Caixa. escrita por Mestre do Universo dos Vermes


Capítulo 5
Dan.




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Kelly chegou trôpega ao lago, suas pernas ameaçando ceder depois de tanto abuso. Não era exatamente um lago que marcou sua infância, ela foi lá duas vezes no máximo, mas lhe transmitia uma estranha calma estar ali. As águas antes cristalinas eram meio turvas, provavelmente resultado da poluição crescente das últimas décadas; o trampolim que já existiu havia há muito desabado, seu esqueleto de madeira podre resistindo bravamente na borda do lago; e os poucos peixes que restavam eram desmilinguidos e de cores feias, mas ainda havia vida lá, e isso a fez sorrir.

Era uma sensação surreal estar ali. Talvez fosse o misto de um estômago vazio e estar de pé unicamente pela ação de pílulas, café frio e umas poucas horas de sono, mas o ambiente parecia mágico, como se ela pudesse ver espirais coloridas no ar e um brilho alegre das árvores selvagens. Mas provavelmente era só alucinação.

O som de passos que ouviu também devia ser só alucinação. Delírios de uma mente insana que largou tudo para se embrenhar no mato só de calcinha.

“Kelly!” E, de repente, ela não ligava mais se era ou não delírio.

“Dan!” Se virou e lá estava ele, o causador dessa bagunça toda, o responsável por sua sanidade estar por um fio, o homem que ela mais amava na face da Terra e que sentiu tanta falta.

 Ele estava horrível, mas quem era ela pra julgar? Cabelos emaranhados e apontando em todas as direções, barba por fazer, lama e terra pelas roupas rasgadas que carregava debaixo do braço, enquanto ele próprio andava só de cueca.

Mas isso era coisa pra pensar depois. Agora era hora do abraço. Hora de provar para si mesma que ele não era uma ilusão febril.

Ele a abraçou de volta com a mesma força. Sua barba áspera espetava o rosto dela, mas eles ignoraram isso, assim como ignoraram o cheiro de duas pessoas que não tomavam banho a dias e o cenário nada ideal de desaparecimento e loucura. Ignorar era fácil. Era uma coisa humana.

“O que você está fazendo aqui?!” Dan perguntou.

“Eu— Eu não sei” Ela estava tão feliz por vê-lo de novo. Vivo. Lá. As emoções e o cansaço se misturavam e pensar era difícil “Eu só— Você sumiu— A polícia não achou pistas— Eu... Eu comecei a dirigir e acabei aqui, naquele acampamento idiota, sabe?”

“Ah, tá, claro!” Assentiu como se fizesse sentido “Comigo foi parecido” Talvez fizesse sentido. Não para o resto do mundo, mas para eles.

“E o que aconteceu?”

“Ah... É meio estranho sabe, meio vergonhoso” Levou a mão à nuca, hábito nervoso de quando não sabia se explicar “Eu só— Ei, você tá bem? Quer uma barrinha?” Tirou uma barra de cereais barata do bolso da calça que carregava.

Kelly aceitou, mãos trêmulas, rosto pálido. Ela não comia algo substancial há um tempo. Uma barra de cereal pode ser considerada comida substancial? Tanto faz. Seu estômago revirava e ela se sentia enjoada com a mera ideia de pôr algo na boca, então guardou a barrinha na mochila improvisada e garantiu que não estava com fome.

“Então, você dizia?” Encorajou. Apesar de preocupado com o estado da irmã, Dan continuou. Não é como se ele estivesse muito melhor.

“Eu... Bem, eu recebi um presente um dia. Parece que foi há séculos, mas só devem ter sido uns dias. Umas semanas no máximo” Kelly assentiu “E eu sei que é idiota, mas eu não conseguia abrir, porque ela não estava na rotina. Não estava planejada. Aquela caixa destruiu minha vida e, no fim, sabe o que estava lá?” Os olhos dele brilhavam com uma loucura contida e racional em seu próprio contexto. Mas qual loucura não é?

Dan tirou um pedaço de papel da pilha de roupas destruídas e entregou a Kelly. Em vez de perfeitamente dobrado, como ele costumava guardar papeis, estava amassado e embolado. No papel, os simples dizeres “Tenha um bom dia!” com uma carinha feliz desenhada.

Kelly olhou confusa para Dan.

“Ridículo, não é?” Riu sem humor “Minha vida inteira foi destruída por um papel de ‘tenha um bom dia’. Toda. Minha carreira, minha rotina, meu emprego, meu sono, meu futuro, tudo por quatro palavras e um desenho feliz tosco” Pegou o papel de volta “Mas sabe, isso me fez perceber uma coisa, eu não tive um bom dia. Nem quando li, nem antes, nas semanas infernais de tensão, nem antes mesmo de receber aquela maldita caixa. Eu nunca tive um bom dia, sempre preocupado com horários e rotina e doenças parasitárias, procedência de comida, horas de sono, depressão, produtividade, dobrar as roupas. Tudo isso pra quê? Nada” O sorriso ganhou ares maníacos.

“Eu não sei bem como acabei aqui. É como se algo me chamasse, sabe? Como com você. Eu nem lembrava desse lugar!” Gesticulou forçosamente com a mão livre “Mas faz sentido. Eu não aproveitei aquele acampamento, não de verdade. Não comi açúcar demais, não fiquei acordado depois da hora, me recusei a deitar em colchões que pudessem ter ácaros, nem nadei nesse lago com medo de esquistossomose” Riu “Esquistossomose! Eu tinha oito anos! Nem devia saber pronunciar isso!”

Kelly estava tentada a concordar, mas algo no tom de Dan não parecia certo.

“Eu comprei várias barrinhas baratas que são mais açúcar que cereal, andei até aqui da última parada de ônibus há uns doze quilômetros, cheguei, me entupi de açúcar, virei noites, dormi no chão, corri sem roupa. Foi tão libertador! Todas as coisas erradas! E, quer saber, eu gostei. Só falta uma coisa” Olhou contemplativo para o lago.

Kelly seguiu seu olhar, não gostando nada de onde essa conversa chegava.

“Você não aprendeu a nadar” Constatou. Era um fato. Dan tinha pavor de água quando criança, depois recitava chances de afogamento, contaminação, parasitas, sanguessugas, urina em piscinas públicas... Ele nunca aprendeu.

“Eu não preciso” Sorriu de novo, e o sorriso parecia singelo demais para alguém falando de suicídio, tranquilo demais para alguém louco “Só preciso uma única vez. Eu não quero voltar. Não praquela vidinha de correntes, não praquela loucura frágil o bastante pra quebrar com uma caixa” Deu um passo em direção ao lago, parecendo hipnotizado “Mas algo me segurava. Eu não conseguia ir. Não entendi por que... Até agora” Mudou seu foco para ela, seu olhar penetrante parecia atravessá-la.

“Era você. Você é a única coisa que eu sentiria falta. Eu queria me despedir, só não sabia disso ainda. Mas agora você está aqui e tudo é como deve ser”

“Daniel, você não pode estar falando sério” Apesar dos pontos escuros na visão, manteve o tom firme, na melhor imitação de sua mãe que podia fazer “Você não pode só... Não! E eu? Eu não posso ficar sem você! Olha pra mim agora!” Lágrimas escorriam por suas bochechas empoeiradas. Ela não ligava.

“Bem... Você sempre pode vir comigo” Estendeu a mão, um convite “O que há nesse mundo pra gente? Nada. Vem comigo. Vamos pra um lugar mais legal. Você vivia tentando me arrastar para o lago quando acampamos, lembra? Talvez agora seja a hora”

E, por mais que Kelly se odiasse por isso, era uma proposta tentadora.

Mesmo assim.

“Eu sei nadar” Disse no mesmo tom monótono de quem menciona o tempo.

Dan pareceu triste por um segundo, até o estado maníaco tomar conta de novo.

“Foi bom te ver, irmãzona” Outro passo. Seus pés afundaram na água fria.

“Você está errado se pensa que eu vou te deixar fazer isso! Não aqui, não agora, não depois de eu te encontrar!” Balbuciou, dando um passo incerto para frente, o equilíbrio faltando “Vamos voltar! Por favor!”

Dan deu outro passo, afundando até os joelhos.

“Não dá. Não depois de tudo” Estendeu a mão de novo “Vem comigo! O lago é lindo” Ele esperava uma réplica, talvez ela cedesse, talvez não, teimosa como sempre, mas ele iria até o fim com ou sem ela. Finalmente era hora. Ele se despediu. Nada que ela dissesse mudaria isso.

Mas Dan não estava pronto para o que aconteceu.

Kelly caiu.

Não tropeçou, caiu, como se o peso de seu corpo fosse demais para as pernas. Colapsou. Ele saiu às pressas da água e agarrou seu corpo no chão, apoiando a cabeça pendente. A palidez preocupante acentuada, a pele tão fria, como ele não percebeu essa frieza toda no abraço? Ela estava respirando?

Os olhos de Kelly se moviam preguiçosamente de um lado para o outro, mas até isso parava também. Não havia pulso. Não havia respiração. Não havia nada.

Dan achava que o lago seria um cenário bonito para a morte, mas, quando a morte o encarou frente a frente, ele viu que não existe cenário bonito porque o cenário não importa mais. Nada importa mais. A morte é feia.


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