakura. Ela se preparou para se defender da melhor forma que encontrou, apanhando discretamente uma pedra e escondendo-a na manga longa do quimono. Deixou que um dos homens se aproximasse o bastante antes de erguer o braço e então atirá-lo para trás, colocando toda a sua força no arremesso.

A pedra chocou-se em cheio contra a testa do homem, derrubando-o do cavalo com um gemido de dor. Mas isso também pareceu ter endurecido os demais, que aumentaram a velocidade de suas montarias, aproximando-se dela a galope.

Algo inesperado aconteceu antes que o primeiro deles conseguisse interceptá-la. Um misterioso cavaleiro invadiu a clareira a toda velocidade, montado num corcel negro indócil, e arrancou gritos de susto dos bandidos.

Trazia a sua espada desembainhada, uma lâmina esguia que, por um momento, refletiu a luz de um relâmpago quando o homem montado no dorso do corcel a ergueu muito acima da cabeça só para descê-la impiedosamente contra o primeiro bandoleiro com o qual cruzou o caminho, coincidentemente aquele mais próximo à Sakura.

O homem abateu seu oponente com um só golpe no peito, derrubando-o da sela. Tudo foi tão rápido para Sakura: num momento, o cavalo estava montado, noutro, não estava mais e o bandido jazia deitado de bruços numa poça do próprio sangue. O cavaleiro esporeou seu cavalo de modo a se colocar entre Sakura e os demais bandidos, erguendo a sua espada em desafio ao líder do bando, que reagiu a isso com um brado de guerra, também desembainhando a sua espada e apontando-a para o novo inimigo.

Sakura olhou-o com espanto, tentando ver mais do que o chapéu de bambu permitia entrever. Achou ter visto mechas de cabelos que eram negros como as penas de um corvo, úmidos pela chuva, e um maxilar forte. A linha dos olhos lhe era um mistério, contudo.

As vestes que usava eram claramente mais distintas, embora também fossem discretas e escuras. O mais importante, decidiu, era que aquele homem havia acabado de lhe salvar a vida.

Houve uma luta ali, então. O homem solitário contra pelo menos duas dúzias de bandidos mal-encarados. De cima do seu cavalo, ele os abateu com graça e leveza nos golpes, um a um. Derrubava-os das suas selas e enviava-os ao chão com pouco ou quase nenhum esforço tamanha era a sua perícia com a espada.

Sakura assistiu a tudo estupefata. Quase não acreditava no modo como ele se movia: feroz como um lobo, elegante como um tigre e imponente como um leão. Em pouco tempo, derrotou todos os homens que o líder do bando enviou para que o abatessem. Ao término de tudo, pelo menos vinte bandidos jaziam feridos ou mortos na relva úmida.

— Recuar! Recuar! — o líder ordenou aos bandidos restantes, virando o seu cavalo e instando-o para partir.

Quando o último deles desapareceu, Sakura se viu sozinha com o seu herói misterioso. Mas ao contrário do que esperava, ele não conversou com ela nem tampouco se virou para fitá-la. O homem limitou-se a esporear seu cavalo a fim de se afastar dali.

Vendo que ele estava prestes a ir embora e a abandoná-la naquela floresta, Sakura decidiu detê-lo.

— Espere! — pediu ao estranho, aproximando-se do cavalo dele. — Não pode me deixar sozinha aqui!

O estranho não se virou na sela, mas abaixou a cabeça e tombou-a o suficiente para olhá-la encharcada, suja, arranhada e de pé sobre a relva que se tingiu de vermelho pela sua própria espada. Sakura percebeu que cometeu um equívoco, então se endireitou e reorganizou os próprios pensamentos.

— Quem é você? E por que me salvou daqueles homens? Poderia, por favor, me levar de volta para o... — Era estranho proferir aquelas palavras, portanto relutou com elas a princípio. — Castelo do meu pai?

Ela não tinha ideia da razão de haver pedido aquilo ao estranho, mas pelo menos no feudo do seu pai estaria a salvo de bandoleiros como aqueles que a atacaram mais cedo.

Ainda sem responder a nenhuma das suas perguntas, o homem voltou a esporear o seu cavalo, contornando-a, o que a deixou nervosa. Sakura olhou para a metade do rosto daquele homem que conseguia ver: o queixo afilado, a boca cerrada, o nariz elegante. Os olhos desapareciam sob as sombras do chapéu, mas ela tinha quase certeza de que eram negros como o cabelo dele, e que aqueles olhos perfuravam-na agora, vendo tudo através da sua pele.

— P-Por favor? — insistiu. — O meu pai é o Lorde de Kotsuke. Prometo que será muito bem recompensado se me prestar esse favor.

Pensou tê-lo ouvido suspirar, avertendo o olhar para que fitasse as árvores enquanto talvez ponderasse. Por fim, ele se decidiu. Abaixou-se na sela e, com uma mão, agarrou-a pelo braço. Antes que percebesse as intenções dele, foi içada para cima e colocada sobre a sela.

O coração de Sakura martelou o peito diante da súbita proximidade com aquele estranho. Sentiu o calor do corpo dele contra as suas costas, os braços fortes lhe rodeando a cintura quando se estenderam para alcançar as rédeas do corcel.

Num lapso de julgamento, e num momento de fraqueza, ela tombou o rosto para trás, por pouco não roçando a cabeça contra o ombro dele. Então viu os olhos sob a borda do chapéu: eram negros, como antecipara, e eram absurdamente belos e profundos.

E fitavam-na de volta como enormes poços de escuridão, noites e estrelas.

• ❈ •

O nome dele era Sasuke. Uchiha Sasuke. E essa tinha sido a única informação pessoal que Sakura arrancara dele em dois dias.

Verdade fosse dita, o homem não era dado a conversas. Raramente se comunicavam e quando o faziam era apenas para que ele lhe passasse algumas instruções para que Sakura comesse a comida que ele preparava, bebesse a água que ele lhe trazia, e dormisse quando ele encontrava um lugar seco no qual pudessem se abrigar.

Pouco importava quantas vezes ela tentasse iniciar uma conversa despretensiosa com ele, no fim era sempre repreendida com silêncios soturnos e olhares enviesados que a alertavam para que não tentasse de novo.

Infelizmente para Sasuke, contudo, Sakura não era uma pessoa que se deixava ser vencida com facilidade. Além disso, ela tinha outros métodos para tentar desvendar que segredos ele escondia. Por isso, observava-o bastante, noite e dia, a todo o momento em que acreditasse que ele não prestaria atenção.

Observou muito dos hábitos dele naqueles primeiros dias em que viajaram juntos, ainda assim Sasuke ou mesmo as suas intenções continuavam a permanecer uma incógnita para Sakura.

Um guerreiro desprovido de mestre, sem passado e sem destino.

Não sentia medo quando estava com ele, contudo. Na maior parte do tempo, Sasuke se mostrava distante e reservado, mas havia momentos em que era possível vislumbrar um pouco de calor humano nos seus gestos como quando ele lhe oferecia onigiris extras ou quando se certificava de que ela estaria bem aquecida durante a noite. No modo como ele sempre a tratava respeitosamente sem jamais cruzar nenhum limite.

Ao cair da segunda noite em que passava na companhia dele, eles se abrigaram nas ruínas de uma antiga casa que estava escondida pela vegetação densa de uma floresta úmida. Sasuke tinha colhido lenha para uma fogueira. Uma vez que as chamas lamberam a madeira com línguas de fogo, ele também colocou os peixes para assar e estendeu algumas mantas por perto para que secassem.

Sakura se acomodou ao redor da fogueira com uma manta ao redor dos ombros. Sasuke vez por outra cutucava a lenha com o auxílio de um longo graveto, agitando o fogo para que continuasse queimando; brasas minúsculas e brilhantes içavam-se por cima das chamas a cada vez que ele as remexia.

— Sasuke-kun... Você está mesmo me levando de volta para Kotsuke? — perguntou a ele depois de um longo tempo em silêncio.

Sasuke fungou, a ponta do seu nariz enrugando-se com o ato. Cutucou a lenha uma última vez e colocou o graveto cuja ponta aquecida reluzia incandescente de lado.

Sakura estudou o perfil dele enquanto esperava por uma resposta. O modo como ele se sentava ereto e plácido com a bainha da espada sempre ao alcance das mãos intrigava-a. Era um guerreiro em todos os sentidos, e mais nobre do que ela poderia ter julgado.

Quando ele falou, sua voz soou serena e uniforme. Sasuke tinha uma voz grave e aveludada, agradável aos ouvidos. Poderia ouvi-lo o dia todo e não se fartaria do seu som.

— Precisaremos tomar outra rota para chegar à Kotsuke; uma mais longa e perigosa. O bando de Saito Hosokawa não deve ser subestimado e ele não desistirá da recompensa por você tão facilmente.

 Sakura umedeceu os lábios.

— Então conhece o homem que tentou me sequestrar?

— Qualquer um já ouviu falar de Saito Hosokawa — disse. — Ele e seu bando têm aterrorizado aldeias pequenas e viajantes entre Kotsuke e Shinano já tem alguns anos. Quando era jovem, durante a campanha de Sekigahara, ele comandava parte da vanguarda do exército de Toyotomi, e era um guerreiro bastante afamado mesmo com uma idade tão tenra, mas se acovardou e desertou antes que a batalha tivesse início. Os seus homens o seguiram, tornando-se foras da lei alguns anos depois.

Sakura estava surpresa por descobrir mais a respeito do homem que tinha lhe atacado.

— Mas você os derrotou antes na clareira com tanta facilidade, Sasuke-kun... Suponho que também seja um guerreiro bastante afamado.

Sasuke se fechou depois disso e não respondeu a mais nenhuma das suas perguntas. O humor de Sakura azedou graças às esquivas dele, e na manhã seguinte eles seguiram viagem.

Ao passarem por uma aldeia fortificada, Sasuke aproveitou para comprar mantimentos e deixou Sakura desacompanhada por um momento. Ela aproveitou-se da deixa para explorar o lugar, encantando-se com os hábitos dos seus moradores. Era como estar dentro de um filme antigo ou livro de história, percebeu.

Exultante, aproximou-se de uma mãe e de sua filha, cumprimentando-as com cortesia. Esperava que não se assustassem com a sua aparência desleixada; ainda usava o quimono sujo e rasgado de dias atrás, e os seus cabelos estavam desgrenhados e embaraçados.

— Com licença, eu poderia perguntar a quantos dias de viagem estamos de Kotsuke?

A mulher apontou para o norte enquanto a menina no seu colo encarava Sakura com teimosia e se contorcia para querer descer dos braços da mãe.

— Seguindo pela estrada ao norte da vila, estarão em Kotsuke em no máximo três dias.

— Muito obrigada pela informação — Sakura fez-lhe uma mesura e voltou para junto de Sasuke.

Deixou que ele a puxasse para cima da sela abastecida com suprimentos novos. Sasuke fez o cavalo trotar em direção ao sul da vila, e Sakura estranhou, virando-se na sela a fim de encarar as casinhas e a fortificação que as envolvia já ficarem para trás.

— Estamos indo em direção ao sul — ela afirmou, esperando não zangá-lo.

Como tudo o que obteve dele foi silêncio, contudo, prosseguiu:

— Perguntei a uma mulher e ela me orientou que a estrada a norte daqui leva a Kotsuke.

Sasuke não lhe deu atenção e manteve o compasso. Sakura percebeu a dura verdade como se houvesse acabado de levar um choque muito forte. Lágrimas inundaram seus olhos.

— Você não está me levando de volta para Takasaki... Está, Sasuke-kun?

Daquela vez, ele respondeu, e a resposta machucou-a mais do que tudo.

— Não.

Sakura detestou-se quando percebeu que estava chorando. Mais que depressa, enxugou as lágrimas e se recompôs, recusando-se a desmoronar estando tão próxima daquele homem.

— Você está me levando para a cidade de Uyeda. Para Takasugi, o homem com quem pretendem me casar.

— Estou.

A confirmação foi o duro golpe final para Sakura.

— Entendo — assentiu.

Então, num impulso, saltou do dorso do cavalo e caiu em meio à relva, que amorteceu um pouco da sua queda desajeitada. Ignorou as dores nas palmas das mãos e nos joelhos, e pôs-se a correr o mais depressa que conseguiu.

Não foi muito longe antes que Sasuke a interceptasse, bloqueando o caminho com o cavalo. Ela ameaçou tentar contorná-lo para continuar com a fuga e recebeu um olhar de censura por parte dele.

— Não faça isso. Não irá longe — advertiu-a.

— Eu não vou com você! — gritou a plenos pulmões. — Não pretendo ir para Uyeda e não pretendo me casar com aquele homem nem em mil anos! E se você tentar me levar contra a minha vontade, eu juro que farei dessa viagem um inferno, está me ouvindo?!

— Você não tem escolha. — Mesmo agora a voz dele soava uniforme e aquilo foi o estopim para Sakura.

— Você não entende! Eu não deveria estar aqui! Eu sequer pertenço a esse lugar!

Um lampejo de aturdimento atravessou o rosto sereno de Sasuke por um momento. Ele fez menção de se aproximar com o cavalo e Sakura recuou em resposta, determinada.

— Não vai conseguir me levar com você à força — prometeu.

Sasuke suspirou.

— Muito bem, para onde quer ir então? Para o castelo do seu pai? O bando de Hosokawa ainda está à sua procura, não podemos nos demorar aqui.

— Só não me leve para Uyeda. Não quero me casar — suplicou, e ele concordou.

— Não te levarei para Uyeda se não quiser ir. Tem a minha palavra.

Um pouco mais satisfeita, Sakura aquiesceu. Estendeu a mão e deixou que Sasuke a puxasse com agilidade para cima do cavalo outra vez, acomodando-a na sela junto a ele.

Afastaram-se da aldeia num trote sossegado e antes que percebesse estavam cavalgando, desaparecendo por uma estrada secundária que não seguia nem para o sul e nem para o norte.

• ❈ •

 

Sakura trocou o quimono sujo e rasgado por um novo e limpo, despindo-se com pressa atrás do tronco de uma árvore grande e antiga. A vestimenta havia sido uma cortesia de Sasuke, talvez uma forma de lhe pedir desculpas por havê-la enganado antes.

De toda forma, ela estava grata por se livrar das vestimentas esfarrapadas e por poder usar algo menos chamativo, que a faria se misturar mais entre as pessoas pelas quais passavam enquanto prosseguiam viagem. Usou os dedos para desembaraçar os cabelos, removendo todos os grampos que ainda restavam. Ajeitou-os e prendeu-os com a ajuda de uma fita de cetim cor-de-rosa; outra cortesia de Sasuke.

Nos últimos dias, vinha fazendo grandes progressos com o seu companheiro de viagem. Agora, já podia considerá-lo uma espécie de amigo ou de protetor. Mas ao passo que a constatação de estar se aproximando de Sasuke trouxesse algum alento ao seu coração, também fazia com que o medo se expandisse no seu coração.

Quando voltou para perto dele, uma fogueira ardia, clareando o breu que se achegava como prenúncio da noite. Ele a relanceou um olhar ao vê-la vestida com a nova vestimenta, mas não teceu qualquer comentário.

Ela se sentou ao redor das chamas e estendeu as mãos para que pudesse aquecê-las. Tombou o rosto para cima depois de um tempo e suspirou, encantada com o céu forrado por uma infinidade de luzes.

— Eu nunca tinha visto tantas estrelas antes. De onde eu venho, elas não costumam aparecer tanto à noite. Há muitas luzes artificiais ofuscando-as.

Sasuke cutucou a lenha com um graveto, remexendo as achas; o fogo estalava.

— Sinto falta da minha família — ela confessou, continuando com o monólogo saudoso. — Sinto falta dos meus amigos. Sinto falta até mesmo das coisas mais triviais e ridículas.

Sakura abraçou os joelhos e descansou o queixo no topo deles.

— Você tem família, Sasuke-kun?

A pergunta pareceu pegá-lo com a guarda baixa, e as feições do seu rosto alteraram-se. Ela pensou ter visto um lampejo de dor nos olhos profundos, mas a emoção se foi tão depressa quanto veio e Sasuke se recompôs num piscar de olhos.

— Não. Não... tenho mais.

— Sinto muito — ela sussurrou condoída por infligir a Sasuke, mesmo sem pretender, sentimentos tão dolorosos; via mais claramente agora: o luto no seu rosto, a solidão nos seus olhos.

Hesitou em oferecer conforto a ele, mas percebeu que queria fazê-lo. Levantou-se e se aproximou, acomodando-se ao seu lado. Num impulso, procurou pela mão dele e a segurou. Era quente, percebeu, forte e os dedos haviam se tornado calejados devido aos muitos anos em que manejaram armas. Mas os dedos também eram compridos e elegantes, as unhas eram bem formadas e a palma quadrada mostrava tênues e antigas cicatrizes de dias longínquos.

Sem que pensasse sobre o que fazia, Sakura tracejou as linhas na palma, roçando as pontas dos dedos nas pontas dos dedos dele. Cometeu o erro de olhar para cima e flagrou o olhar intenso dele sobre a sua face, fitando-a com algum sentimento que a emudeceu.

Mesmo enrubescida, não averteu o olhar, deixando-se perder nos abismos que eram os olhos de Sasuke. Viu-se arfante e sentiu-se quente apenas por ser fitada daquela forma por aqueles olhos. Havia algo inexplicável neles que a impedia de se afastar, algo que a mantinha por perto, petrificada no lugar.

— E-Eu não quero que se sinta sozinho — disse, as palavras jorrando involuntariamente dos seus lábios.

— Por quê? — ele perguntou com um franzir do cenho. — Você se importa?

— Eu me importo — admitiu.

O fogo ainda estralava na madeira quando Sasuke apertou de volta a mão que o segurava, prendendo os dedos de Sakura entre os seus. Juntos, assistiram ao crepitar do fogo enquanto acima deles um milhar de estrelas cintilava no céu profundo.

• ❈ •

 

A sua proximidade com Sasuke cresceu de forma completamente inesperada depois daquela noite. Sakura surpreendia-se o observando muito mais vezes do que antes; seus olhos procuravam absorver com avidez cada hábito e trejeito que ele cultivasse.

Era fascinante, descobriu. A forma metódica como ele realizava a mais simples das tarefas como comer seus onigiris sem jamais desperdiçar um único grão de arroz ou escovar os pelos do seu cavalo, a mão desocupada movendo-se pelo pescoço grosso ao mesmo tempo e acariciando-o como que para confortá-lo. O modo como afiava e polia a lâmina da sua espada todos os dias, e como contava as flechas na aljava que trazia atrelada à sela.

Algo havia mudado entre ambos decididamente. E Sakura ainda não era capaz de entender como ou quando passara a se importar tanto com Sasuke. Por que ansiava por ouvir a sua voz e por receber os seus olhares. E cada toque acidental com ele desestabilizava-a a tal ponto de tirá-la de órbita e lançá-la numa espiral de sentimentos.

Nos últimos dias, tinham viajado sem rumo através da província de Shinano, atravessando vilarejos fortificados, florestas, e vales. E cada dia na companhia dele fazia com que Sakura se esquecesse mais do futuro de onde viera e se apegasse àquele tempo, àquela terra. E principalmente a Sasuke.

Então, numa manhã, a verdade atingiu-a como um raio, devastando-a com a potência de um tsunami: estava se apaixonando por Sasuke. E não havia meio ou forma de se impedir de sentir aqueles sentimentos, de vivê-los em toda a sua completude. E se parasse para pensar na questão por tempo suficiente, ela perceberia que queria se entregar àqueles sentimentos, que queria amar Sasuke por mais improvável que o amor entre ambos pudesse se revelar.

Ela ainda não possuía todas as respostas. Também não estava mais próxima de descobrir como viajara no tempo nem tampouco como faria para retornar ao futuro, mas aquelas verdades lhe escapavam das mãos como pássaros ligeiros; não podia esperar agarrá-los. Por isso, contentava-se com a única verdade que a consolava — o fato de estar amando alguém como até então jamais havia amado.

Não tinha ideia se o sentimento era o recíproco e talvez nem mesmo se importasse com isso. Contentava-se apenas por estar ao lado dele, por poder observá-lo e ouvir a sua voz. Amava-o, de fato.

Aquela verdade teria de lhe bastar até que Sakura pudesse tomar posse de todas as outras.

• ❈ •

Uma chuva fina tinha começado a cair há algumas horas, ora engrossando ora atenuando para um sereno frio. O céu continuava escuro e a floresta úmida à volta de Sakura persistia em isolar-se num silêncio profundo; não se ouvia o som de uma única ave ou roedor.

A casa em ruínas onde tinham se escondido pertencera, há muito tempo, a algum rico comerciante cujo nome fora apagado e cujo legado desvanecera como a estrutura de boa parte daquela residência. Mas a vegetação densa ocultava bem a sua localização e um dos cômodos estava intacto suficiente para que se eles mantivessem secos e aquecidos durante a noite.

Sasuke tinha ido até uma cidade nas proximidades para se abastecer tanto de suprimentos quanto de informações, e deixara Sakura ali. Vinham evitando expor-se em lugares tumultuados, esperançando que, com o tempo, Hosokawa e seu bando desistissem de persegui-la.

Então, quando Sasuke retornou, montado sobre o dorso do cavalo, a expressão sombria no rosto dele foi o primeiro indicativo de que algo não correra como ele havia esperado.

Sakura correu sob a chuva, aproximando-se enquanto ele desmontava e trazia o cavalo pelas rédeas.

— Aconteceu alguma coisa?

Os olhos dele estavam mais escuros do que o comum quando se voltaram para fitá-la.

— Hosokawa e seu bando invadiram e incendiaram duas aldeias na fronteira de Kotsuke há uma semana e meia. Pouco restou, segundo o que ouvi. Perguntavam por uma jovem e bela mulher de cabelos cor de cerejeira, e torturaram todos os aldeões quando perceberam que eles não sabiam de nada.

Sakura foi tomada pela mortificação e por um sentimento de revolta que queimava seu peito como se ferro em brasa o atravessasse.

— Estão procurando por mim.

— Sim — ele confirmou sem rodeios.

O medo deve ter transparecido no rosto dela, pois as feições duras de Sasuke abrandaram quase ao mesmo tempo quando ele se acercou um pouco mais, de modo que ela conseguisse sentir o cheiro da pele e das roupas dele, bem como o calor do seu corpo.

— Partiremos amanhã bem cedo. Não podemos permanecer muito mais tempo em Shinano.

Sakura mordiscou o lábio e aquiesceu; os olhos verdes estavam úmidos demais de repente. Escondeu dele tanto as lágrimas quanto o pavor que ameaçava apoderar-se dela e se retirou para dentro da casa em ruínas.

Mais tarde, os dois estavam sentados ao redor de uma fogueira tímida. Sakura tinha recusado a comida naquele princípio de noite. Estava sem apetite devido aos receios e angústias que o seu coração alimentava. Fitava as chamas alaranjadas do fogo perdida em pensamentos até que suspirou e resolveu abordar o assunto que vinha evitando desde então.

— Quão próximos estamos de Uyeda?

Sasuke fingiu não escutá-la num primeiro momento, optando por continuar comendo de forma mecânica. Sakura se aproximou dele, colocando-se ao seu lado com os joelhos arrastando-se sobre o assoalho velho.

— Precisa me levar até Uyeda, Sasuke-kun. Takasugi é o único que pode acabar com tudo isso, não é mesmo? Ele é poderoso o bastante para lidar com Hosokawa, por isso eu estava sendo enviada a Uyeda para me casar com ele.

Sasuke a olhou de modo duro, recusando-se até mesmo a considerar a ideia.

— Mesmo que eu pretendesse te levar até Uyeda a essa altura, seria improvável que Hosokawa permitisse; todas as estradas até lá devem estar sendo muito bem vigiadas pelos seus homens. Não tem que se sacrificar por isso, Sakura. Ou sacrificar seus sonhos e seu futuro.

— Tenho sim — ela insistiu, tocando-o no braço. — Você não entende. Já me foi dada uma segunda chance — alegou de olhos marejados. — Isso é muito mais do que eu poderia pedir.

— Não sei do que está falando — Sasuke replicou, crispando os olhos.

— Eu te disse que não deveria estar aqui. Não pertenço a esse lugar. A esse tempo. Eu vivi uma vida inteira sem sentir o que estou sentindo agora. Se o destino me permitiu essa segunda vida apenas para experimentar esse sentimento, então eu me dou por satisfeita. E se isso for a única coisa que eu puder carregar comigo, terá valido a pena. Tantas pessoas passaram pela minha vida, mas nenhuma delas se equiparou a você, Sasuke-kun.

— Sakura. — Ouvi-lo chamar o seu nome daquela forma fê-la estremecer. — Você pode pertencer a qualquer lugar que quiser. Pode ir para onde quiser. Pode fazer o que quiser.

As próximas palavras de Sasuke, enquanto corria os dedos por uma mecha comprida do seu cabelo, terminaram por consolidar a decisão que começava a se formar dentro dela.

— Nunca conheci alguém como você antes.

Cedendo ao impulso que a tentava, Sakura curvou-se, aproximando-se ainda mais, e roçou os lábios na boca de Sasuke. Tocou o rosto com ternura, com afeto e com amor, traçando as feições suavemente masculinas. Sentiu-o nas pontas dos dedos: o calor da pele, a cadência da pulsação sob o queixo, a robustez do peito. Contentar-se-ia apenas com isso, com a dádiva de poder tocá-lo, de poder senti-lo no hálito e nos lábios por um breve instante.

Assim que se afastou, precisou reunir toda a coragem do mundo para fitá-lo nos olhos. As faces do seu rosto queimavam, enrubescidas, e a paixão acendeu um ardor nos seus olhos verdes e primaveris. Mas ao encontrar o olhar de Sasuke, tudo o que ela viu foi fogo e desejo. O mesmo fogo e desejo que voltou a encontrar na boca dele quando ele se curvou para beijá-la daquela vez, tomando a iniciativa.

O mundo adquiriu novos tons de cores para Sakura sob todos os beijos e os toques que compartilharam naquela noite. Em algum m0mento, as roupas deslizaram para longe dos seus corpos e as últimas barreiras que ainda os separavam, inibindo-os de entregar-se àquele sentimento que os consumiam, caíram todas por terra.

Juntos, queimaram como as achas na fogueira que os mantinha aquecidos, trocando suspiros e gemidos contidos: a pele dele contra a pele dela, a cabeça dele pressionada contra os seios macios dela, os dedos que escorregaram através da curva do quadril e se alojaram no seu centro de prazer, pressionando-o até que ela se desmanchasse e se derramasse; os olhos claros e marejados fixos no teto da construção quando um afago dele no seu rosto trouxe-a de volta para mais. E, no fim de tudo, permaneceram abraçados, suados e ainda unidos.

Sasuke tinha o queixo apoiado no topo da cabeça de Sakura quando murmurou contra as mechas de cabelo cor-de-rosa:

— Hosokawa e Takasugi não serão detentores do seu destino. Isso eu posso lhe prometer.

Sorrindo mesmo de olhos cerrados, Sakura se aconchegou contra o peito dele e adormeceu.

 

• ❈ •

 

Agora, estavam em fuga: atravessando planícies alagadas pelas chuvas dos últimos dias. Montados no corcel veloz de Sasuke, cavalgavam pela província de Shinano em direção a terras distantes dali, fora do alcance de Hosokawa e dos bandidos que o seguiam.

Cavalgaram por três dias quase sem parar para descansar, mas a essa altura Hosokawa e seus comparsas já se encontravam nos seus rastros, farejando-os como lobos famintos à procura da presa. Passaram por vilas soturnas, à sombra de montanhas solitárias e por um rio de águas turvas e agitadas.

Até que se viram encurralados num despenhadeiro rochoso, conduzidos até lá pelos homens de Hosokawa para que fossem emboscados.

Ali, o cavalo de Sasuke foi abatido por uma saraivada de flechas de arqueiros que haviam se escondido nas árvores muito antes. Tanto Sasuke quanto Sakura se feriram na queda, mas no minuto posterior a isso, ele a tinha pego pela mão para que continuassem a fuga a pé; a espada desembainhada evitou que duas flechas se cravassem no seu peito com um balanço do braço, quebrando-as pelas hastes e tornando-as inofensivos pedaços de madeira no solo enlameado.

Sakura apertou a mão na mão de Sasuke e seguiu-o incansavelmente pela chuva, subindo por um terreno íngreme. A fuga terminou na borda escarpada de um penhasco em cujas profundezas um rio caudaloso corria, o leito transbordante devido às chuvas. Sakura ousou olhar para baixo por um instante e se arrependeu: cento e quarenta, talvez cento e cinquenta metros separavam-na de uma morte certeira no fundo de águas agitadas, correnteza violenta e rochas pontiagudas.

Os homens de Hosokawa recuaram das árvores um a um, montados e desmontados. Todos carregavam armas e fitavam Sasuke com sede de vingança. O líder deles surgiu por último, montado e imponente, a atenção direcionada completamente a Sasuke.

— Enfim nos reencontramos — disse de forma seca. — Achou mesmo que fugiria de mim, Uchiha Sasuke? O afamado Fantasma de Awa, o último sobrevivente do clã Uchiha. Mas devo admitir que a sua interferência nos meus assuntos tornou tudo muito mais interessante. — O homem deu um meio sorriso, um sorriso sem dentes. — Ao término desse dia, terei o seu cadáver e a princesa de Kotsuke para me vangloriar. Te enviarei ao encontro da sua família traidora no inferno, Uchiha Sasuke. Prepare-se!

— Então venha — Sasuke respondeu-o com um desafio, a espada em riste diante do corpo, que servia de escudo para Sakura.

Hosokawa assentiu para os seus homens, que desembainharam as suas espadas, empunharam as suas lanças e então correram na direção de Sasuke. Ele se afastou de Sakura o bastante para ir confrontá-los a uma distância segura, mas não ousou ir longe suficiente para deixá-la desprotegida.

Abateu-os com elegância e desenvoltura, precisando de um único golpe para enviá-los mortos ou feridos para o chão enlameado. Mas eram tantos, e continuavam vindo e vindo da linha das árvores, investindo em trios ou em duplas contra Sasuke. Ao mesmo tempo, os arqueiros de Hosokawa continuavam a disparar flechas ocasionalmente, tentando ferir ou desestabilizar Sasuke por tempo suficiente para que um dos homens conseguisse abatê-lo.

Sakura assistia à batalha assustada e impotente. Não ousava deixar a beira do abismo por temer que isso a colocasse no alcance dos bandidos de Hosokawa. Mas, de repente, um dos arqueiros apontou o seu arco na direção de Sakura e disparou.

Ela mal teve tempo de registrar o que estava acontecendo antes que o rosto de Sasuke surgisse diante do seu, os braços envolvendo-a de modo protetor enquanto todo o seu corpo empurrava-a para baixo. Os dois caíram em meio à lama, ainda abraçados, o corpo dele por cima do dela. Quando recobrou os sentidos, viu o sangue empapando as vestimentas de Sasuke e a haste da flecha que se projetava das suas costas.

— Não — conseguiu sussurrar fracamente, tocando-o no rosto, que já perdia cor e estava crispado pela dor.

— Acabou para você, Uchiha Sasuke — Hosokawa decretou. — Renda-se agora e permitirei, ao menos, que parta deste mundo com o pouco de honra que ainda lhe resta.

Sasuke se apoiou com dificuldade ao fincar a ponta da espada no solo mole e colocou-se de pé. Quando se virou para Hosokawa, ela viu que as costas dele estavam úmidas pelo sangue que perdia; ele não resistiria por muito mais tempo aos avanços dos homens de Hosokawa, não com um ferimento daqueles.

— Você tem o disparate de me falar sobre honra — Sasuke caçoou. — Você. Que abandonou a batalha como o covarde que sempre foi. Mesmo depois de mais de vinte anos, continua sendo um covarde que envia os seus subordinados para fazer o serviço que não tem coragem de fazer por você mesmo.

Sakura também se levantou, agarrando-se ao braço de Sasuke para ajudá-lo caso vacilasse.

— Venha até aqui e lute comigo — ele continuou. — Mostre-me que não é o covarde que eu penso que seja.

O homem silvou, chupando o ar em resposta às provocações de Sasuke. Desceu do cavalo e desembainhou a espada que trazia na cintura, aceitando o desafio que lhe foi imposto ao avançar pela lama e pelo sangue dos seus homens mortos.

— Mostrarei como sou covarde — rosnou, avançando cada vez mais rápido.

Sasuke empurrou Sakura para o lado com um braço no momento em que Hosokawa os alcançou, brandindo a sua espada esguia com a fúria de um demônio. Mesmo ferido e incapacitado de usar o braço esquerdo, Sasuke se defendeu do golpe com maestria, e revidou logo em seguida, forçando seu oponente a também se defender.

Os dois se moviam pelo solo encharcado, os pés dançando para frente e para trás, e para os lados, e desenhando círculos e semicírculos. Hosokawa fazia jus às palavras que Sasuke usara para descrevê-lo da primeira vez em que o mencionou, mas o próprio Sasuke era tão veloz e ágil quanto, e não cometia erros em nenhum dos movimentos, executando-os com perfeição, além de ter a vantagem de ser anos mais jovem do que o seu adversário.

A luta jamais terminaria naquele ritmo, os dois homens estavam empatados tanto em habilidades quanto em determinação para vencer. Porém, Hosokawa não pretendera lutar com honra desde o princípio. Sakura viu o momento em que os arqueiros prepararam as flechas nos seus arcos e apontaram-nas para Sasuke, esperando pelo momento mais propício de dispará-las e encerrar a luta.

Desesperada, ela vasculhou através da lama por algo que pudesse usar como arma. Encontrou uma espada ao lado do corpo de um bandido abatido e sem pensar duas vezes lançou-se sobre o cadáver para recuperar a arma. Foi estranho segurá-la; a espada era mais pesada do que aparentava ser e ela precisou usar as duas mãos para envolvê-la, pois o cabo estava escorregadio de sangue.

Colocou-se de pé e voltou a observar a luta. Sasuke e Hosokawa ainda digladiavam em pé de igualdade, muito embora ela tivesse observado que o ferimento de flecha que Sasuke sofrera estivesse começando a cansá-lo, dando a vantagem da batalha a Hosokawa.

Então, num momento oportuno, ela enxergou a brecha de que precisava. Sasuke forçou Hosokawa a se defender, encurralando-o quase à beira do abismo e colocando-o de costas para Sakura. Ela não desperdiçou a oportunidade e, encontrando-o distraído, correu com a espada em riste, a extremidade da lâmina esguia apontada para as costas do homem.

No último metro a ser percorrido fechou os olhos com força e libertou um grito de bravura e de fúria do peito. Sua espada atravessou Hosokawa numa brecha da armadura que usava, sob uma das axilas. Ela não recuou depois disso e colocou toda a força no braço para empurrar a lâmina até o fim. E, com o seu impulso, Hosokawa perdeu o equilíbrio e começou a despencar em direção ao abismo.

Ela olhou para o rosto pálido de Sasuke uma última vez, esquecendo-se do medo que ameaçava dominá-la e de quaisquer arrependimentos que pudesse carregar no coração; não haveria nenhum, seu sacrifício valeria a pena.

O chão desapareceu sob os seus pés e, no intervalo de uma batida de coração, ela quase acreditou que pudesse voar. A gravidade tratou de puxar tanto ela quanto um moribundo Hosokawa para as profundezas do penhasco.

O vento soprou através da sua carne, através dos seus ossos, assoviando um canto agudo nos seus ouvidos que suplantou todos os outros ruídos, inclusive o grito de Sasuke pelo seu nome. Sakura olhou para cima a tempo de ver apenas o céu escuro e nuvioso, e as gotas de chuva que ele chorava.

Um segundo depois, seu corpo chocou-se contra a superfície do rio e o impacto e a dor deixaram-na com apenas um fio de consciência. Afundou como uma rocha, mas flutuou junto à correnteza como uma pétala de flor, não impondo resistência alguma.

A água lhe invadiu a boca quando as suas últimas forças lhe disseram para gritar. Os olhos escureceram, as pálpebras pesaram, teimando em se fechar. Sua segunda vida terminaria, também, nas profundezas frias das águas, mas ao contrário da primeira vez ela não sentiu medo, sentiu-se em paz. Seu sacrifício salvaria a vida de Sasuke.

A história de amor que viveram seria breve, mas ela se sentia grata de toda forma pelo destino permitir que tivesse sido concebida, contrariando a natureza do tempo e superando todas as suas adversidades até que um último e definitivo obstáculo separou-os.

Por um ilusório e único segundo, enquanto a consciência de Sakura ainda lhe escapava, ela pensou ver sombras avultando-se na água, vindo à sua direção e chegando cada vez mais perto. Viu o semblante de Sasuke e seu único reflexo foi o de sorrir.

Ele a envolveu nos braços enquanto os seus corpos flutuavam nas águas frias e agitadas, e a levou para cima com ele, lutando contra a forte correnteza que os puxava para baixo e para longe.

Deixou-se levar, uma vez amparada pelo abraço daquele que mais amava.

• ❈ •

 

Sakura cuspiu toda a água que havia se alojado nos seus pulmões, tossindo repetidamente enquanto o seu corpo se curvava e se encolhia tanto pelo frio quanto pelos espasmos dos membros dormentes.

Um par de mãos ajudou-a, virando-a de lado para que expelisse toda a água. A sua garganta queimava, o seu peito queimava. Mas no restante do seu corpo havia apenas uma rigidez incômoda causada pelo frio. A chuva caía implacável sobre ela, não permitindo que Sakura extraísse calor de lugar algum. Dedos gentis afastaram os cabelos molhados do seu rosto, o que a permitiu abrir os olhos e enxergar o entorno.

Areia grudava-se à pele nua das suas pernas e braços, e mesmo aos shorts e a camiseta que ela usava. Sakura ergueu os olhos e viu o céu, escuro e nuvioso, e as gotas frias de chuva que ele chorava, além de um rosto que pairava, angustiado, acima do seu. O reconhecimento confortou-a.

— Sasuke-kun — disse num fio de voz e o jovem rapaz recuou como se houvesse acabado de levar um choque.

Então Sakura percebeu as vestimentas que ele usava: camiseta e bermuda, roupas modernas mas discretas, e apropriadas para um dia quente e ensolarado em Kamakura. Não mais o quimono escuro e a hakama preta com os quais se habituou a vê-lo, ou que o ajudou a despir naquela noite em que se amaram. Mas aquele estranho diante dela tinha os mesmos olhos e cabelos negros, o mesmo rosto elegante e harmonioso, e até mesmo a forma de olhá-la era familiar.

A voz de Ino, soando desesperada, arrancou-a das lembranças que tinha de Sasuke e trouxe-a de volta ao presente:

— Sakura! Sakura! Ah meu deus! Você está bem, Sakura?! Consegue me ouvir?! Sabe quem eu sou?!

Sakura se virou para a figura da melhor amiga, encharcada pela chuva e com os olhos vermelhos de tanto chorar. Devagar, ela aquiesceu e até mesmo conseguiu esboçar um sorriso.

— Ino-chan.

— Me desculpa — ela implorou. — Eu me atrasei para chegar até aqui... Se tivesse chegado um pouco mais cedo, antes que a tempestade... Você tem ideia do quanto me deixou preocupada?! Ficou quase dez minutos embaixo da água, Sakura! Você quase morreu! Me deixou louca de preocupação quando vi os seus pertences na areia e percebi que tinha entrado no mar — choramingou, rendendo-se ao choro.

— Está tudo bem, Ino-chan — Sakura murmurou para confortá-la.

Então se virou para Sasuke outra vez, estudando-o. Não fazia sentido. Sakura não conseguia conciliar os dois Sasuke que conhecia na sua mente: o do passado, que a amara e pelo qual ela sacrificara, e o diante dela, olhando-a com curiosidade, mas sem nenhum traço de reconhecimento.

Ino percebeu que Sakura fitava seu salvador e dirigiu-se a ele.

— Muito obrigada mesmo por ter salvado a minha amiga! Se não fosse por você eu nem sei o que poderia ter acontecido... Como você se chama? Para que eu possa te agradecer da forma apropriada.

Ele não demoveu os olhos do rosto de Sakura quando a respondeu:

— É Sasuke. Uchiha Sasuke.

— Oh, muito, muito obrigada, Sasuke-kun! — A jovem imediatamente olhou para cima, à procura de algo ou alguém. — Eu já chamei por uma ambulância. Devem chegar aqui em alguns minutos.

— Talvez fosse melhor tirá-la dessa chuva pelo menos — Sasuke observou e Ino assentiu mecanicamente. — Vamos esperar pela ambulância num lugar seco e abrigado da tempestade.

Quando os braços de Sasuke se moveram para envolvê-la, erguendo-a com facilidade, Sakura não conseguiu evitar encostar-se a ele, sentindo o calor do corpo através das roupas encharcadas. Agarrou a camiseta entre os dedos e tombou a cabeça de encontro ao peito dele, fechando os olhos enquanto Sasuke levava-a pela areia em direção a um abrigo da tempestade que rugia ao redor deles.

Estavam quase deixando a praia quando Sakura se lembrou.

— O garotinho — murmurou, forçando a voz a fim de sobrepô-la acima do som da chuva e do vento. — O garotinho que estava se afogando... F-Foi por ele... Por ele que entrei no mar.

Ino e Sasuke se entreolharam confusos.

— Não havia nenhum garotinho, Sakura — Ino lhe disse, tocando seu braço para confortá-la. — Não havia mais ninguém lá. Só havia você.

Ela fitou o mar com uma mescla de sentimentos beligerantes no peito; as ondas que quebravam violentas na orla da praia, a faixa escura de areia molhada. Olhou para cima, para a face de Sasuke, e não soube mais o que dizer.

— Vamos — Sasuke disse à Ino e seguiu em frente, levando Sakura nos braços.

Ino colocou o celular na orelha a fim de informar aos atendentes da emergência que eles esperariam pela chegada da ambulância num local protegido da tempestade.

Sakura roubou um último olhar da praia sob a chuva, do mar agitado, o tempo todo se perguntando se o destino havia lhe pregado uma peça cruel. Mas o que vivera na era Edo com aquele Sasuke do passado havia sido real, não tinha dúvidas disso. Tinha sido tão tangível quanto aquele Sasuke do presente tê-la tirado do mar e estar levando-a nos braços agora.

Fosse o que fosse, aquela praia uniu o seu destino ao dele. O incidente do seu afogamento ligara-a a ele. Devia sua vida a ele outra vez, uma dívida que jamais seria capaz de pagar. Estava certa quanto a tudo isso. E o seu amor por Sasuke sobreviveu ao tempo — quase quatrocentos anos de espera e solidão —, portanto não seria de se espantar que sobrevivesse a todo o restante.

A força daquele amor fizera-a se atirar num despenhadeiro a fim de salvar a vida daquele que amava. E o mais importante: estava de volta aos braços dele, ao lado dele, ainda que ele não pudesse se lembrar de tudo o que viveram um dia.

Não importa, Sakura decidiu, voltando a esconder o rosto no peito dele. Contentava-se por ainda estar viva e por ainda poder sentir aquele sentimento por ele.

O tempo trataria de acomodar todos os outros detalhes. E isso era algo que Sasuke e Sakura possuíam em abundância. Hoje e para sempre. A tinta com a qual aquela história fora escrita ainda não havia secado. Cabia à Sakura reescrevê-la e dar a ela um novo final.

F I M


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Notas finais do capítulo

Escrevi essa one-shot para o SasuSakuTwitFest que acabou na sexta-feira passada (acabei perdendo o prazo), mas a história saiu no fim das contas! Hahaha

O tema do primeiro dia era "viagem no tempo" e como recentemente eu andei assistindo Moon Lovers (e me descabelando de tanto chorar com o final), acabei me deixando influenciar um pouco e deu no que deu. Olha, fazia muito tempo que eu não criava um plot UA pra SasuSaku, então acho que essa história acabou sendo um teste pra ver se eu ainda sabia escrever UA. Coincidentemente, também acabei postando essa one-shot grandona bem no dia dos namorados! E todo mundo sabe que Sasuke e Sakura são eternos namorados e pombinhos apaixonados Hehehe

Espero que tenham gostado!

Muito obrigada pela leitura e até uma próxima vez! xoxo