Impossível escrita por kjuzera


Capítulo 20
"Eu confio minha vida a você"




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Kirishima Eijirou era um dragão da espécie Cobre, jovem mas já adulto, e certamente muito pacífico. Nada em sua natureza justificava a vontade que tinha de trucidar o humano montado em seu pescoço.

— Caralho, Kirishima, eu vou cair desse jeito!! - Bakugou se agarrava aos espinhos do dragão com uma mão como podia, na outra segurava o pequeno baú que tinha roubado. 

Talvez fosse bom mesmo que ele caísse, Eijirou pensou enquanto continuava se remexendo propositalmente para desequilibrá-lo, vocalizando seu descontentamento. Era um absurdo o que ele tinha feito. Aliás, ele nem sabia direito o que o bárbaro tinha feito, pois ele não tinha contado! Depois de tudo que eles tinham passado, Katsuki não tinha contado nada pra ele. 

— Eu ia te contar, porra! Para com isso!! 

Ainda bufando de raiva, Eijirou parou de tentar derrubar seu único ocupante. Era bom mesmo que ele contasse logo o que estava acontecendo. 

— Eu não podia te contar lá na caverna e correr o risco de alguém ouvir. E antes, quando a gente saiu pra caçar aquela vez… Bem... Eu também não sabia direito o que estava acontecendo e não quis te preocupar. - O bárbaro admitiu finalmente conseguindo se equilibrar normalmente. 

Ironicamente, deixá-lo preocupado era o que ele mais tinha feito nos últimos tempos. Quando o bárbaro entrou no castelo para não sair mais, Kirishima se sentiu extremamente culpado por tê-lo deixado na mão. Sentindo-se confortável enquanto esperava ser chamado, ele acabou dormindo na torre, exatamente como o bárbaro tinha instruído ele a não fazer. 

Acordou horas mais tarde com o barulho metálico de um soldado achando que iria conseguir perfurar sua barriga com uma espada. Se ele conseguisse sequer arranhar suas indestrutíveis placas de escamas vermelhas já teria sido um feito incrível.

Enquanto vários dos soldados correram morrendo de medo do dragão ter despertado, o mais valente que tentou perfurá-lo colocou-se à frente de Kirishima.

— Acabou, dragão! Nós estamos com seu mestre e se você não se render, nós vamos matá-lo! 

Se aquele soldado pretendia que Eijirou não o atacasse com aquelas palavras, ele estava extremamente equivocado. O melhor que ele conseguiu foi inflamá-lo de raiva. Eijirou abriu as asas imponentes e rugiu alto. Alguns soldados que ainda estavam em dúvida entre lutar ou fugir, nesse momento correram por suas vidas. 

O dragão aproximou o focinho do único soldado que restava na torre e o cheirou. 

Era verdade. Ele podia sentir o cheiro de Katsuki nele, cheiro de sangue. 

Sem cerimônias abocanhou o soldado, suas presas facilmente dilacerando o corpo em várias partes de armadura retorcida com carne e sangue. 

E agora?

Ele era grande demais para descer por dentro da torre. Também não poderia simplesmente derrubar a torre inteira por fora e correr o risco de soterrar Katsuki, Ochako e tantos outros. Ele precisava fazer alguma coisa! Sem tempo para refletir, Kirishima voou para fora cheirando o ar, buscando onde Katsuki poderia estar. 

Não ligou para os gritos de pavor das pessoas na cidade, nem para os eventuais soldados posicionados nas janelas do castelo que tentavam atingi-lo inutilmente com flechas. Encontrou rapidamente uma janela grande em um dos níveis mais baixos do castelo, quebrada e cheirando claramente a Katsuki e muito sangue misturado.

Eijirou não conhecia a figura loira de pé no batente da janela, mas ele o olhava no fundo de seus olhos através de uma máscara estranha. Era um homem e seu cheiro fedia tanto a magia que o dragão torceu o nariz. Em instantes, o homem começou a falar e sua voz chegou a seus ouvidos mais claramente que qualquer outra voz humana. 

— Melhor você buscar ajuda de um humano ou vai acabar destruindo tudo!  

Ele não sabia quem ele era, mas ele tinha toda a razão. As palavras entraram em sua cabeça cheias de sentido e razão, como se não houvesse nenhuma outra verdade naquele momento que não aquela. Não havia dúvidas de que o melhor que o dragão poderia fazer agora era buscar ajuda de um humano. Sem pensar duas vezes, ele bateu as asas e voou para fora da cidade. 

Muitas horas depois quando tentava inutilmente pedir ajuda a algumas pessoas de uma vila distante e elas certamente sem entender que ele não as queria comer, Kirishima sentiu uma fincada leve de um aldeão acertando o interior de sua narina com uma lança. A pequena dor fez sua mente clarear e perceber o quão estúpido estava sendo. Teria voltado ao castelo imediatamente se a resistência não o tivesse localizado primeiro.    

— Já estamos longe o suficiente. - Bakugou disse, trazendo os pensamentos do dragão de volta para o presente. - Vamos parar ali naquela praia. 

Eijirou concordou já baixando o vôo e descendo numa curta faixa de areia que havia entre o penhasco, pedras e o mar. Ao pousar, o bárbaro logo desceu da sela para sentar-se no chão com o pequeno baú. Ele era fechado por um cadeado, e o humano mexia nele para tentar descobrir a melhor maneira de abri-lo. Eijirou grunhiu impaciente.

— Eu sei, Kirishima, eu sei que fiz merda roubando isso, mas eu precisava de uma carta na manga, e se isso aqui é tão forte, vai servir. 

Observou o bárbaro desistir do cadeado em poucos instantes, arremessando a caixa contra uma pedra, quebrando um dos lados. Sem dificuldade ele conseguiu tirar a varinha comprida da caixa, a admirando com certo interesse. 

O dragão resmungou pedindo para ele desembuchar logo. 

Katsuki suspirou fundo, antes de guardar a varinha e mostrar o antebraço esquerdo para o dragão. Além das óbvias linhas e cores das tatuagens que ele ostentava, uma mancha escura como um hematoma saía do pulso, se ramificando pela parte interna do antebraço e para a palma da mão. 

Eijirou não entendeu o que era aquilo, e cheirando também não conseguiu perceber nada muito diferente. Alguma coisa o fazia lembrar do sujeito loiro que sugeriu tão claramente que ele buscasse ajuda e se afastasse do castelo.

— É alguma merda mágica que aquele feiticeiro desgraçado colocou em mim. - Katsuki explicou finalmente. - Está se espalhando, todo dia um pouco. Ele disse que eu tenho até a próxima lua cheia para matar Dabi, se não… Bem, não sei exatamente o que vai acontecer, mas essa merda não pode ser boa. 

A raiva que sentia do bárbaro pelos atos imprudentes foi rapidamente sendo substituída por mais preocupações conforme Katsuki detalhava o resto da história.  Em poucas palavras, Katsuki temia morrer na próxima lua cheia se não matasse Dabi, ou se não encerrasse a maldição matando o próprio Hawks. 

A angústia daquele prognóstico tomou o dragão rapidamente. Eles podiam sim ter matado Dabi sem dificuldades. Kirishima sozinho poderia destruir a caverna inteira e soterrar todos lá dentro. Poderia varrê-los para fora e jogá-los no mar. Poderia ter simplesmente engolido, partido em pedaços, pisado, esmagado, dilacerado, e tantas outras formas de matar que o humano não teria a menor chance. Poderia até mesmo ficar só dando cobertura enquanto o próprio Katsuki acabaria com todos eles. 

— Fazer o que o Hawks quer só vai ajudar o merda do rei. Dabi é a melhor chance que essa gente tem. - Katsuki completou, frustrado. - Mesmo que meu plano não dê certo, não envolvi nem o Deku nem a lua cheia nisso, então a resistência não tem motivos pra não ajudar eles. Eles vão ficar bem. 

E por "não dar certo" Kirishima prontamente entendeu que o bárbaro falava da própria morte. Algo que ele não podia aceitar. Eijirou não conseguia lembrar de momentos de sua vida em que Katsuki não estivesse presente, e também não conseguia vislumbrar um futuro sem ele.

Eles eram como irmãos. Apesar da óbvia diferença de espécie, praticamente todas as memórias de Kirishima incluíam o bárbaro. Desde o primeiro instante em que tinha conseguido quebrar a casca do seu ovo, não maior que um bebê humano, até o presente momento, Katsuki sempre esteve ao seu lado. Ele era sua família.

O povo bárbaro, há incontáveis gerações, tinha uma tradição no mínimo perigosa. Ao descobrirem que esperavam a chegada de um bebê, um membro da família, normalmente o mais forte e mais apto, se voluntariava para agraciar a criança com o maior presente que um bárbaro poderia receber: um ovo de dragão. 

Adentrar num covil de dragões selvagens e roubar um ovo não era uma tarefa fácil. Dependendo da espécie, os covis ficavam em locais de acesso extremamente difícil, em cavernas montanhosas, em vulcões ativos, em geleiras, ou até mesmo embaixo d'água.

Todas as famílias bárbaras tentavam, mas nem todos conseguiam. Muitos voltavam de mãos vazias, muitos se feriam ou até morriam no processo. Só os mais bravos e fortes conseguiam tal façanha.    

Kirishima não saberia dizer como seria sua vida em um covil com outros de sua espécie, pois uma das primeiras lembranças que tinha já era de seu pai humano, Masaru Bakugou, o alimentando com carne fresca e coçando sua cabeça.

Talvez fosse um tanto cruel roubar um dragão de sua espécie, impedir que ele viva com seus similares, tirá-lo de sua natureza. Mas na realidade, esses conceitos de família e de pertencimento eram todos conceitos humanos, que Kirishima veio a aprender com sua família humana.

Dragões não eram assim. Por mais inteligentes que pudessem ser, ainda eram reptilianos de sangue frio. Um dragão nasce ao mundo de um ovo, sozinho, para enfrentar os perigos que muitas vezes sua própria espécie oferece. Um dragão não evitaria de comer outro se estivesse com fome. 

Kirishima já teve a chance de esbarrar, mais precisamente de fugir, de dragões selvagens que basicamente o matariam por território de caça, ou simplesmente por demonstração de força. Não era uma existência que Eijirou invejava.

O povo bárbaro era nômade, sempre preferindo estar em movimento, voando em dragões, acampando em densas florestas, ou até mesmo navegando. Independência e força eram as características mais valiosas para eles. 

Tão valiosas que, se você não fosse forte e independente, não era digno de pertencer à família e nem mesmo de ser considerado um bárbaro. Ele e Katsuki se separaram da família Bakugou logo após ambos terem completado 7 anos de idade, Kirishima não muito maior do que uma ovelha naquela época. Com a inteligência e a força dos dois combinadas, era esperado que conseguissem sobreviver sozinhos. 

Ele lembrava direitinho do dia em que sua mãe Mitsuki voltou de uma caçada com um javali enorme nas costas. Masaru o preparou e eles comeram todos juntos, como despedida. Naquele dia sua mãe colocou alguns mantimentos, equipamentos e eles dois na sela de Ryuko, sua dragão. Entre brigas e resmungos típicos da família, ela deu um abraço apertado em cada um de seus filhos, e mandou que Ryuko os levasse para longe.

Katsuki chorou os quase três dias de viagem inteiros e Eijirou teria chorado também, se tivesse essa capacidade. Ele chegou a implorar que Ryuko os levasse de volta, que não conseguiriam ficar sem seus pais, que iriam morrer. 

A dragão-fêmea apenas se limitou a dizer que a separação fazia parte do que eles precisavam aprender. Ela também tinha passado por isso e garantia que a experiência iria uni-los, juntos eles cresceriam mais fortes. 

Eijirou não entendia na época, mas já se considerava muito mais adulto e capaz que seu irmão humano birrento e choroso. Ele era pequeno, fraco, macio por todos os lados, como iria sobreviver com um corpo assim? Mamãe Mitsuki era grande e forte, Katsuki ia ter que nascer de novo para ser como ela um dia. Era Kirishima quem teria de cuidar dele, defendê-lo!  

Ficou com raiva, se sentiu usado. Era pra isso então que aqueles humanos adotavam dragões? Para que cuidassem de seus filhotes menos capazes quando enchem o saco de dar-lhes de comer? Se dependesse dele, Katsuki podia morrer de fome. 

Na primeira semana, abandonados sozinhos em uma floresta, eles aprenderam como eram indispensáveis um para o outro. O humano sozinho era fraco, mas sabia fazer fogo, construir armadilhas, abrigos e ferramentas. Eijirou tinha força e habilidade para caçar e subir em árvores, mas não tinha a destreza das mãos humanas, nem sua criatividade.

Como um dragão ainda muito pequeno, Kirishima era um alvo fácil para humanos adultos. Preferiam matá-lo enquanto criança para que não se tornasse uma ameaça quando crescesse. Katsuki tinha o papel crucial de evitar contatos desnecessários com humanos e, por sua vez, Kirishima protegia o irmão de outras bestas selvagens.   

Em pouco tempo as palavras de Ryuko começaram a fazer muito sentido. Nenhum dos dois sobreviveria sem a ajuda do outro. E como a dragão-fêmea previu, eles cresceram juntos muito mais fortes do que teriam se estivessem separados.  

Katsuki logo se tornou mais inteligente e mais habilidoso em tudo que era relacionado à sobrevivência deles. Desde prever o clima, se localizar, caçar com arco ou lança, até mesmo roubar caravanas ou enganar outras pessoas. 

Em alguns anos, tudo que Kirishima precisava fazer era rugir alto. Em outros momentos, o melhor mesmo era ele se esconder e esperar Katsuki resolver o que quer que fosse. Nada muito másculo da parte dele. 

Kirishima não sabia dizer pra onde era o norte ou o sul, não sabia fazer uma fogueira, outros humanos não o entendiam, e quanto maior ficava, mais desastrado se tornava. Caçar um animal pequeno ou pescar num riacho já exigia um nível de coordenação fina que ele não conseguia com suas patas e garras enormes. Perseguir um cervo ou um javali em meio à floresta densa, por exemplo, já era impossível. 

Foi num dia em que o bárbaro montava nele como se fosse um cavalo crescido, e suas grandes asas mais atrapalhavam a passagem por entre as árvores do que qualquer coisa, que Kirishima começou a perceber o quanto o humano tinha ficado forte mas ele próprio não passava de um filhote grande e desengonçado. Seu corpo exagerado já estava dificultando que até mesmo fosse uma boa montaria. E mesmo com aquelas asas enormes, nem era capaz de voar. Só dava trabalho. 

— Se você quer mesmo voar, precisa treinar. - Bakugou disse simplesmente. 

E ele treinou. Quando tinha oportunidade, abria as asas o máximo que conseguia e as batia com força. Ele realmente fazia muito vento e a sensação era ótima, mas não saía do chão. 

— Só tem escama nessa sua cabeça? Porque você não corre pra pegar impulso? 

E ele correu. Numa campina aberta ele perdeu as contas de quantas vezes embolotou no capim depois de pegar velocidade e tentar voar. Batia as asas fortes com ânimo, mas não saía do chão por nada. 

Talvez ele fosse burro demais. Ou pequeno demais. Ou fraco demais. Seria dependente de Katsuki pelo resto de sua vida, não seria mais nem dragão nem bárbaro. Seria só um estorvo grande e escamoso com asas que atrapalham mais do que ajudam. 

Eijirou lembrava perfeitamente do dia em que Katsuki se irritou com suas reclamações nada másculas sobre ser um dragão inútil, e o levou até a beirada de um penhasco de frente para o mar. Eles deviam ter uns treze anos nessa época. Bakugou escalou as costas do dragão com habilidade, ficando bem sentado em seus ombros. 

— Voa agora, caralho! Vai! - disse o bárbaro enquanto batia os pés nele, como faria um cavaleiro. 

Kirishima grunhiu e tentou derrubá-lo de seu lombo. Ele tinha escamas duríssimas, poderia descer rolando aquele penhasco e chegar no mar sem nem se arranhar. Escalaria de volta com suas garras e poderia pular de novo, cair de novo e falhar de novo como sempre. Katsuki, por outro lado, se caísse de uma altura como aquela morreria certamente. 

— Eu sei disso. - Bakugou disse firme - E eu confio minha vida a você, por isso eu sei que vai voar. 

Hoje, lembrando daquele dia, Kirishima percebeu como aquela lógica era falha. Não foi pelo medo de deixar Katsuki morrer que ele conseguiu voar, e sim porque quando eles estavam juntos, eles eram mais fortes. 

— Nós vamos matar aquele cretino do Hawks, Dabi vai derrubar aquele rei de merda, e a lua cheia vai poder voltar pra casa. - Bakugou disse com convicção. 

O dragão rugiu alto sua aprovação. A verdade é que Kirishima não teve qualquer resistência contra a manipulação mental de Hawks, Bakugou tampouco foi capaz de lutar contra a maldição sozinho. Separados eles são fracos, mas juntos são invencíveis.


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