No More Secrets: Terceira Temporada escrita por CoelhoBoyShiper


Capítulo 1
Lâmpada Quebrada


Notas iniciais do capítulo

TERCEIRA E ÚLTIMA TEMPORADA DE NO MORE SECRETS.
Foi um prazer ter você até aqui.
Boa leitura!



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Durante toda a sua vida, Dipper nunca se viu como uma pessoa na qual um dia dependeria das outras.

Logo cedo, no jardim de infância, ele já tinha aprendido a se acostumar em não confiar nas pessoas, em não ter laços de amizade significantes, em não ser compreendido, em se virar sozinho. Foi uma coisa que ele passou a abraçar na sua personalidade. Algo que, com o passar do tempo, ele percebeu que era uma qualidade que se encontrava em pouquíssima gente. Mesmo numa idade curta – dos seus oito aos dez anos –, ele sentia-se extremamente orgulhoso em olhar para si mesmo no espelho, para suas notas, para a aprovação dos pais e dos professores, e ter a certeza de que não havia uma coisa sequer na qual ele não poderia fazer sozinho.

Era confortável viver naquela bolha de auto segurança, de autossuficiência, de superioridade. Mas é como a maioria das pessoas diz: nós não percebemos que estamos vivendo numa bolha até aparecer o alfinete certo para estourá-la.

E o alfinete que explodiu Dipper para fora de sua bolha fora o inesquecível verão do ano de 2012.

Depois dele, Pines passou a se perguntar por que ele se questionava tanto o tempo todo, por que questionava as suas habilidades, por que ele já não se sentia mais como ele mesmo, por que ele não mais se reconhecia em muitos momentos. O que tinha acontecido?

A resposta era Gravity Falls.

Gravity Falls tinha acontecido.

Bill Cipher tinha acontecido.

Stanford tinha acontecido.

Todos esses fatores foram a grande cutucada que estourou a bolha que o sustentava no ar, fazendo-o despencar numa queda que não parecia ter fim. Uma queda que ele continuava a cair até hoje. No entanto, diversas vezes era uma queda necessária – Dipper, vez ou outra, amava a adrenalina que era cair em todas as mais diversas sensações que ele nunca tinha sentido anteriormente. Sacrificar-se, doer-se, porém, ao mesmo tempo, amar e se aventurar era algo assustador, mas novo. Agitado. Animador. Divertido.  Algo que ele não sabia que um dia precisaria.

Algo que ele não sabia que estava faltando antes.

Sabe quando você finalmente troca uma lâmpada que esteve queimada por muito tempo num cômodo da casa, e, quando você acende a luz pela primeira vez em meses, você começa a notar na sala detalhes nos quais você não era capaz de ver antes, e aí você se pergunta “como eu aguentei viver nessa escuridão por todo esse tempo?” Pois é. Era a mesma coisa com Dipper. Às vezes, nós nos acostumamos tanto com a escuridão de uma lâmpada quebrada que nos esquecemos de que precisamos da luz de vez em quando para vivermos melhor.

Dipper só pôde dissipar as sombras e enxergar que realmente estava vivo após conhecer Stanford – o irmão gêmeo do seu tio-avô –, perdido por anos numa dimensão paralela chamada Mindscape, que, por coincidência, era o lar de outra importante presença nas mudanças da sua vida, Bill Cipher – um demônio, escravo de Time Baby, governante daquele mundo que ainda era um mistério para Dipper.

Até agora.

Afinal, agora Mason estava ali. Na origem de todos os seus problemas.

Aquelas pessoas haviam sido tão importantes para ele, que Dipper se prometeu protegê-las a qualquer custo. Mas havia falhado, ele não havia visto o perigo se aproximando, achou que os amigos eram os seus inimigos quando, na verdade, era quem ele pensava ser seu amigo que lhe queria fazer mal. Wirt era Time Baby, e Time Baby era Wirt o tempo todo. Bill Cipher não queria prejudicá-lo, e sim salvá-lo. Agora, Stanford e Mabel estavam na posse dele em deus sabe-se onde. E Cipher... céus, Dipper nem sabia o que pensar dele. Bill estava morto? Ele estava apenas possuindo o corpo do seu professor de literatura, Evum havia definitivamente partido (infelizmente), mas quanto ao seu hospedeiro... ele não fazia ideia do que tinha acontecido.

A queda para fora da sua bolha havia acabado, e Dipper havia acertado em cheio o solo daquela dimensão desconhecida. Ele não esperava que a dor do impacto fosse menor do que estava sendo agora, afinal, ele reconhecia o tamanho da distância que ele já havia caído antes de atingir o fundo do poço.

O Mindscape estava por todos os lados, rastejando furtivamente pelas costas dele como um predador observando sua presa indefesa de longe, esperando o momento certo para atacar. E Dipper não podia fugir, o portal havia se fechado para sempre, e ele não fazia ideia de como faria para seguir em frente, qual era o próximo passo a se dar. Wirt havia sumido com seus amigos e família para o meio do deserto. Não podia voltar para o seu mundo, e nem voltar mais no tempo. Não se pode fugir das feras quando se está preso dentro da jaula delas. “Se eu correr, o bicho pega; se eu ficar, o bicho come.”

Como ele já estava cansado demais para lutar ou correr, entre as duas alternativas ele escolheu ficar. Ficar deitado ali, naquela duna de areia, a esperar pelo o acaso decidir o que seria dele dali em diante.

De um minuto para o outro, o vento quente começou a ficar mais forte, erguendo a areia acima dele. Logo, a ventania juntou uma grande quantidade de areia, rodopiando no ar e fazendo um redemoinho se aproximar cada vez mais de Dipper. Quanto mais ficava perto, mais o garoto sentia uma energia vinda daquele pequeno tornado – uma vibração quase elétrica que arrepiava os pelos do seu braço. Ele já conhecia aquilo muito bem. Era magia. Aquele não era um tornado comum.

Quando o ciclone parou por cima dele, Dipper se esforçou para manter os olhos abertos. Aquele poder sugava o restante de energia dentro dele que sobrara da luta contra Wirt apenas alguns instantes mais cedo. Dentro do olho do tornado a oscitar, uma figura curiosa avultou-se sobre ele: uma pessoa alta usando uma capa negra que cobria todo o seu corpo e rosto. Fosse lá quem fosse, era a ele a quem o redemoinho obedecia. Dipper tentou lutar contra, buscando o seu poder nos degraus mais fundos do seu corpo, mas a magia não respondia aos seus comandos – estava em puro desgaste. Tentou despertar sua magia de novo e novo, no entanto, tudo que sentiu de volta foi uma acidez dentro do peito, similar a de uma azia, e uma sensação nova de impotência, era como se ele tentasse acender, inutilmente, um isqueiro no qual ele sabia que tinha acabado o gás.

A criatura encapuzada curvou-se sobre ele.

É assim que eu vou morrer?”, pensou Dipper. “Depois de tudo isso, partir aleatoriamente nas garras de um monstro desconhecido do Mindscape?”

O ser enigmático, após muito observar o garoto desfalecido, bateu as palmas e, de uma só vez, a tempestade de areia se fechou por cima deles.

E Dipper apagou junto com o resto do mundo.


***

Após um tempo que ele nunca teria definido, ele acordou ainda no escuro. No entanto, agora, ele podia ver as coisas ao seu redor com mais facilidade por causa da iluminação insólita do local que ele se encontrava – havia rochas por todas as partes, todas elas se curvando do chão e terminando no teto em estalactites feitas de cristais vermelhos como rubis a chamejarem no topo de uma gruta, iluminando todo o arredor numa nuance neon escarlate.

Eu morri?”, de uma coisa Dipper tinha certeza: se ele tivesse mesmo morrido, estar morto era muito parecido com estar vivo. Olhou em volta e viu o resto da alcova repleta de archotes e a cama macia em que ele estava deitado, um cobertor preto felpudo cobria seu corpo. “É assim que é o Inferno?”

Sentou-se sobre a redonda cama suntuosa de cetim negro enquanto tentava se situar da sua nova realidade. Buscou em todas as direções por uma saída com os olhos. Não encontrou nenhuma. “Fui sequestrado”, pensou atônito. “Algum monstro me sequestrou e vai me fazer de prisioneiro até conseguir me trocar no mercado negro por algum artefato precioso que só tem aqui ou algo do tipo.”

Saltou do colchão e, ao colocar os pés no chão, pulou de volta para a cama. O chão parecia uma chapa quente que quase queimou a pele da sola dos seus pés mesmo através do seu All Star. Deu um chiado de dor, percebendo o quanto o resto do aposento era quente. “Okay. Se eu não estiver vivo, definitivamente estou no inferno.” Observou um par de sandálias gladiadoras, feitas de um material que ele não conhecia, postas próximas ao pé da cama, que era feito de pedra maciça esculpida no formato que abrigava o colchão.

Tirou os tênis e calçou as sandálias, pisando no chão em seguida tranquilamente. Aqueles calçados pareciam terem sido feitos justamente para proteger a pele dele contra o que parecia ser um solo de rocha magmática. “Estou dentro de um vulcão?”

Ficou em pé. Não muito distante, havia uma dobra nas rochas que muito se assemelhava a uma mesa. Tanto que até parecia ser usada como tal, já que tinha um par de roupas dobradas sobre o tampo. Dipper chegou perto. Tinha um cropped regata de couro preto e brilhoso, acompanhado de um short curto do mesmo material. Tinha outros acessórios colocados em volta da roupa: dois braceletes punks também de couro preto, cravejados com pontas e espetos de metal; um colete longo de tafetá que virava uma capa com capuz nas extremidades; e um cinto vermelho escuro com um pingente de cobre no formato de uma caveira no lugar da fivela.

Não vou usar isto de jeito nenhum.”

Inesperadamente, um som segmentado começou a ecoar dentro da gruta. Dipper tomou um susto, olhando para todas as partes, buscando a origem do som, mas não conseguiu encontrar. Eram passos. Alguém estava perto. O quarto em que ele estava não tinha nenhuma porta ou janela, sem escapatória.

Preciso me defender!”

Girou em torno do próprio eixo, desesperado. Não havia nada que pudesse ser usado como arma. Dipper estalou os dedos, lembrando-se da peculiaridade que ele agora portava. O seu poder respondeu imediatamente. Agora, após descansado, ele sentia a magia pulsar dentro dele de volta com mais força. Subiu na cama, esperando chegar o que quer que chegasse ali em alguns instantes enquanto ele abria os braços, fazendo toda a energia correr por suas veias até terminar nas pontas dos seus dedos, onde se formavam duas esferas enormes de um plasma azulado flutuante. Assim que o seu sequestrador entrasse no seu quarto, ele estaria ali para rebater com toda força.

Os passos pararam e, de um canto específico da caverna, ouviu-se o som de uma tranca se abrindo e a maçaneta de uma porta sendo girada. “Porta? Mas que porta?”, perguntou-se, pois em nenhum lugar do covil inteiro tinha uma porta a vista. Mas aí, uma linha preta fina começou a surgir em uma das paredes, desenhando um contorno retangular na pedra bruta, que se dissolveu feito espuma de sabão, dando espaço para uma superfície de madeira com fechadura e tudo. Dipper se impressionou ao ver que era de fato uma porta, uma camuflada com magia o tempo todo.

Não era hora de se distrair, Dipper ficou a postos, esperando o inimigo entrar na sua cela. Antes de a porta terminar de ser aberta totalmente e dele ver quem estava por trás dela, Dipper disparou uma série de jorros de magia contra o oponente. O seu poder retumbou tão forte pela câmara que foi como estar dentro de uma nuvem carregada, cercado ao som dos trovões.

A pessoa atrás da porta recuou espantada:

Mas o quê...?!

Mesmo achando a voz familiar, Dipper não fraquejou, desceu da cama, aproximando-se ainda com mais investidas que fizeram a sala inteira brilhar como se fosse uma discoteca a se abalar com as luzes de um raio.

O que quer de mim?! — berrou ele.

Calma! Eu não vou te machucar! — a pessoa atrás da porta irrompeu para dentro do quarto de repente, balançando a mão na frente dele mesmo. Imediatamente, uma espécie de escudo feito de uma energia similar a de Dipper, um plasma vermelho flutuante, foi desenhada no ar à frente do anfitrião que se protegia dos golpes do outro.

O rosto que Dipper observou assim que a porta se fechou e desapareceu para dentro da rocha de novo era familiar e aliviante ao mesmo tempo. Era o menino-demônio que quase se parecia com um adolescente comum. Ele tinha chifres a ladearem a sua cabeça, um cabelo rosa arrepiado num topete, e um terceiro olho que residia sob sua testa de pele roxa. Ele ainda estava usando a capa que Dipper o vira usar no redemoinho mais cedo. — Isso não é um sequestro. — assegurou o garoto ainda inseguro por detrás do seu escudo vermelho translúcido. — É um resgaste.

Dipper deixou as mãos caírem inúteis aos lados do seu corpo, respirando ofegante. O demônio manteve a proteção mágica diante dele e, depois de um minuto de silêncio constrangedor, perguntou: — Não vai me atacar mais?

Pines sacudiu a cabeça.

Eu sei quem é você.

Sabe? — deixou que a barreira desmanchasse, ficando face a face com o outro.

Sei. Você é amigo do Bill, não é?

Ele assentiu.

Thomas Lucitor. O prazer é meu. — estendeu a mão para Dipper, que retribuiu depois de uma breve hesitação. — Vejo que já acordou. Eu vi o final da briga entre você e Time Baby de longe no deserto assim que vocês atravessaram o portal. A coisa parecia complicada...

Dipper não respondeu nada. Sentou de volta na beirada da cama.

Você está com fome? Deve estar depois de ter usado seu poder daquele jeito. — continuou Tom, cruzando os braços e analisando o convidado com cautela. — Afinal, desde quando um humano com você consegue usar um poder do Mindscape? Parecia mais poderoso do que o de qualquer outra pessoa por aqui...

Eu... meio que estou com os poderes do Time Baby.

Tom arregalou os olhos numa mistura de espanto e confusão para cima de Dipper.

Quê?!

É uma longa história.

Os poderes do Time Baby? O dono do Cipher e o próprio ditador cretino dessa merda desse lugar? No que o triângulo se meteu agora?!

Ele... — Dipper tentou explicar, mas percebeu que era complicado demais. Como ele gostaria que existisse alguém por aí escrevendo detalhadamente a história de tudo que aconteceu na sua vida para que, toda hora que alguém perguntasse a ele “o que aconteceu?”, Dipper pudesse simplesmente dar a pilha de texto enorme para a pessoa e simplesmente falar “leia isso tudo que você vai entender”. Suspirou. — Onde eu estou, Tom? O que você quer? E cadê a comida que você me falou?

Na minha casa. Quero entender o que aconteceu com o meu amigo e te ajudar de alguma forma, não é seguro para humanos estarem aqui. Já não é seguro para os próprios habitantes do Mindscape viverem nessa fossa. Está seguro aqui, não se preocupe. E... — estalou os dedos casualmente e da ponta deles chispou uma faísca que se abriu no ar, virando uma bola de fogo enorme que explodiu rapidamente, as chamas sumindo logo em seguida, transformando-se numa tigela posta numa bandeja de inox a flutuar em pleno ar.

Uou! — admirou-se Dipper de olhos bem abertos e o queixo despencado. — Você consegue fazer isso?!

Você não? — Tom gesticulou a mão e a bandeja pairou no ar, descendo até o colo de Dipper como se fosse suspensa por fios de linha transparente. Dentro da tigela tinha o que pareciam ser cereais normais com leite e uma colher de prata. — Foi uma das primeiras coisas que aprendi a fazer com os meus poderes no jardim de infância.

Dipper sentiu-se brevemente envergonhado.

Eu meio que entrei nesse “ramo” recentemente. Eu não sei muita coisa sobre o que eu posso fazer até agora. Ou como eu posso fazer. — pegou uma colherada cheia e mastigou com gosto, ele não se lembrava de qual havia sido a última vez que comera, então descia quantidades enormes sem mal saborear a comida direito.

Entendi... — disse Tom meio que indiferente, observando o garoto comer em silêncio. — Você deveria tirar as suas roupas.

Dipper levantou a cabeça imediatamente com agressividade.

— Oi?!

Tom deu um arquejo de espanto, como se houvesse se lembrado de uma inconveniência rotineira.

Ah! Desculpe. Expressei mal. Eu quis dizer que você deveria trocar as suas roupas pelas as que eu deixei para você aqui. Não é seguro para um mortal andar por aqui usando o tipo de roupa que você está usando agora. Acredito que deva estar sentindo calor, não é? Pois é, a temperatura do Submundo é mais alta do que na superfície, ouvir dizer que é prejudicial para o corpo frágil de vocês.

Dipper continuou a comer em silêncio.

Como você e Bill se conhecem? — Tom perguntou. — Ouvi dizer que ele estava numa missão para o mestre dele há muito tempo. Tinha a ver com você? Onde ele está agora?

A última pergunta foi como um soco no estômago de Pines. Ele evitou se engasgar com o cereal.

Ele... ele... O Bill... — ele tentou por diversas vezes trazer aquilo em voz alta, mas, pelo tempo passado sem completar uma frase inteira, Tom interrompeu compreensivo.

Quer saber? Tudo bem. Não precisa explicar nada agora, deve estar confuso para se situar ainda, né? — deu as costas, estalando os dedos no ar e fazendo surgir uma chave dentro de uma pequena combustão de chamas no ar. Tom jogou o objeto ao lado de Dipper, na cama. O garoto a pegou, mas a soltou no mesmo instante. O metal estava pelando de quente. — Toma. Pode me encontrar na sala quando se sentir melhor e tiver trocado de roupa. Vou estar te esperando.

Em seguida, como se o quarto respondesse automaticamente à presença do seu dono, a porta mágica desenhou-se sozinha na parede novamente, abrindo-se na medida em que Tom se aproximava. Assim que ele atravessou, a passagem fechou-se com um estrondo e evaporou na pedra como se nunca sequer tivesse chegado a existir alguma vez.


*


Depois de deixar a vasilha de cereal vazia sobre a mesa de pedra, a travessa, a colher e todo o resto sumiu diante dele numa pequena nuvem de fumaça. Dipper recolheu o que tinha sido deixado para ele como vestimenta e começou a se vestir. “Isso é escasso demais”, pensou, observando pela primeira vez o quanto as suas pernas, sua barriga e braços ficavam à mostra. Ele nunca tinha vestido uma roupa que havia lhe dado a sensação de ter colocado nada. Embora o couro fosse superconfortável, o cropped e os shorts eram muito justos.

Foi só ele pensar naquilo que começou a sentir um formigamento por debaixo das roupas e sobre a sua pele, o tecido começou a ficar mais folgado e se comprimir e retorcer ao mesmo tempo em torno dele. Era como estar usando roupas enquanto elas encolhiam na máquina de lavar, só que ao contrário. Então a realização o acertou: as roupas estavam vivas, também feitas de magia, e pareciam rastejar, se adaptando e ajustando no corpo dele ou de qualquer outra pessoa que as usasse de acordo com as suas respectivas necessidades anatômicas.

Bem melhor — disse ele, dando uma volta com os olhos em torno de si próprio, confirmando-se de que tudo estava no seu perfeito lugar. Um alfaiate não poderia ter feito um trabalho melhor com suas medidas. Ele não colocou o restante dos acessórios, aliás. Ainda estava muito desconfortável com a ideia. Apenas apanhou a chave, agora delicadamente morna e maneável, e caminhou até o ponto mais próximo de onde ele se lembrava de ter visto a porta pela última vez.

Tocou a parede. Perfeitamente sólida. Ainda era praticamente impossível para a mente racional dele processar a noção de que algo tão famigerado e distante como “magia” pudesse simplesmente fazer aquela superfície mudar num piscar de olhos. Talvez fosse perda de tempo ficar se impressionando com algo que ele já estava cansado de ver (já tinha visto coisas mais impressionantes ainda em Gravity Falls), mas era certamente mais fácil quebrar a cabeça com as novas miudezas peculiares ao seu redor agora do que com a confusão que ele não podia negar estar pairando nas suas costas o tempo todo. Era mais fácil se impressionar com a incompreensão de um passe de mágica do que com a complexidade da resolução dos seus problemas recorrentes.

Será que foi assim que Stanford se sentiu quando ficou preso pela primeira vez nessa dimensão há trinta anos?”

Sem saber direito o que estava fazendo, Dipper hasteou a ponta da chave na direção da rocha e, assim que o objeto tocou a parede, o concreto se tornou macio feito uma camada de cimento que ainda não havia secado, engolindo os dentes serrados da chave num exato ponto em que se moldou uma fechadura. Dipper girou a chave e o que faltava da porta surgiu de uma vez, partindo-se para fora ao som de dobradiças antigas. Ele pisou para o lado externo, chegando num corredor exótico.

Diferente do de dentro, o piso não estava na matéria crua, e sim polido, era um grande calçamento vermelho reluzente que se estendia para as duas direções. As paredes eram como de um palácio antigo de arquitetura gótica: arqueado com abóbodas e flanqueado por uma quantidade enorme de archotes rústicos desligados. No entanto, assim que a porta bateu atrás de Pines, uma das tochas se acendeu, como se estivesse no piloto automático de qualquer que fosse o feitiço do qual elas regiam. Em seguida, mais outro par se acendeu, e continuou assim até todo o lado direito do corredor se tornar iluminado numa trilha de pontinhos em chamas.

Está me dizendo para onde eu devo ir”, deduziu.

Seguiu na direção que lhe era curiosamente apontada, as luzes se apagando por suas costas a cada passo que ele dava ao se distanciar mais de cada uma delas. Por fim, a passagem se abriu para um hall enorme que estava perfeitamente iluminado ainda na coloração alaranjada. Isso se dava em conta de nada mais do que uma enorme cascata de lava borbulhante que escorria através de uma janela enorme de vidro.

Uau... — sussurrou ele para si, passando os pés para cima de uma tapeçaria elegante do que parecia ser a pelagem real de algum animal desconhecido tingida de vermelho e bordada com detalhes dourados. Por toda sua volta encontravam-se mesas de jogos estranhamente humanos: ping-pong, bilhar, futebol de mesa e pontos de pôquer. Era a primeira vez que ele via uma sala recreativa tão alternativa.

Bem vindo ao meu humilde covil, humano. — saudou Tom, aparecendo de um dos cantos, deitado num divã que se movia. Primeiro Dipper não se impressionou, achou que o móvel devia ser equipado com rodinhas ou algo assim, até perceber que não tinha como rodinhas deslizarem naquele carpete. Ele olhou para os pés do sofá e percebeu que eles eram literalmente pés. Pés quase humanos, atados por uma costura macabra às quatro extremidades do divã, locomovendo o seu usuário pela sala no que parecia ser de acordo com as vontades do mesmo.

Segurou um grito de espanto. Tentou recomeçar, em seguida, num tom trivial:

Devo pegar um lugar para me sentar?

Não se preocupe com isso. Aqui é o lugar que te pega.

Ao dizer isso, um par de braços grandes, vindo por detrás de Pines, se fechou em volta dele. Dipper tomou um susto. Quando percebeu, estava sendo segurado no ar por mãos flutuantes na medida em que um assento de uma poltrona aparecia por debaixo dele. Os braços o soltaram e ele despencou no lugar, encostando a coluna num grande encosto almofadado enquanto os braços humanos se retorciam como marionetes articuladas, acomodando-se aos lados dele e voltando a serem os braços normais do sofá, sendo substituídos por espuma e tecido.

Ugh!”, rejeitou a “tecnologia”, botando a língua pra fora com nojo. “Legal, mas... ugh!”

Então — Thomas reiniciou. — pra começo de conversa, como se chama, Senhor Homo Sapiens?

É Pines. Dipper Pines.

Os três olhos do demônio cintilaram com reconhecimento.

Tipo... Pines, Pines? Tipo... descendente de Ford Pines?

Conhece ele?

Conhecer não é a palavra mais exata. Mas não há uma alma viva aqui no Mindscape nos últimos trinta anos que não saiba o nome desse humano. Ele fez um belo de um fuzuê quando passou por aqui por uns tempos.

Imagino... — Dipper abaixou a cabeça. Havia tentado demais evitar de se lembrar desta pessoa desde que tinha acordado. Mas não podia evitar, os pensamentos preocupados só haviam chegado mais cedo do que ele esperava. “Onde está você agora, Stanford?”

Como ele tem ido? — insistiu Tom.

Bom... — Dipper limpou a garganta, tentando segurar as lágrimas num sorriso constrangido. — Isso é meio que parte do motivo de eu estar aqui.

Então Dipper contou tudo a ele. Tudo sobre a história confusa de Bill com Time Baby, como o demônio tinha possuído o seu professor, ido à sua escola, porque Baby queria se vingar dele por ter alterado o tempo e tirado boa parte da sua magia e poder no futuro. Segurou as lágrimas para não chorar na hora que teve que falar sobre sua família sendo sequestrada por Wirt, mais ainda quando chegou na hora em que ele teve que falar sobre ter visto o corpo de Evum explodindo diante dele.

Tom ficou de olhos arregalados.

O Bill... — Lucitor tentou falar, mas Dipper interrompeu.

Se foi.

Thomas sacudiu a cabeça, negando.

Não. O Bill não pode ter morrido.

Dipper suspirou. — Olha, eu sei que é difícil de ouvir, mas foi o que aconteceu.

Não. Não foi o que aconteceu. Bill Cipher não morreu porque ele não pode morrer.

Pines levantou a cabeça rapidamente, alertado pelo conteúdo das palavras, o coração batendo forte. — Como assim?

— “Morte” é um conceito que é apenas aplicável a criaturas vivas com um corpo físico próprio, como vocês, humanos. — Explicou Tom, ajeitando a postura na cadeira. — Os seres da raça de Bill Cipher não podem morrer, porque eles não têm um corpo que possa estar biologicamente “vivo” pra começo de conversa, ainda mais se ele estivesse usando o corpo de outro humano, como no que você me disse.

Então, o meu professor...

O seu professor morreu mesmo, lamento. Ele tinha um corpo orgânico. No entanto, Cipher é feito de plasma, uma energia composta de luz, o que aconteceu foi ele ter sido expurgado do corpo do recipiente dele.

Então... Bill está vivo?

Claro, ele não tem como morrer desse jeito. Mas...

Tom fez um silêncio perturbador.

— “Mas” o quê? — Dipper apressou.

Não acho que ele esteja bem.

Por quê?

Porque ele foi descomungado da guarda do dono dele. Pelo o que você me disse, Time Baby o puniu rejeitando-o.

Quer dizer que ele está livre?

Só da obrigação de ser um servente de um dono, mas não livre do Estado. — Thomas suspirou, colocando a mão à testa. O gesto esbaforido dele preocupou Dipper. — Ele provavelmente deve estar no Exílio...

O Exílio?

É o lugar para onde vão todos os rejeitados do Mindscape. É onde desertores, monstros, criminosos e criaturas de todos os tipos são jogados, a maioria acaba sendo trancafiada ou torturada ou sabe-se lá o quê. Geralmente é o lugar no qual a elite daqui usa para conseguir vender e traficar escravos por preços baixos.

Dipper se levantou num pulo. — E como eu chego lá?

Thomas deu um arquejo de espanto.

O quê?! Ficou maluco? Ninguém nunca deve ir num lugar daqueles, é morte certa! Ainda mais para um humano.

Dipper debochou.

Eu consigo.

Não, você não consegue; não tem ideia com o que está lidando.

Eu estou com os poderes do próprio Time Baby!

E daí? — Thomas se levantou. — O que você acha que isso vai fazer? Seu plano é chegar lá e sair quebrando a cara de todo mundo até achar o Bill e ir embora?

Tipo isso.

É suicídio! Até mesmo os poderes do ser de mais alto nível aqui no Mindscape seriam insignificantes se o portador não souber usá-los. Eu vi você mais cedo, você mal tem controle sobre a sua magia, e quase se matou naquela batalha no deserto!

Dipper se interrompeu, suas mãos se fechando em punhos.

Vou te mandar pra casa. — retrucou Lucitor. — Eu teria muitos problemas se descobrissem que estou dando cobertura pra um forasteiro. — estalou os dedos e, de uma parede, se abriu uma rachadura que aumentou e aumentou, e, assim como na primeira vez que Dipper tinha visto, surgiu uma porta medieval com uma escadaria que dava para algum lugar exterior mais acima. — Pronto, isso vai te levar de volta pra sua dimensão.

Tom virou a outra face, afastando-se lentamente do garoto, dando-o passagem para continuar. Mas Dipper não continuou. Ele permaneceu ali, admirando algo que se sentiu culpado por admirar. A saída do Mindscape de volta para a dimensão dele estava bem diante dele. A apenas alguns passos de distância, Dipper poderia simplesmente abrir aquela porta e se livrar daquele lugar e de todas as suas preocupações. Mas ele não poderia. Não mesmo. Ele não poderia ser egoísta daquele jeito. Não poderia deixar Ford, Mabel e Bill para trás. Ele nunca se perdoaria.

Dipper secou algumas das lágrimas que escorreram furtivamente pelas suas bochechas.

Me ensina.

Quê? — Thomas retornou a ele, a voz e sua fisionomia portando um quê de desentendimento.

Eu disse: me ensina. — Dipper virou para ele, um semblante determinado apossando-se dele. — Me ensina a usar magia corretamente, me ensina a controlar os poderes. Você claramente mais do que domina a sua magia. Você claramente vem mexendo com ela desde quando era criança. Se você me treinar, eu tenho como ir ao Exílio ou qualquer outro lugar, e salvar Bill e os outros. Eu sou o único que pode se opor ao Time Baby.

Thomas ficou parado e mudo por um instante como se Pines tivesse dito a coisa mais absurda no mundo.

Você não quer aprender isso. — respondeu depois de ter absorvido a tamanha estranheza da possibilidade.

Por que não?  Você mesmo disse que–

Porque isso tem um preço, Pines! Tudo aqui tem um preço, principalmente o poder.

Exatamente. Por que você acha que eu estou pedindo para...

Por que você acha que Time Baby é o que é?! — urrou Thomas num rompante deliberado que calou Dipper. Virou-se totalmente para o garoto, os olhos do demônio repletos de preocupação, medo e fúria. — Time Baby é o monstro que é porque ele tinha poder demais nas suas mãos... Magia não é para todos, Dipper. Pode subir na cabeça das pessoas. Principalmente humanos. Vocês vêm de um nível intelectual bem mais inferior ao nosso, são facilmente manipulados e gananciados. Uma influência como usar magia pode afetar vocês permanentemente se não usado cuidadosamente.

— “Se”! — insistiu Dipper. — “Se não for usado cuidadosamente”. É por isso que eu estou te pedindo. Implorando, na verdade. Por favor, Tom, me ensine como controlar isso. — ficou de joelhos, as mãos fechadas em prece. — Se magia com um mortal como eu pode ser destrutivo, você não pode me deixar simplesmente sair por aquela porta ainda tendo um poder tão poderoso como esse dentro de mim sem ser domado.

Thomas travou. Dipper tinha um ponto, afinal das contas. Porém, após um tempo, ele sacudiu a cabeça, negando de novo obstinado.

Eu lamento, Dipper, mas não!

Por que não?! Você prefere me ver arriscando? Porque eu não vou desistir de ir até lá, seja com você me treinando ou não.

Você vai acabar indo atrás de vingança. Isso não vai adiantar nada. — a voz de Tom começou a ficar mais irritada e gutural a cada resposta, a ponta dos seus fios de cabelo se acenderam em pequenas chamas, como velas de um bolo.

Time Baby quer escravizar todo o mundo humano!

E daí?! Por aqui ele já escravizou todo mundo! — fumaça começou a sair de dentro das suas orelhas, sua pele roxa ficando avermelhada, nesse ponto os seus cabelos haviam ido de velas de bolo à pavios de uma dinamite. Thomas estava a ponto de explodir. Mas Dipper não iria desistir.

E é por isso que devemos lutar contra ele!

Não! É exatamente por isso que não devemos lutar contra ele!

Ele roubou a minha família! Ele tirou de mim todas as pessoas que eu amo!

E DAÍ?! — Thomas se virou bufando alto, as suas pupilas completamente brancas e seus dentes afiados todos à mostra enquanto ele gritava num epíteto descontrolado. — ELE TAMBÉM TIROU AS MINHAS!

Com um estrondo tão alto quanto o rufo de um trovão, o topete arrepiado de Tom materializou-se em uma fogueira enorme que chispou pelos arredores. Um raio vermelho brilhante crepitou para fora dos seus dedos. Com um reflexo rápido, Dipper se esquivou, agachando-se. A energia elétrica passou estourando num assobio acima da sua cabeça, acertando toda a mobília que estava por suas costas. As mesas de ping-pong, bilhar, cartas, os sofás, cadeiras e divãs foram lançadas contra as paredes como se fossem de brinquedo, a sala de jogos indo aos pedaços em questão de segundos.

O carpete felpudo e reluzente agora estava opaco, cinza e cheirando a queimado abaixo dos seus pés, o resquício da combustão repentina ainda chiando nas suas orelhas como de um fio desencapado em curto-circuito enquanto Tom zanzava de um lado para o outro, espairecendo a mente. O demônio se encolheu num canto da sala, a respiração dele voltando ao normal aos poucos depois dele ter tirado um coelho rosa de uma gaiola discreta e começar a acariciá-lo. Um silêncio de culpa se seguiu.

Dipper voltou a ficar em pé, encarando Tom, sem saber ao certo o que sentir. Medo? Surpresa?... Dó?

Você... — a voz de Dipper era apenas um fiozinho, mas que ainda incomodava no silêncio pétreo do aposento. — Você quer falar sobre isso?

Tom suspirou, trazendo o bichinho de estimação no colo com carinho. O rosto dele de volta ao normal. Ver ele daquele jeito, tão normal – até onde um garoto de chifres, três olhos e pele roxa poderia ser considerado “normal” – quanto antes, fazia Dipper duvidar ter visto o que viu há apenas cinco segundos. O urro animalesco, os olhos gigantes e ferozes, e as presas amedrontadoras. Era isso que magia tinha feito com ele? Era isso que poderia acontecer com Dipper também?

Me perdoe por isso. — sussurrou Tom numa voz tingida de culpa, ignorando a pergunta anterior. — Eu não gosto quando eu fico assim. Eu... poderia ter te machucado.

Está tudo bem. — assegurou Dipper. — Eu não devia ter perguntado.

Não, não. Você tem razão. Magia já é perigosa para alguém como eu... poderia ser pior ainda para alguém como você. Eu não posso simplesmente deixar você andar com algo como isso dentro de você sem nenhum controle. — suspirou, olhando o coelho com uma ternura manchada de dolo. Em seguida, pela primeira vez desde sua explosão, ergueu o olhar para Pines, dizendo o que talvez fosse a coisa mais importante que ele diria a ele. — Porque se você não controlar os seus sentimentos, eles vão controlar você. Um dia você pensa que está usando a magia, e no dia seguinte percebe que era ela que estava te usando.

Dipper olhou para o chão, vendo os seus pés intactos e indiferentes sobre o tapete destruído. E lembrou-se das vezes em que estava experimentando com os poderes de Bill enquanto ainda estava em casa. A maneira sedutora do quanto ele havia se sentido poderoso; a forma que ele cogitara eliminar seus problemas num estalar de dedos com tanta segurança, mesmo que isso implicasse em destruir tudo e todos–e ter gostado da sensação.

Tom continuou com dor:

Porque se você não tiver controle... você acaba como eu. Ou pior, como Time Baby.

A frase, por algum motivo, enviou um desconforto engraçado no coração de Dipper. Algo parecido com um déjà vu, como se sua intuição tentasse dizê-lo que aquilo deveria significar algo a mais para ele. Entretanto, Dipper desconsiderou o sinal, passando por cima ao dizer: — Obrigado, Tom. Obrigado mesmo.

Bem... — prosseguiu ele de volta à voz casual, colocando o coelho ao chão, deixando que corresse livremente. — Vamos começar com o básico do básico.

Ele estalou os dedos. A passagem para a outra dimensão que ele abrira na rocha há alguns instantes se fechou, as lascas de pedregulhos se unindo e retornando para a parede, vedando a porta do outro lado – era como se Dipper estivesse assistindo um vídeo ao contrário. Em seguida, uma delicada explosão controlada apareceu do nada a alguns passos dele, de dentro dela (após as pequenas chamas dissiparem com a nuvem de fumaça) apareceu uma pequena mesinha redonda de madeira e de três pés que sustentava unicamente uma maça grande e vermelha por cima.

Lucitor olhou para o seu mais novo pupilo com autoridade:

Primeiro, traga-me essa maça. Com magia.


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