Luar Puro escrita por Zena Faith


Capítulo 19
Despertada


Notas iniciais do capítulo

Bem, eu não vou me estender muito, só queria mesmo dizer que está é uma nova fase para Ayira, uma que vai ser um pouco cansativa, principalmente nesse capitulo. No entanto, coisas incríveis estão por vir, e espero que vocês tenham paciência comigo e com minha escrita atual (eu tive que ter muita paciência, comigo, foi bem difícil).
Aproveitem, espero ver vocês no próximo cap.
Beijos L.



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Eu sei que é apenas um sonho.

A sensação de estar vagando na minha própria mente é como o escorrer de água sobre o consciente.

Deveria ser apenas mais um sonho, esfumaçado nas beiradas, vivo no meio, morto ao redor... e mesmo assim, não posso afastar essa sensação sólida de estar no mundo real, a consciência de que há mais, estou presa num limbo, entre o sonho e a realidade, numa linha tênue entre o sono e a consciência.

Meu cérebro armou uma armadilha para mim. Uma armadilha pintada de branco, tão infinita quanto um poço sem fundo, quando caminho em frente só sinto luz, pura e branca iluminando toda a extensão da minha alma, um caminho sem fim iluminado pela mais brilhante luz.

Um salão, um salão infinito de luz.

No começo eu só posso sentir a luz, por isso caminho como se o tempo não existisse, cada passo é lento e mergulhado em dormência, eu sou como uma mosca sonâmbula seguindo o fio de uma teia de prata.

No entanto, eu ainda sou eu, ainda sou Ayira. E por isso eu sei, que todos os meus sonhos são mentiras bonitas contadas pela escuridão de um pesadelo. E como qualquer mentira, o pesadelo não demora a se revelar. O frio desliza como uma cobra em cada passo, penetrando minha carne como um parasita, cada passo se tornando mais frio, até que o gelo está queimando minha pele.

Meus olhos sonâmbulos descem até o chão e veem um rastro de padrões de galhos desenhados, como veias que bombeiam sangue para o coração, eu vejo a água se petrificar, se estendendo até o infinito do salão, uma perfeita pista de gelo.

Eu paro, a sensação do calafrio petrificando meu corpo, cada terminação nervosa zumbindo na tentativa de fazer meu cérebro acordar meu corpo.

Eu não acordo, processo cada sensação fantasma, a confusão se instalando através de pensamentos sufocados.

Eu sei que estou dormindo, mas isso não afasta a precisão com a qual meu corpo está tentando me avisar que eu estou presa no meio.

Sagaz como qualquer predador, o pesadelo se estreita e dobra, o ambiente falhando em sua farsa, a luz pisca para mostrar pontas de escuridão tentando se esconder na vastidão. E quando tudo volta à luz novamente eu sei que devo correr, estou prestes a ser emboscada pela aranha.

Eu abro minha boca para gritar, mas nada sai, e então o gelo começa a rachar, em fios que deslizam elegantemente ao meu redor, formando um círculo, um caminho de linhas que seguem até uma mancha se formando logo a frente no caminho infinito. Eu assisto hipnotizada quando a mancha se expande, é tão escuro que aparenta um buraco, algo escuro e pegajoso começa a preencher os fios da teia que vem até mim.

Cada linha sendo preenchida por sangue, escuro e grosso.

Eu não tenho voz, mas ainda tenho controle sobre meu corpo, e por isso, tão petulante quanto uma mosca, eu caminho em direção a mancha, meus pés estão úmidos, a barra no meu vestido se arrasta, cada vez mais pesada, o som molhado do tecido se arrastando, encharcado de sangue.

Cada passo imita uma batida do meu coração.

E lá está, uma poça de sangue, bolhas se formando sobre a superfície, um tremor vibrando no vermelho, meus pés queimam no gelo, as batidas do meu coração ressoando no meu corpo, ressoando na poça de sangue. Eu encaro por tanto tempo que me sinto afogar, as batidas do meu coração zumbido nos meus ouvidos, um vórtice de escuridão avassaladora me sugando para o nada.

O sangue é meu, é o meu batimento cardíaco que vibra na poça, mas eu não sei de onde vem... o sangue.

Então há aquele momento, quando você finalmente desperta de um pesadelo, seus membros paralisados, o chiado do pavor se derramando por sua pele, um arrepio infinito que sufoca a respiração.

Mas eu não estou acordada... eu ainda estou sonhando.

Meu cérebro armou uma armadilha para mim...

Então como num susto, a aranha surge, sua forma emergindo lentamente, deslizando do fundo para cima, o sangue pintando sua forma de vermelho vivo, cada membro se revelando, cada forma e aresta se exibindo orgulhosamente, até ela estar de pé na minha frente.

Não é apenas uma aranha, é mais além, vasto, indefinido, uma incógnita.

Eu olho e olho sem parar, tentando reconhecer, mas não consigo sequer me lembrar de mim.

Não posso falar, não posso gritar, minha voz desapareceu.

Os olhos se abrem de repente, completamente vermelhos, e então a coisa fala.

Te peguei!

Acordo gritando.

Minha garganta se rasgando num grito de socorro, o grito de alguém que foi atacado, posso sentir a sensação do roubo ardendo na minha pele, respirando descompassada eu olho ao redor.

Há uma pessoa sentada na ponta da cama.

Antes que minha mente conturbada faça suposições meus instintos agem, só sentir seu cheiro faz todo o medo ir embora, dou uma longa e trêmula respiração e o observo no silêncio da madrugada.

Meu pai adotivo me observa de volta, seu olhar cheio de um sentimento de suporte e zelo.

— Seu alarme está prestes a tocar.

E estava mesmo, qualquer criatura da noite saberia que a alvorada estava perto, lá fora as sombras se retraem sem pressa, deslizando deliberadamente.

— Sim...

Ele se demora em meu rosto, posso ver através de sua atitude blasé, essa análise intencionalmente não perceptível.

Quando ele verifica mais uma vez se estou bem eu suspiro, sua preocupação está velada no arquear sardônico de sua sobrancelha dourada.

Me arrasto até encostar contra a cabeceira da cama para me sentar e descubro através de uma sensação macia de algodão que rasguei meu edredom em pedacinhos, suspiro mais uma vez, frustração exalando pelos meus poros enquanto aliso os tufos espalhados pela cama.

— Não se preocupe com isso, nossa família tem um bom histórico de destruição.

Ele tem um puxão secreto no canto dos lábios, seu olhar se desviando do meu, meu rubor repentino me diz que eu não preciso saber sobre o que ele está falando, minha vergonha própria me faz deixar o assunto de lado.

— Isso não tira minha responsabilidade...

Meu corpo se retrai involuntariamente quando me lembro da mancha negra, esfrego meu rosto com força e suspiro, sinto minha pele sensível, como se meu pesadelo tivesse se sucedido em causar danos.

É tão ridículo, foi apenas um sonho lúcido... um estúpido pesadelo lúcido.

— Quer conversar sobre isso?

Ele dá uma batidinha na metade intacta do edredom e lhe dou um olhar grave, ele me devolve este com a mesma seriedade, franzo o cenho, cansaço mental desliza por minha mente, balanço a cabeça em negativa e olho para longe.

Não é que eu não goste de conversar com ele, é só que o momento não parece oportuno, todas as conversas com Jasper são cheias de ação e dor, eu não precisava apanhar de mais uma pessoa hoje, e se pudesse escolher, escolheria apanhar fisicamente ao invés de mentalmente.

— Sam vai conversar comigo.

Vejo de esguelha quando o puxão no canto dos seus lábios retorna, isso me faz sorrir inconscientemente, simples assim a sensação de mal estar deixada pelo pesadelo se dissipa, mordo meu sorriso de volta e afasto a destruição de branco, me levanto da cama e começo a recolher os retalhos e fiapos espalhados ao redor da cama.

Eu devia estar lutando para sair do mundo dos sonhos por algum tempo dada a complexidade da bagunça, naturalmente, nada que não fosse habitual a minha psique fragmentada, até parece que isso já não tinha acontecido um milhão de vezes.

Jasper aparece em pé ao lado da cama, ele segura um saco de lixo preto em mãos.

Pela terceira vez desde que acordei eu suspiro, agora é apenas de decepção.

Depois de me ajudar a recolher a sujeira ele sai do quarto em silêncio, me deixando na minha própria presença para me trocar, eu ignoro a sensação que sua ausência provoca no meu peito e decido castigar meu corpo ainda sensível com um banho rápido e quente, quando me seco visto roupas pretas e simples: Leggings, camisa, tênis e moletom com capuz.

Faço um rabo de cavalo frouxo enquanto desço as escadas, meus pensamentos se tornando rápidos e ansiosos, assim que entro na cozinha encontro Esme colocando o café da manhã sobre a mesa, quando sento me inclino em sua direção e ela sorri enquanto beija o topo da minha cabeça, dizemos bom dia uma para a outra e começo a comer imediatamente. Estou saboreando os ovos quando uma pequena brisa com cheiro de rosas arrebata o elástico do meu cabelo, o movimento em si faz uma bagunça de fios negros e úmidos cair sobre meus ombros, de boca cheia sorrio quando sinto as mãos hábeis de Rosalie amarrem meu cabelo no topo da cabeça para fazer uma trança perfeita num estilo que lembra a escama de um peixe, ela não diz uma palavra, apenas começa a trabalhar.

Dentro do meu moletom o celular finalmente toca a melodia estridente do meu alarme, estou uns bons trinta minutos adiantados, faço um cálculo de quanto tempo vou gastar na corrida e termino meu café da manhã de forma preguiçosa.

 Olho para cima buscando por ele.

Jasper está a minha espera, ele se vira e vai em direção a saída, antes que eu possa levar a louça para a pia Esme me intercepta, meu protesto morre assim que ela oferece seu rosto, como uma criança obediente eu beijo sua bochecha, sussurro um envergonhado obrigada antes de sair. Encontro Jasper parado na porta da frente, ele se vira assim que me vê e desce as escadas, parando no último degrau para me olhar, o sigo de forma obediente e paro ao seu lado.

A intenção do meu corpo era de seguir em frente, mas me detenho um minuto a mais, a indecisão comichando na minha pele, sinto meu peito gritar que preciso de algo dele.

Me sinto derrotada ao entender o que é, o suspiro de desistência soa mais longo.

— No pesadelo eu estava presa dentro da minha cabeça... era como se – engulo em seco e faço uma careta – não sei, como se eu estivesse quebrando algo... e então havia esse buraco, e... – fecho meus olhos com força para suprimir a imagem que surge – uma coisa... uma coisa com minha aparência me atacou. Não entendo.

Ele vira seu rosto e me encara mais do que o usual, no meu alívio de colocar tudo para fora percebo que ele está manipulando minhas emoções, amplificando meu alívio.

Franzo o nariz numa expressão de irritação e vou embora.

— Não se atrase.

Com passos largos eu me afasto do riso velado de Jasper, construindo um trote cada vez mais rápido eu deixo a floresta me engolir, a sensação de liberdade inundando os músculos das minhas pernas, me puxando para a beira do limite. Corro tão rápido que o vento é apenas um sussurro caótico ao pé do meu ouvido.

O esforço dos meus músculos constrói uma sensação de frenesi, a realização de finalmente correr sem fugir alimenta o meu interior, riscando numa parede escura uma fagulha de esperança que se alastra como fogo por toda a minha alma.

É diferente de quando me transformo em lobo, o lobo surge em meio a dor e névoa, rasgando através de carne e osso, turbulento e maravilhoso... com a parte vampírica não, é como romper uma barragem invisível, apenas se despejando, a sensação de água deslizando por cada membro, sendo banhada pelo frio, coberta pelo gelo.

É fácil, maleável, como piscar os olhos, agora que posso dominar ambas as partes não tenho medo do que posso me tornar, não mais.

Antes eu sequer podia reconhecer a sensação de estar oscilando de uma transformação para a outra, tudo que eu sentia era uma sensação de turbulência, afundando, me afogando de um poço para o outro, meus poderes protestando na carne e no osso. Afasto a lembrança constante da dor e me concentro no que pude aprimorar graças às lições de Jasper e Sam, minha habilidade incomum sendo domada por criaturas tão distintas e ao mesmo tempo tão compatíveis.

Se não fosse pelos dois, eu ainda estaria em sofrimento.

Agora, eu podia transitar de uma natureza para a outra, apenas com o estímulo de meus pensamentos e instintos... é libertador.

No meio do caminho eu solto um suspiro, minhas pernas seguindo meus comandos automaticamente ao se flexionarem para pegar impulso de uma árvore para a outra, brincando eu faço um jogo de ziguezague, minhas mãos se apertando sobre o tronco de cada árvore, deixando a marca de meus dedos impressos na madeira viva, um rastro de sonhos e esperanças.

As sombras da madrugada se tornam cinzas, me provocando num devaneio de cores desprovidas de vida, a sensação de dejavu é tão intensa que simplesmente me afundo na lembrança...

Casa... sim, eu encontrei meu lar aqui, mas não era nessa terra, nesse país, nessas pedras e nessas árvores... não... meu lar é na coragem de Bella... na resiliência de Edward... é na elegância de Rosalie... e no sarcasmo de Emmett... meu lar também é na gentileza de Esme, e na bondade de Carlisle... meu lar é no amor de Alice, e na vulnerabilidade de Jasper... meu lar é na lealdade de Sam, e no carinho de Emily...

Meu lar é na honestidade de Erin, na esperança de Silver e na felicidade de Julian...

Meu lar é Seth... a outra metade da minha alma.

Meu coração se derrama quente num sentimento profundo demais para caber dentro do peito, surpreendida com a força dos meus sentimentos eu arfo, me agarrando a uma árvore eu procuro por um galho qualquer, caminho até o tronco e apoio minha bochecha contra a superfície sólida, meus olhos se fecham em rendição, prendo minha respiração e tento sentir a consistência do meu corpo novamente.

A sensação avassaladora deixa meus membros fracos e a dormência do cansaço me prende num momento de descontrole.

Quieta eu sussurro para mim mesma.

— Isso é seu... você merece... é seu presente para receber... essa é sua vida.

Roubando do ar com respirações longas e profundas, deixo a sensação se derramar por meu corpo pouco a pouco, restabelecendo meu controle, fico assim por tempo o suficiente para voltar a raciocinar e perceber que estou me atrasando. Atraso não é algo que Sam se compadeça, ainda mais quando ele conhece os seus próprios limites.

Eu ainda tinha problema em caminhar pela estrada da memória, mas isso, essa onda de sentimentos, isso é diferente... é aceitar.

Estive me prendendo por tanto tempo aos sentimentos negativos que tinha um manejo vergonhoso sobre as coisas boas que sentia, cada lindo sentimento sendo recebido com surpresa e desconfiança, tornando o meu íntimo uma bagunça de garrafa cheia chacoalhante.

Eu precisava mesmo de uma surra mental de Jasper.

Restabelecida eu pulo da árvore até o solo sem me importar com o estardalhaço, começo a correr novamente, a poucos quilômetros sinto a agitação de Sam quando ele percebe que me aproximo, me sentindo mais animada que o usual em encontrá-lo eu pulo em direção a uma árvore e faço uma grande entrada ao saltar e aterrissar logo ao seu lado.

Ele não se abala é claro, apenas me olha de esguelha e levanta uma sobrancelha arrogante, meu sorriso se desfaz em meio a uma respiração esbaforida, ignoro a sua tentativa de reprimir minha animação e afundo a vergonha.

Eu sei que estava me exibindo, mas isso não me tira o direito de sentir orgulho por controlar o meu próprio corpo.

— Você não vai me fazer sentir mal por isso.

Ele bufa e eu abro um sorriso completo, orgulho borbulhando no meu estômago, não consigo controlar, estou orgulhosa, eu posso controlar o meu corpo, é motivo suficiente para me fazer sentir bem.

Sam não faz uma de suas piadas mal humoradas a respeito da minha pontualidade impecável, o que é estranho, todo este silêncio e grandes expressões de indiferença não são nada comparados ao que estou acostumada. Isso me faz pensar na noite passada, a possibilidade de ele ainda estar encabulado comigo pela situação “rosnado que não foi rosnado” passa na velocidade da luz por meus pensamentos.

Sam não é rancoroso, ele é bom demais em expressar seus sentimentos para fazer joguinhos.

— Você tem enormes pandas hoje.

Dou um olhar estranho para ele e recebo um arquear desdenhoso de volta, deixo minha confusão explícita nas minhas sobrancelhas arqueadas e ele aponta de maneira cômica ao redor dos próprios olhos como se desenhasse óculos ao redor deles.

Encolho meus ombros para dentro e ele continua me encarando como se não tivesse dito nada.

— Tive uma noite ruim.

Humpf.

Ignoro seu fingimento armado e ando em direção ao centro da clareira, quando viro para ele faço questão de mostrar quão espinhosa me sinto ao ficar em posição de ataque, ele não pestaneja, não sei por que ainda fico surpresa quando Sam faz algo desse tipo, talvez meu íntimo tenha um fetiche masoquista por me deixar falhar.

Quando ele vem com tudo na minha direção eu só reajo no último segundo, e isso me rende uma bela surra, não choramingo ou grito, nenhuma vez... apenas deixo que ele faça seu ponto, e toda vez que me levanto vejo seu olhar ficar mais impaciente.

Ele odeia quando eu meço esforços.

Depois de várias surras e expressões de descontentamento eu finalmente aceito parar com a humilhação, alerta começo a bloquear cada ataque, usando seus movimentos contra ele mesmo, mas nunca vencendo, o suor começa a escorrer por meu corpo e pelo dele como rios, estamos lutando de forma contínua e sem descanso quando decido usar um golpe surpresa para derrubá-lo. Parece baixo fingir estar perdendo apenas para o surpreender com uma rasteira, mas não consigo me impedir de sorrir de volta quando ele se levanta com um sorriso selvagem e contente.

Sinto o ar frio e úmido tocar meus dentes expostos e paro de sorrir, estou tão desacostumada com essa ação comum que sofro com uma vergonha ocasional por não saber como sorrio. Venho lutando para sorrir no espelho, mas não é o mesmo, eu não podia arrancar esse pedaço de felicidade apenas para me criticar, só acontecia ao redor dos meus entes queridos, sendo assim, eu sempre me fecharia com medo de parecer um animal ensandecido mostrando os dentes.

Sam parece sentir que meu humor cai por terra, por isso ele volta a sua posição e inicia uma série de exercícios básicos para acalmar meu corpo agitado, a mudança é bem vinda, caio no ritmo do método rapidamente, construindo uma sequência agradável tanto para meu corpo quanto mente.

Estamos tão imersos na prática da defesa vs ataque que sinto a mudança  imediatamente.

Minha irritação infantil sobre Sam me insultar simplesmente somem, a aproximação de Seth é como um anestésico, eu deixo meu corpo no piloto automático e minha mente é banhada por paz, e talvez por me deixar envolver tão facilmente, eu seja culpada pelo que vem a seguir. Distraída pela sua chegada eu deixo meu esterno desprotegido e Sam me surpreende, sendo tão baixo quanto eu fui antes ele me faz perder o equilíbrio, uma onda de irritação me atinge, mas dessa vez é dirigida a mim mesma.

Me sentindo contrariada com a distração eu me recupero e desvio por pouco do golpe, deslizando pela terra até brecar.

Meus olhos se erguem apenas para encontrar Seth em posição de ataque, parado a minha frente, totalmente transformado, seu rosnado reverberando por todo meu corpo, olho alerta em direção a Sam que assiste a forma que o irmão lobo luta para me proteger dele.

Desconcertada eu espero que ele diga para que Seth se controle, mas tudo que ele faz é jogar a cabeça para trás e gargalhar com prazer. Eu encaro sua reação descontrolada com um misto de desconfiança e descrença, ver meu mentor se decompor dessa forma não é algo que me traga diversão, não quando eu sei que acompanhado do seu júbilo sempre vem algo pior. Sem saber o que fazer eu continuo parada observando a cena com estranheza, o lobo de Seth relaxa e retrocede até estar ao meu lado, ele se senta e observa todo o show como um espectador que se deleita.

A piada da qual Sam está rindo parece ser a mais hilária do mundo, e demora a se dissipar, quando ele finalmente consegue se controlar precisamos assistir encabulados como ele nos olha e sempre solta uma risada esporádica, apenas para respirar fundo e se recompor novamente.

Ele limpa a umidade acumulada nos cantos dos olhos e solta uma risadinha estranha que termina num choramingo, como se estivesse sendo torturado por sua própria reação descontrolada.

— Você está se sentindo bem?

Ele sacode a cabeça e os ombros como se livrando da sensação.

— O diabo que sim!

Mesmo depois de recuperar sua compostura ainda é possível escutar o riso em sua voz estrondosa, ele olha entre nós dois e esfrega as mãos uma na outra.

— Muito bem.

Inclino a cabeça para trás e o verifico por um minuto inteiro antes de perguntar.

— O que acabou de acontecer?

Ela dá um sorriso exibido que faz meu cérebro simplesmente congelar.

Eu não faço ideia do que está acontecendo com ele... talvez Sam tenha quebrado, como um brinquedo com defeito. É a única justificativa.

— Eu diria que um breve e muito bem sucedido experimento científico.

Meu corpo se contrai num solavanco, é como ser sugada na velocidade da luz para um buraco negro e então ser cuspida de volta, minha mente ainda machucada estende barreiras de granito para impedir a sensação do passado.

Como se sentisse o que acabou de acontecer comigo, o lobo de Seth ganindo em preocupação.

Seus grandes olhos dourados me observam com cuidadosa atenção. Desvio do seu olhar e limpo minha garganta antes de falar novamente.

— Importa-se em elaborar.

— Eu não tinha certeza ontem à noite, precisei pensar em uma forma de  confirmar as minhas suspeitas.

Seus olhos brilham, ele parece um pouco maravilhado olhando de Seth para mim.

Sigo seu olhar para o lobo gigante ao meu lado e só encontro a confusão de Seth encarando a minha própria.

Minhas mãos ainda tremem por causa do que aconteceu agora a pouco, ainda é difícil me controlar quando existem tantos gatilhos, o passado está sempre tentando escorregar de volta para a minha vida.

SAIA DA MINHA CABEÇA!

Não lembre... não lembre... não lembre... respire.

Seth rosna quando minha frustração se derrama em uma onda de pânico momentânea. Sam interpreta de maneira errada a nossa reação e apenas segue falando, me agarro a essa brecha com força o suficiente para me prender ao momento, ignoro o olhar de Seth o tempo todo.

— Vocês dois realmente se merecem, tão ingênuos.

Aperto minhas mãos em punho até sentir as unhas beliscando a palma, a dor desliza pelo meu corpo e faz meus nervos relaxarem o suficiente para que eu torça o nariz e dê um olhar em branco para Sam.

— Você se lembra de rosnar ontem não é?!

É estressante sair de uma situação tensa para outra, eu mal tinha conseguido me livrar de um ataque de pânico ao tentar bloquear minhas lembranças dos experimentos dos Volturi, como poderia me defender das alegações de Sam?!

— Eu não rosnei!

Minha voz soa aguda com a mentira. Coro profundamente e evito olhar na direção de Seth, isso não impede que ele manifeste seus sentimentos num muxoxo que parece mais canino do que lupino.

— Ah, você rosnou sim, foi bem divertido na verdade, me pegou de surpresa, deve ser por isso que eu suprimi tão bem a minha reação até agora a pouco.

Meus ombros se encolhem em desconforto, não há maneira de fugir disso, é melhor acabar logo com isso.

— Bem, qual é seu ponto?

— Meu ponto lobinha... é que o imprinting de vocês está começando a se assentar.

A revelação me atingiu inesperadamente, fico de boca aberta ao assimilar o que ele está dizendo, deixo para trás qualquer constrangimento que senti desde o meu pequeno delito, o rosnado, que dirigi a ele na noite anterior.

Sam tinha razão, como eu podia ter sido tão cega?!

Aquela reação instintiva e desenfreada não era apenas uma reação isolada.

Me lembrando agora do momento em que Seth foi socado por Sam eu analiso as sensações estranhas que me levaram a agir no calor do momento. Sendo honesta, eu vinha tendo certa dificuldade em ver qualquer pessoa tocar Seth, como uma pessimista de natureza eu sempre espero pelo pior, não é atoa que eu reagi tão drasticamente, neste exato momento, eu me sentia mais nervosa do que nunca com a proximidade dos dois.

— Não é uma coisa ruim Ayira, você não me ofendeu, na verdade, é um alívio saber que você não é perfeitamente polida como os Cullen.

Ele pode até tentar aliviar a minha culpa com seu humor negro, mas isso não me fazer menos angustiada, minhas sobrancelhas se franziram.

— Me desculpe, não sei o que deu em mim. Não pensei, só agi.

— Bem vinda ao clube dos lobos!

Ele estende os braços e sorri loucamente.

Não sei como perder o controle pode ser uma coisa boa, eu ainda estava tentando absorver toda a violência que aconteceu no meu primeiro encontro com a tribo, Paul tinha deixado uma impressão tão forte que eu ainda olhava por cima do ombro à espera de um ataque surpresa.

— Então, o que isso significa para... Seth e para mim?

Dou um rápido olhar de esguelha em sua direção e ele pega isso rapidamente, mas muda sua atenção para Sam assim que percebe meu rubor envergonhado.

— Que um se sente protetor em relação ao outro, é muito bom na verdade, tanto para a aproximação de vocês, quanto como vantagem no treinamento – ele mexe suas sobrancelhas sugestivamente e eu fico parada tentando absorver o “Sam brincalhão” – oba para os dois!

Ele fica esperando uma reação, mas eu só fico parada encarando ele, Seth ao contrário finalmente relaxa sua postura, mas se mantém a minha frente como um escudo, seus olhos espertos totalmente concentrados em Sam.

— Como eu faço... para desligar isso?

Seu rosto se torna um milhão de nuances de confusão, é tão cômico que não consigo conter uma contração no canto da minha boca.

— O quê?

— Eu me distraí, deixei de prestar atenção na luta e você conseguiu me atingir... como eu faço para evitar esse... esse...

— Use palavras?

— Estou tentando – mais uma vez sinto ele zombar de mim – tento não deixar isso me dominar, mas toda vez que o sinto perto meu corpo e mente parecem ficar enfeitiçados...

Paro com meu protesto frenético e olho para Seth, há certa confusão em seus olhos, meu coração bate acelerado quando percebo as palavras que usei, meu rosto esquenta violentamente num rubor descontrolado. Eu não posso explicar se não dessa maneira... não posso controlar minha reação a ele, mesmo que eu queira muito que não seja todo esse alarde todas as vezes.

É que... é tão bom... é um alívio, e também é puro caos.

Quando estou longe dele tudo que eu sinto é que falta uma parte de mim. E quando ele chega, quando ele finalmente está assim, tão perto, eu volto a ser inteira novamente, uma onda de alívio lava todos os sentimentos ruins que tenho usado para me preencher, mas assim que isso passa todos os outros sentimentos se manifestam também.

Ele ainda é um estranho, um estranho que provoca sentimentos que nunca senti e que não consigo controlar.

A verdade é que eu estou morrendo de medo, do que ele causa em mim.

— Isso é temporário Ayira, assim que a ligação de vocês se assentar você vai conseguir controlar melhor, mas nós podemos continuar treinando, você precisa usar isso ao seu favor.

— Mas Sam, é perigoso, como eu posso me proteger e proteger ele dessa forma?

Meu tom de voz está carregado com temor, ninguém quer falar sobre, eu não quero pensar sobre, mas a ameaça está lá, espreitando, e ninguém poderia prever quando isto nos atingiria, eu precisava estar pronta para protegê-los.

Sam vê isso, seus olhos já escuros ficando mais ainda com o sentimento que eu compartilho.

— Você não precisa se preocupar agora, não com isso, tente focar no treinamento.

Esta é sua palavra final, o assunto está encerrado, é claro como água.

Respiro fundo e empurro o mais fundo possível o meu temor, bem como minha insegurança sobre as minhas vulnerabilidades na luta.

Depois de expressar meus sentimentos contraditórios, finalmente consigo dar atenção ao que quero: Seth.

É como se ele pudesse me sentir, assim que meus olhos se concentram nele todo seu corpo se vira na minha direção, como se puxado por meu próprio querer ele se aproxima lentamente até estar há apenas uma fina linha de ar de distância, sua cabeça se ergue e ele funga uma vez, minha pele se arrepia ao perceber que ele está me cheirando, faço o mesmo imediatamente e quase fecho os olhos com as sensações que seu cheiro traz.

Eu olho para ele, olho de verdade, e vejo através do lobo o homem e seu sorriso jovial me encarando de volta.

Eu poderia sorrir, mas não o faço, meu coração se enche de conforto  ao olhar para ele, meu suspiro é de alívio quando ele me olha de forma carinhosa, por um momento sinto que meu coração pode explodir, sinto essa dor, uma dor boa, como uma agonia prazerosa, é quase como se ele pudesse absorver meus sentimentos, respondendo com um barulho saído do seu peito, mais parecido com um zumbido.

Impulsionada por esses sentimentos eu ergo minha mão sem pensar e antes que possa me parar já estou tocando ele, minha mão se afunda no pelo do rosto do lobo e ele fecha os olhos em contentamento, a maciez do pêlo claro fazendo cócegas nos meus dedos... é tão bom que me faz esquecer da presença de Sam...

Somos só nós dois... Seth e eu, presos numa bolha.

Sam não seria Sam se ele não tentasse arruinar isso como uma grande e afiada farpa.

Ele faz um exagerado ruído com a garganta e bate no flanco de Seth, nós dois pulamos assustados.

— Tudo bem por ai moleque?

Seth responde com um rosnado mal humorado que faz Sam sorrir perversamente, ele parece muito satisfeito consigo mesmo por nos fazer sentir constrangidos.

— Bom, já que a senhorita não está mais se sentindo tão ranzinza e começou a reagir como se é esperado de uma pessoa alvo do imprinting, que tal brincarmos um pouco?

Antes que eu possa rebater seu comentário cheio de zombaria ele simplesmente corre e se embrenha na floresta, faço uma careta ao me dar conta que ele vai se transformar, olho para Seth e ele inclina a cabeça para o lado escutando.

É bom estar com ele, ao menos na forma de lobo, não me sinto nervosa ou fora de controle, só sinto ele. Então quando ele se aproxima e enfia o focinho na minha mão eu não reajo de forma descontrolada, apenas o afago enquanto ele fuça na minha mão provocando cócegas.

Meus lábios tremem com um pequeno sorriso, é suave e tímido, apenas para ele.

Essa provavelmente é a primeira vez que eu realmente sorrio para ele, e isso justifica sua próxima reação.

Isso deixa Seth fora de si, ele é como um cachorro grande e desengonçado, e sai pulando pela clareira, fazendo piruetas e saltos para trás.

Esse foi nosso primeiro erro: distração.

Sam vem com tudo, tão rápido quanto um raio, mas eu sinto, sinto a batida de seu coração cheio de adrenalina tremular no ar, isso reverbera por meu corpo e acorda meu instinto violentamente, minha mente grita.

Cuidado!

Eu observo em câmera lenta quando Sam explode do nada em direção a Seth, meu coração parece parar quando vê ele se desviar usando o ataque de Sam contra ele mesmo, os dois se enrolam numa bola, lutando e mordendo, até Sam conseguir subjugar ele, pois Seth parece paralisar com algo e acaba se atrapalhando na sua defesa, deitado com a mandíbula de Sam ao redor de seu pescoço ele mexe sua cabeça o suficiente para um dos olhos me encontrar.

Ele parece chocado.

Os dois se afastam um do outro rapidamente e Seth trota até onde estou, seus olhos estão cheios de interrogação, a movimentação de Sam me faz desviar os olhos, vejo sua forma negra nos rondar com um olhar concentrado, o que significa que Seth está compartilhando o que acabou de acontecer com Sam através da ligação da alcateia.

Ansiosa, eu gaguejo minha consternação.

— Eu fiz algo... mas não parece ser possível... como?

Na forma de lobo é impossível para Sam dizer algo, a comunicação não é uma alternativa, olho para Seth novamente e fico esperando sentir ele na minha cabeça, mas não há nada, estou tão ávida por confirmar o que acabou de acontecer que não percebo que Sam se foi novamente, assim que me dou conta sei o que ele vai fazer, de novo.

Apesar da dúvida sobre isso ter me assustado antes, agora, tendo que lidar com o pequeno teste de Sam, eu não conseguia nem me concentrar em sentir qualquer sentimento negativo. Mais tarde eu provavelmente teria tempo para ficar chateada ou simplesmente ter um ataque, eu ainda estava tentando superar o que tinha acontecido com a alcateia, ter que lidar com essa ligação mental agora não ia me ajudar... a última coisa que eu queria era que Seth conseguisse ouvir meus pensamentos.

Olho de supetão para ele e procuro em seus olhos por qualquer sinal que indique que ele acabou de escutar meu monólogo. Não há nada mais do que sua brilhante vivacidade característica e curiosidade quase infantil.

— Ele está nos testando.

Ela se vira numa posição onde possa ficar em direção à floresta e espera pelo ataque, quando Sam surge novamente minha mente grita alto, por instinto.

Na sua direita!

Seth desvia do ataque com agilidade impecável, e dessa vez ele derruba Sam, o imobilizando sob seu corpo.

Nós três nos encaramos quando a realização vem, é possível, Seth realmente pode me escutar em sua cabeça, e surpreendentemente, não é de mão dupla, pois eu não consegui ouvi-lo em momento algum, e talvez isso signifique que essa ligação é intencional, pois ele só conseguiu me ouvir quando eu queria que ele o fizesse.

Eu solto um longo e aliviado suspiro, e olho para os dois dando um breve aceno.

— Vamos fazer novamente.

E dessa forma o que deveria ser um treinamento de combate se torna um jogo de caça, Sam é surpreendentemente sorrateiro, ele consegue me surpreender todas às vezes, e Seth parece desconcertado por não poder escutar os pensamentos do alfa quando ele está ao redor, minha cabeça parece correr em realização quando percebo que talvez seja minha interferência, eu estou usando tanta força mental para avisá-lo dos ataques que talvez também esteja bloqueando sua ligação com Sam. Quando falo em voz alta minha suspeita, ambos os lobos parecem concordar, e assim continuamos a brincadeira, parece que estamos fazendo isso por horas quando percebo que minha cabeça começa a doer, há esse cansaço mental pesado como uma pedra sobre os meus pensamentos.

Nós tentamos mais algumas vezes, apenas para finalizar o exercício diário, fico maravilhada em como Seth simplesmente me ouve e segue o que eu transmito, ele não pestaneja nenhuma vez, apenas segue, sinto nossa confiança se fortalecer, se estabelecendo entre nós como um fio, nos ligando, Sam ataca, eu aviso, ele desvia... estamos construindo algo, nos encaixando.

Na última tentativa Sam se vai, e me sinto tensa com a sua demora, mas ele volta totalmente vestido, sua tez brilha com suor, ele apenas nos encara por um tempo, balançando a cabeça como se confirmasse algo para si mesmo. Com um franzir do focinho Seth indica que está indo se transformar, meu corpo antes relaxado fica tenso imediatamente, respiro fundo e me preparo para a onda de tensão ao pensar na presença humana de Seth, mas nada acontece, sinto apenas conforto, estou drenada, minha mente adormece em meio aos pensamentos acelerados.

Ele volta de peito nu, vestindo apenas jeans batido e rasgado nos joelhos, seus pés descalços se afundando na terra marrom.

Sinto meu rosto esquentar e desvio o olhar de sua pele exposta, mas olhar para seu rosto não melhora o rubor, só piora, pois seus olhos são febris de alegria, o cabelo bagunçado ao redor do seu rosto adorável.

O sorriso de Seth é um sorriso perigoso, um sorriso cheio de promessas e segredos.

— Amanhã, no mesmo horário.

Como sempre, eu não me estendo em nossa despedida, apenas aceno e dou um último olhar a Seth, me viro e começo a ir para casa.

É quando ele me pega pelo pulso, congelo, meu instinto trazendo a tona a natureza vampírica, não posso me mexer, em pânico deixo um silvo se transformar num rosnado.

— Solte...

É como se eu tivesse acabado de bater nele, a rejeição em seus olhos não me afeta imediatamente, estou mais preocupada com o que está acontecendo dentro de mim.

A raiva parece borbulhar e crescer com o medo.

Sou tragada para um buraco de escuridão do passado.

O ataque de pânico me atinge com tanta força que meu corpo me trai se petrificando para sempre, a visão escurece logo em seguida, todo o calor do meu corpo é tragado para as sombras da lembrança.

Sou sugada bruscamente para a realidade assim que Seth deixa meu pulso ir, o meu grito queima meus ouvidos, um grito de dor contida, de sofrimento, um grito que pede por socorro.

Eu me viro com os olhos queimando e corro para longe, corro tão rápido, tão desesperada que só sinto o fogo se alastrando pelo meu corpo, não sinto a terra, não sinto o ar, não sinto o céu... eu não sinto nada... só fogo.

Corro tão rápido que tudo ao redor se torna um borrão de verde e cinza, eu corro através de sombras e fantasmas, um caminho de fogo e desespero sendo deixado pelo meu rastro, quero correr para sempre, até que tudo seja apenas fumaça e cinzas, quero correr o suficiente para queimar toda lembrança, toda a dor, todo o sofrimento que ainda atormenta a minha alma.

Eu sou carregada pela covardia, mais uma vez fugindo daquilo que deveria me pertencer, mais uma vez eu fujo do meu destino, fujo da proteção e do carinho, fujo de todos esses novos sentimentos que me assustam, fujo do passado que não quer ir embora... eu fujo de mim.

Breco subitamente quando sinto pisar em falso encontrando apenas ar, meu corpo se joga para trás desajeitado e cai sobre minhas costas, me arrastando para longe na beira do penhasco, o som das ondas rugindo não podem contra o fogo que queima dentro de mim.

Por favor... por favor... por favor... FAÇA PARAR!

Quando acaba o lobo finalmente emerge, e  percebo que não estou sozinha.

O vento açoita o meu pelo uma e outra vez, o balanço suave do caminhar faz meu corpo derivar entre os braços de quem me carrega, meus olhos se reviram trêmulos em meio ao cansaço, drenada eu me concentro na minha respiração, bufando uma e outra vez em busca de ar.

Sinto o frio do abraço de Emmett através do meu pêlo grosso, entrando por minha carne, penetrando meus ossos. E antes que eu possa me livrar de seu abraço protetor, minha consciência desliza novamente para a escuridão. 

Porque essa é minha sina, sempre voltando à escuridão, sempre respirando por solidão, perseguindo o sofrimento como um masoquista, desistindo mesmo sem tentar, só aceitando as sombras da minha existência.

Eu sou culpada...

Sou culpada por criar... e por aceitar a minha própria prisão...

Estou acostumada demais com a dor, ela já é bem-vinda, por isso, quando a sombras vem, eu apenas suspirei em alívio, aceitando, deixando que eu mesma me deixe cair em uma armadilha... prendendo meu subconsciente dentro de mim mesma.

É como no pesadelo, eu estou envolta por uma paisagem leitosa, um infinito de branco me cercando, me trazendo para si. 

E então, lá está o buraco.

A pressão é um sentimento auto infligido, eu sinto isso pressionando em meus ossos, me dizendo... apenas vá... vá e tudo vai acabar...

No entanto, esta é a vida... a mentira é sedutora, armada, charmosa e bela... e mesmo assim, uma ilusão.

Infelizmente, minha humanidade, que é tão pouca e mesmo assim tão persistente, ela sim... ela é quem mais me trai, porque através dela, dessa pequena parte do meu ser que sempre se sobrepõe sobre as demais... é ela quem decide.

É minha humanidade que me condena.

Seth

Nunca tive que pensar sobre isso.

Vida. Futuro. Mais.

Eu fui presenteado com duas famílias.

A vida me deu pais amorosos, uma irmã leal e protetora e então irmãos e amigos que sempre fariam parte de quem eu sou, um laço eterno que sempre me faria sentir pertencer.

A vida me deu um propósito, um que eu aceitei com grande honra, com um sentimento emocionante e dolorido... 

A vida me deu um dom.

Minha vida se construiu ao redor deste dom, de um propósito maior, até que chegasse o momento que não fosse mais necessário lutar. E quando este dom adormeceu, consegui ser apenas Seth mais uma vez, independente da saudade constante dessa parte de mim.

Eu cresci... e depois de um tempo, não consegui mais ignorar... “isso”... eu não podia mais fingir.

O vazio estava aqui o tempo todo, o vazio que eu escondia dentro, bem fundo, no meu coração e mente. Aquela metade que eu sabia que faltava ser preenchida, que talvez fosse mais importante do que qualquer coisa, ela ainda estava lá, sempre me lembrando que não importava quanto tempo demoraria, eu ainda receberia mais um presente da vida.

Minha vida era feliz, simples e fácil.

Eu era uma pessoa feliz, satisfeito com todas as coisas ao meu redor.

Mas então, era isso... eu só estava conformado, porque não sabia o que podia existir além... não sabia que ela podia existir.

Há acontecimentos na vida que você é incapaz de explicar, coisas que estão além do entendimento, coisas que você consegue apenas querer e querer cada vez mais decifrar, desvendar e demonstrar.

Nem se eu quisesse conseguiria explicar o que essa estranha tinha se tornado para mim.

Vê-la lutar contra ela mesma, estava me matando por dentro.

Quando me transformei de volta a primeiro coisa que senti foi a minha pele ardendo, como se labaredas de fogo a tivesse lambido toda a extensão do meu corpo, chacoalho meus ombros tentando me livrar da sensação, meu peito subindo e descendo muito rápido por causa da respiração acelerada.

— Pega.

Sam me joga a calça jeans que deixei escondida atrás de uma árvore, e começa a vestir suas próprias roupas com agilidade e rapidez, como se tivesse feito aquilo um milhão de vezes, e provavelmente o fez, assim como eu.

— Preciso ir atrás dela...

— Não.

Tenho um arrepio de irritação pelo tom usado em sua voz, meu instinto grita para que o enfrente, afinal de contas, ele não é o meu líder, eu não respondo às suas ordens... 

Mas então eu percebo que o meu alfa não está presente, e que neste território, eu devo responder ao alfa local.

Eu não sou mais uma criança desobediente, sou um homem adulto, preciso respeitar aqueles que estão acima de mim. E neste momento, eu preciso respirar fundo e não fazer cara feia para Sam que tem essa expressão vazia, seu olhar concentrado no rastro que Ayira deixou para trás.

— Vá para casa, espere até que eu dê notícias.

Quando ele diz casa, não está se referindo a minha casa, e sim a sua própria.

— Sam, eu preciso...

— Agora não, paciência.

E sem mais nenhuma palavra ele se vira e começa a correr.

Se estivesse na forma do lobo ele a alcançaria mais rápido, mas se trata de Ayira, se ela sentisse algo não humano a seguindo enfrentaria isso como uma ameaça, agora eu sabia como ela se sentia, eu tinha visto em seus olhos quando agarrei seu braço.

Só de lembrar eu fecho os olhos,  inspiro com força pelo nariz, meu corpo todo treme, flashes do seu lindo rosto se contorcendo em desespero violento piscam na minha mente, a sua voz fria cuspindo a súplica desesperada.

Tortura.

Eu ainda estava no escuro, tudo o que eu sabia vinha do conhecimento de Sam, do que ele lhe contou quando foi preciso, Ayira é uma pessoa quebrada, cheia de machucados internos, e se eu não conseguisse ser cuidadoso e compreensivo, poderia acabar abrindo mais essas feridas. Então Edward tinha se certificado de me contar sobre o passado dela, não tudo, apenas aquilo que pudesse me fazer evitar qualquer gatilho, no final, apenas Ayira poderia me contar toda a sua história, contar tudo aquilo que nem ela contou para os Cullen ou para Sam.

Ainda conseguia ter vislumbres dos pensamentos de Sam, de sua frustração constante no começo do treinamento dela, como ele ficava estressado no final do dia por ter que caminhar sobre gelo fino, controlando suas palavras e sua rudez característica. Para ele tinha sido um inferno, enquanto que para Jasper tinha sido mamão com açúcar, ele tinha como vantagem seu dom é claro, o que irritou ainda mais a Sam.

Não queria me sentir frustrado, eu não iria, não enquanto tudo era tão novo.

Minha pele se arrepia ao lembrar da sensação de seus olhos, seu olhar tímido e intenso me observando a todo momento, a forma como ela parecia surpresa quando sorria... Ayira carregava o sofrimento nos ombros, e quando sentia felicidade, parecia físico, saindo de seus poros como um brilho, se manifestando em seus lindos olhos, no seu sorriso, em sua respiração, em cada palavra.

Tão linda.

Sua pureza fazia meu coração querer explodir.

Como alguém consegue machucar ela? Não faz sentido, toda a bondade, cada pedaço dela querendo apenas amor, cada centelha da sua humildade e de seu anseio por pertencer... como puderam machucar ela desse jeito...

Como eu pude machucar ela?

Idiota. Se eu não estivesse tão afundado nos meus próprios sentimentos, no meu anseio por me aproximar, então teria evitado toda essa situação angustiante.

Não vou embora, apenas continuo parado no meio da floresta, sentindo cada respiração angustiante, a necessidade de correr, de ir atrás dela é tão forte quanto o comichão debaixo da minha pele, doendo em meus ossos, se eu apenas deixasse o ímpeto me tomar, chegaria até ela mais rápido do que Sam. Eu não podia, não podia piorar as coisas mais ainda, já tinha sido estupido o suficiente um momento atrás.

Insegurança. Foi minha insegurança que me fez vacilar, apenas isso.

Soava tão infantil, por causa de um sentimento bobo eu tinha me deixado levar, ver ela ir embora sempre parecia um adeus, depois de um momento tão bom, tão cheio de descobertas e intimidade, só foi ver ela se virar e eu já me senti sozinho novamente, com saudade... foi tão rápido, o pensamento veio e eu simplesmente agi, sem pensar em nada, só na vontade de sentir ela perto novamente.

Tinha sido tão bom, tão certo ter ela na minha mente, sua voz era como uma canção, penetrando os meus pensamentos, de forma calma e vagarosa, conquistando aos poucos, até se sentir segura o suficiente para pertencer. Quando ela se comunicou comigo através da telepatia foi como se finalmente estivéssemos conectados, foi o único momento que eu senti que não precisava de mais.

Eu fecho os olhos e solto um suspiro trêmulo, seus olhos aparecendo em meio a escuridão da minha angústia, aqueles olhos únicos, que apenas reafirmam quão especial ela é.

Sempre foram os seus olhos, desde a primeira vez, meu coração palpitou ao vê-los, aqueles lindos olhos, tão diferentes...

— Heterocromia.

O estalo de sua voz me faz acordar do meu devaneio, estou sentando no nosso quintal a mais tempo do que imaginava, já é quase noite, as cores do crepúsculo se queimando e lutando pelo último raio de sol, eu pisco desnorteado e me concentro na sensação dos meus pés descalços na terra úmida do chão.

— Que?

Leah tem uma voz que ninguém esquece, a rudez de seu tom não deixa, e é isso que a entrega sempre que ela fala, toda sua dor sendo concentrada na voz, então sempre que ela falar com você, é como se fosse um insulto.

Ela arrasta uma cadeira velha de praia para se sentar ao meu lado e eu fico tenso, apenas a espera de um comentário irônico. Ela apenas se acomoda e toma um gole de seu café, quando percebo que ela não vai falar mais nada, apenas continuo a olhar para frente, para a floresta que me espera.

— Eu pesquisei, é uma anomalia na melanina, o porquê de seus olhos terem cores diferentes.

A palavra anomalia faz meus lábios torcerem em desgosto, não gosto da escolha de palavras, durante todo esse tempo, tanto os Cullen quanto Sam tem tentado trabalhar nos pensamentos depreciativos de Ayira, na forma como ela se rotulava com palavras como “anormal”. Eu não queria ver minha irmã trazendo isso à tona.

— Relaxa pirralho, não estou ofendendo sua namoradinha.

— Ela não é minha “namoradinha”, você sabe disso.

Eu poderia muito bem ter a esfaqueado, Leah solta um bufo depreciativo e eu fecho os olhos imediatamente, controlando minha decepção ao atacá-la onde dói.

— Eu não quis...

— Eu sei, esqueça isso.

— Me desculpe, eu só não consigo – me calo angustiado e inclino para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos, eu coloco o queixo nas juntas dos meus dedos cruzados e fecho os olhos para pensar melhor – É frustrante, eu não sabia que podia ser tão angustiante, não sei como agir, estou preso, sem saber em que estágio devemos estar.

— Quando eu sentei ao seu lado, minha intenção não era dar uma de guru do imprinting – ela está incomodada, por isso finge tomar outro gole de café para tentar não soar grossa – Você devia pedir conselho aos outros pombinhos, não acha?!

Bem, no final ela não consegue se controlar, e isso de certa forma me diverte, olho para ela e dou um sorriso, suas sobrancelhas relaxam quando ela me encara, apenas um puxão no canto dos seus lábios entrega que ela também ri, isso não dura muito é claro.

— Nunca pensei que veria algo do tipo, não depois daquele drama todo com a filha da Bella.

Eu reviro meus olhos entediado com sua persistência em apertar a mesma tecla.

— Ela não é uma coisa Leah.

— Sim, ela é, assim como nós somos, como os Cullen são...

Ela não parece querer continuar com os insultos, sei que está tentando chegar a algum ponto, mas eu não posso me impedir de defender Ayira, meus sentimentos são fortes e protetores.

— Ela é única, não é como nós.

— Ela até pode ser única, mas também é um pouco de cada, uma manifestação dos dois mundos, o nosso e o deles.

— Isso te incomoda?

—Não exatamente, quer dizer, será que nunca vamos ter paz?

Eu sabia ao que ela estava se referindo, a forma como sempre parecia existir uma luta iminente, primeiro nós tivemos que mudar nossas anatomias para proteger a humanidade dos vampiros, e então nos tornamos seus aliados, apenas para lutar contra sua própria raça e mais tarde para proteger os híbridos.

E agora nós lutaremos novamente, para proteger uma nova raça, uma que nem sabíamos da existência até Ayira aparecer.

— O universo tem uma maneira única de virar o jogo.

Eu ainda não conseguia lidar com isso, com ser o cerne desse novo embate, quer dizer, a existência de Ayira era o novo propósito para lutar, mas ela ser a minha parceira, o alvo do meu imprinting, me tornava a motivação também. Eu precisaria lutar novamente, mas dessa vez a razão era minha.

Tudo estava em jogo novamente, a proteção da minha família e amigos, dos nossos segredos, mais uma vez lutando, sob a cegueira da humanidade nosso mundo sobrenatural entrava em conflito mais uma vez, e nada poderia nos salvar além de nós mesmos.

— É, essa parece ser uma piada constante não?!

— Hum.

Eu não queria pensar nisso, não agora, eu ainda precisava entender como a ligação funcionava, ainda precisava lutar a luta do momento: tentar me aproximar de Ayira.

Estava sendo mais difícil do que fora para os outros.

— Gelo e fogo, até reflete em sua aparência, o azul para o gelo e o marrom para o fogo.

Seu olhar assombra meus pensamentos mais secretos, o vento deslizando por seu cabelo preto, nuances de roxo, azul e verde brilhando em cada fio.

— Seu cabelo me lembra asas de corvos.

A risada debochada de Leah faz meus pensamentos se quebrarem mais uma vez.

— Cabelos pretos e lábios carnudos não fazem dela uma Quileute.

Me levanto com um suspiro cansado e encaro ela, sentada com sua arrogância.

— Você precisa implicar com tudo? Não é cansativo?

— Pelo menos ela não fede.

E assim nossa conversa tinha chegado ao fim.

Não sou imune a sua aparência é claro, nunca tinha visto alguém tão belo, não desde os vampiros ou de Renesmee... mas Ayira é diferente, ela tem o melhor dos dois mundos com um toque delicado de humanidade, ela é linda.

Apesar de ainda me sentir protetor e a considerar apenas a minha parceira de imprinting, também sinto essa vontade enorme de ser seu amigo, de ter a oportunidade de mostrar quem eu sou, quem é Seth Clearwater de verdade, sem lobo, sem mundo sobrenatural, apenas eu.

Eu quero que ela me conheça, mas acima de tudo, quero conhecer ela.

No entanto, sempre existe o “mas”, mesmo existindo todas as razões mais honestas e despretensiosas, mesmo assim, não posso controlar meu coração, ou a forma que estou caindo cada vez mais rápido, me afundando nesse sentimento de “mais”. Se eu não tivesse sentido essa sensação antes, a de se apaixonar, mesmo que de forma mundana, até diria que estou me apaixonando, como se pela primeira vez... como se ela fosse o meu primeiro amor.

Idiota.

Estava acontecendo rápido demais, não podia sequer controlar meus sentimentos, e agora eu tinha afastado ela mais uma vez, machucando no processo de refrear meus sentimentos carentes. Eu devia ter mais controle sobre o que sinto, mas é só ficar no mesmo espaço que ela, e todo o meu controle e força cai por terra, é quase como se ela fosse a minha kriptonita, me desarmando até eu me tornar um garoto bobo e ansioso, sem disciplina ou cuidado, apenas sendo guiado pelo seu instinto de conseguir o que quer.

— Idiota.

Sussurro o insulto em voz alta, entredentes, para que eu possa reafirmar a minha derrota.

Fecho meus olhos com força e inclino a cabeça para o céu, apenas para abri-los e encarar a paisagem sombria, que se combina perfeitamente com meu estado mental no momento. Sei que não vai adiantar nada ficar parado no meio da floresta me martirizando sem parar, por isso deixo o conselho de Sam descer por cada membro do meu corpo, até que com relutância, eu me viro e começo a andar em direção a casa da minha prima.

Quando a varanda aparece entre os galhos de árvore, eu vejo que Emily está sentada em sua cadeira usual, por um segundo apenas minha memória pisca e é quase como se eu estivesse vendo Leah, a mesma cena, as duas mulheres se mesclando, mas então eu pisco e é apenas Emily novamente, ela oferece uma caneca de café quente e então me olha.

Ela já sabe.

Ayira

Estou presa no meu subconsciente, presa numa escuridão sem fim, gritando e chorando por ajuda, dentro do meu próprio corpo, sendo forçada a entrar de volta num poço lamacento de lembranças dolorosas, lembranças que parecem querer me consumir, até que não exista mais nada de mim.

Eu procuro às cegas por qualquer centelha de luz, em busca de uma saída, mas tudo que eu encontro é escuridão, e simples assim, eu afundo, para reviver um pesadelo mais uma vez.

O som da corrente se arrastando faz meus ossos zumbirem em agonia.

Na escuridão eu observo o metal preso ao redor do meu tornozelo, umidade se prendendo a minha pele como um parasita.

Hoje é um dia ruim. Eu sei disso, porque quando estou aqui, existe apenas escuridão.

Não é o lugar em si, a masmorra de alguma forma é mais reconfortante do que o castelo, aqui eu pelo menos poderia ficar em paz, o que torna este dia terrível, é a presença sombria que desce as escadas.

É “ela” que representa o dia ruim.

Meu estômago se contorce em ânsia, a fome já parou de incomodar há muito tempo, mas não posso impedir que o vazio faça minhas entranhas se revirarem, minha garganta seca parece se rasgar quando engulo de volta, com dificuldade para conter a bile.

Ela para distante, sua expressão fria e vazia, mas em seus olhos eu posso ver desdenho, o nojo quando ela percebe a sujeira na minha pele, o cheiro forte que meu corpo esquelético exala. Eu choramingo enquanto espero, a qualquer momento, seu sorriso infantil e maldoso aparecer, e este será o sinal.

Minha mente corre, desesperada, antecipando a dor que conheço tão bem quanto a terra debaixo das minhas unhas.

Já faz quase uma semana, uma semana presa na escuridão, esperando, sempre esperando pelo pior. Tinha ficado pior depois que a fera emergiu, a avidez com que eles me visitavam, sempre fazendo perguntas para as quais a resposta era o meu silêncio, a minha confusão e ignorância. E então se resumia a isso, terminando em tortura. Não era só isso, é claro, em certo ponto, eu percebi do que se tratava: um teste.

Saber disso não fazia a dor ser menos dolorosa, ao contrário, minha psique estava sendo despedaçada a cada dia, com a ansiedade, antecipação e o estado de alerta constante. Não podia me defender nem mentalmente, quem dirá fisicamente.

Eles estavam cegos por sua fascinação e teorias absurdas, depois que eu me transformei pela primeira vez, não pude controlar o que aconteceu com meu corpo, só podia sentir a dor agonizante enquanto meu corpo se remodelava para voltar a forma humana, uma forma quase adulta, para a mente de uma criança. Tinha sido assustador, não reconhecer e controlar o meu próprio corpo, mas isso não os impediu de me cutucar e torturar por dias, testando sua teoria de que eu possuía a capacidade de mudar minha anatomia sempre que me transformava.

— Dor.

Meu cérebro não tem tempo de ordenar que minhas cordas vocais produzam um grito, eu apenas arqueio para trás, minha cabeça batendo na parede de pedra, busco por folêgo desesperadamente enquanto onda atrás de onda de dor queima meu corpo.

Isso já tinha acontecido tantas vezes, todos os dias, desde que eles tinham me arrancado da minha vida, e mesmo assim, eu não podia impedir a reação de surpresa da primeira onda de poder, da dor agonizante que Jane infligiu sobre mim.

Eu sei o que eles querem, desde a transformação, as sessões de tortura de Jane se tornaram cada vez mais frequentes, destruindo lentamente a minha psique, até que eu não sabia mais distinguir as horas, os dias, ou sequer se eu estava acordada ou sonhando. E de forma terrível, me vi começar a absorver a dor, deixando que ela penetrasse por minha carne e ossos, se transformando em apenas um zumbido, e desta forma, eu os impedia de testar suas suspeitas, de que me torturando, conseguiriam me levar até o limite, para que me transformasse mais uma vez.

É claro, que ao fazer isso, eu não estava completamente livre de consequências.

Ao me acostumar a suportar o dom de Jane, eu abri mão da minha mente, e podia sentir cada pedaço dela cair por terra, até começar a ficar louca.

Minha pequena vitória não perdura, Caius, o soturno e infeliz Caius, é quem percebe que eu tenho me tornado imune ao poder de Jane, e dessa forma, eu sou forçada a ver a única pessoa que posso confiar, ser comandada a me machucar.

Alec...

Como se respondesse ao trauma, as paredes ao redor da minha prisão tremem, desfocando da lembrança dolorosa, um grito infinito de agonia soando como sinos na minha cabeça, apenas para me jogar na lembrança novamente.

A expressão de Alec é um vazio eterno, seu olhar perdido no além, como se não me enxergasse, e por mais que eu tente não demonstrar, a mágoa se despeja através dos meus olhos, rolando em lágrimas quentes por meu rosto suado.

— Por favor... não...

Meu momento de fraqueza me custa o que resta do meu orgulho.

Eu me lembro, de cada momento de gentileza que ele demonstrou, da sua bondade para comigo, e a confiança que ele conquistou ao ter o mínimo de decência na minha presença, me fazendo acreditar que todos eles não eram iguais, que ele era uma exceção.

Ingênua

No final, ele é um Volturi, e é a eles que ele responde, sua lealdade sempre será para com eles.

Quando sua escuridão vem eu grito.

Ele me afogou em sua escuridão, me prendendo em minha própria mente, me cegando, me deixando surda... e é pior do que com Jane, com ela é apenas físico, e agora ele destruiu o último resquício de esperança que eu mantinha. Tragada por sua escuridão sem fim eu desvaneço no meu próprio ser.

Eu não me lembro de nada, não lembro quem eu sou... quem sou eu...

Quando sou tragada para o meu corpo novamente, a única coisa que posso reconhecer é a dor com que Jane me subjuga, e o pouco que consigo raciocinar, me diz que eu estou me transformando de volta em minha forma humana, minha pele ardendo ao se moldar, corpo e mente lutando em confusão.

A transformação é apenas um sentimento, fazendo meu corpo se arquear e lutar contra o impulso, meus dentes buscando pela pele por baixo do pelo, rasgando e tirando sangue, até que ceda, emergindo na minha forma humana, desgastada e fraca.

— Dor.

Eu rolo e arqueio pelo chão, dor descomunal quebrando meus pensamentos, machucando minha carne e ossos.

— Por favor, por favor... pare!

Jane para e me observa ofegar enquanto me  arrasto para longe.

— Transforme-se, de novo.

— Eu... não posso.

— Dor.

Eu choro, lágrimas infinitas sendo engolidas por cada grito quebrado e sem fôlego, até que eu não tenha mais forças, e desmaie em exaustão, apenas para delirar em pesadelos, escutando suas vozes horrendas, sussurrando incansavelmente que tudo deva ser repetido novamente.

Descubro dias depois, que durante a ação dos poderes de Alec, eu estive presa em meu lobo por três dias, sendo torturada, minha mente ausente, apenas animal lutando e se debatendo diante da impetuosidade de Jane. Eles me deixam em paz por um tempo, o suficiente para me recuperar para a próxima sessão de tortura.

Alec vem todos os dias, eu não o vejo, não tenho forças para olhar para ele, só sinto seu cheiro, e cada vez que ele entra no espaço da minha prisão, eu sinto a náusea preencher meu estômago, me fazendo encolher em posição fetal, prendendo minha respiração até que ele vá embora. Meu sono é profundo, depois de ser forçada tantas vezes, a fadiga apenas se perpetua, e é quase como se eu me auto conduzisse a um coma, acordando apenas em pequenos rompantes de consciência, onde tudo que eu posso ver é ele: Alec.

Observando, vigiando, almejando... um desejo cada vez mais crescente em seu olhar sangrento.

Eu estou presa novamente, presa na minha cabeça, em minha forma de lobo, agonizando nesta prisão, sendo obrigada a reviver cada lembrança dolorosa, assistindo na escuridão aqueles que eu amo lutarem para me trazer de volta. É tudo minha culpa, culpa do meu poder incontrolável, da minha inabilidade de superar os meus traumas, da minha incapacidade de deixar as pessoas se aproximarem o suficiente para me ajudar.

Eu permaneço aqui, apenas escutando os sons e vozes ao meu redor, cada sensação extenuada a respeito da minha situação.

Como um terceiro ouvinte, presa na escuridão cegante, eu ouço através da audição da besta, ouço tudo que acontece quando Emmett me leva de volta para casa.

Escuta a preocupação de Bella quando Emmett entra em casa com a besta nos braços.

— O que aconteceu?

Estou presa... me ajude...

— Onde ela estava?

Alice numa voz chorosa, se aproxima quando o vampiro deposita a besta adormecida para o quarto, depositando ela na cama, o corpo grande e branca afundando no colchão, grande demais para caber numa cama feita para um humano.

— Eu estava caçando perto da fronteira quando a escutei, tentei chamar sua atenção, mas ela parecia não escutar, quando finalmente parou estava a beira do penhasco, colapsando em uma transformação... eu nunca tinha visto acontecer assim... é como se ela estivesse agonizando.

O cheiro de Carlisle preenche o ar ao redor da besta, a superfície fria do estetoscópio atravessando o pelo até tocar a pele, ele se demora ao checar os sinais vitais da besta, levantando suas pálpebras e verificando suas pupilas dilatadas, checando sua respiração ofegante.

— Está em choque, vê como os olhos se mexem... nunca vi algo assim, as pupilas se dilatam e voltam ao normal, repetidamente.

Me ajude...

— Não consigo ler seus pensamentos... só vejo muros de sombras, Jasper?

Por favor, por favor...

Um silêncio ensurdecedor toma conta do recinto enquanto os pensamentos de Jasper pesam, ele fica calado por tanto tempo, quase uma eternidade, é quase como se ele não pudesse responder.

— Não consigo senti-la... é como se ela não estivesse aí.

Eu estou aqui... me ajude...

O som do telefone tocando no andar de baixo chama a atenção deles, Rosalie vem para o quarto com uma lufada de ar, sua presença quieta demais, diferente de tudo que ela representa.

— É Samuel Ulley.

— Algo deu errado.

Num movimento inaudível, Bella sai do cômodo, a voz de Sam através do telefone vai diminuindo enquanto ela sai do quarto, mas ela não se demora, e assim que volta conta tudo o que o alfa informou sobre o ocorrido.

— Ele diz que estava tudo bem no treinamento, mas então Seth a tocou de surpresa e ela simplesmente... perdeu o controle, ele não consegue explicar, sem a ligação com o bando é impossível saber o que aconteceu com ela.

— Como Seth está?

A voz de Jasper entrega sua ânsia pela oportunidade de analisar Seth.

— Inquieto e culpado.

— Não consigo vê-la, é como antes, apenas borrões.

A tensão se acentua quando Alice revela o fato, eles percebem que estão no escuro, sem solução, impossibilitados de fazer algo para me ajudar.

— Vamos continuar monitorando, ela precisa de descanso, se for apenas um episódio, então ela poderá se estabelecer depois de um sono profundo.

A primeira semana é a pior, a situação já é horrível por si só, combinada com todas as lembranças, sendo obrigada a reviver o mesmo momento varias e varias vezes, sem poder alterar nada, sendo obrigada a sentir as mesmas sensações novamente, a mesma impotência, a dor escaldando cada pedaço de quem eu sou, quebrando a minha psique sem parar. E então fica pior, pois a besta é incapaz de reagir, não comendo, e sempre adormecida, delirando entre sonhos e alucinações.

Eu os vejo vir... vejo eles me encontrando, indo atrás dos Cullen, os destruindo um de cada vez, me obrigando a assistir repetidas vezes, a forma como eles destruíram  minha família e então, eles também estão machucando a alcateia, extinguindo os lobos, perseguindo Jacob e Renesmee, apenas para tortura-los, assim como fizeram comigo, para enfim, destruir o que resta de mim.

Eu não consigo parar isso, não consigo me fazer ver que se trata apenas de cenas ilusórias que minha mente cria, uma pegadinha de mau gosto. Não consigo ver quão falso é, não quando preciso ver meus amigos sendo transformados, tendo que viver em matança e dor, sendo torturados a ser monstros, perdendo o controle, e então sendo mortos pelos Volturi.

E tudo terminava neles, nos meus pais, no momento fático, que determinou meu destino.

O ar parece frio, substancial, e em apenas um instante, o mundo parece se calar completamente, não há vento, ou folha farfalhando nas árvores, até mesmo os pássaros silenciaram sua cantoria constante.

Há apenas essa sensação, de infelicidade, de algo prestes a acontecer.

Tudo o que eu vejo são pequenos animais brilhantes suspensos por fios, o teto de madeira, cada veia traçada no que um dia foi uma árvore. Eu preciso assistir cada raio de sol atingir os animais cristalizados, enquanto o banquinho do piano é derrubado quando minha mãe se levanta rápido demais....  ou a forma como meu pai rosna quando a porta é arrebentada, um estrondo infinitos, o ar gelado sendo agitado pela pressão do estrondo.

O grito isolado da minha mãe quando ela tenta me alcançar, enquanto meu pai amaldiçoa os invasores, tentando lutar incansavelmente para nos proteger, sombras escurecendo o cômodo, figuras negras em capas de veludo circulando o meu berço.

E eu só posso sentir o frio, quando braços de gelo me pegam no colo, um choramingar trêmulo crescendo no meu peito, até chegar aos meus lábios, o meu lamento infantil ao ser arrancada de minha vida.

O rugido horrível e não humano do meu pai, preso entre a transformação e a forma humana.

— PARE!!!!

E quando não pode ficar pior, sou pega de surpresa novamente.

Os terrores noturnos são algo que eu preciso lidar internamente, mas quando eles não vem, eu preciso assistir o descontrole do meu corpo, da besta, destruir tudo ao meu redor machucando meus entes queridos.

A besta acorda do sono, procurando desesperada, lutando e resistindo a uma ameaça invisível, destruindo tudo que aparece em sua frente, mordendo e se jogando contra as paredes, atingindo o cansaço, apenas para começar tudo de novo, arrancando pele e sangue de si mesmo, em busca de uma saída.

E eu preciso assistir horrorizada, quando Emmett e Jasper se revezam dia após dia, tentando contê-la, segurar seu corpo descontrolado em cada episódio violento, enquanto Edward tenta desfazer cada muro que protege minha mente, ele insiste tão forte, apenas para se frustrar com mais barreiras, que o impedem de me trazer de volta a consciência.

Quando chega o final da semana, eles percebem que não há progresso, e que será necessário mais tempo, por isso Alice providenciam tudo, dizendo que vai até a escola, comprar tempo o suficiente para eu me recuperar. Carlisle é que diz que um amigo pode ajudar, emitindo um laudo, onde o diagnóstico é o de depressão profunda, a história oficial é que eu tive um colapso, e por isso estou sendo internada numa clínica de reabilitação para me tratar. Não está longe da verdade, mas Alice ainda luta para mudar a história, dizendo que isso não fará bem algum para minha vida como uma humana, eu não sei o que pensar, a história não está longe da realidade, e tudo o que eu posso fazer, é assistir meu livre arbítrio escorrer na escuridão, sendo obrigada e reviver o mesmo pesadelo todos os dias.

 A segunda semana não é diferente da primeira, mas traz um vazio novo, o da fome.

Eu continuo presa dentro da besta, entrando e saindo de sonhos lúcidos, acordando em um pânico desenfreado, destruindo tudo ao redor, não deixando ninguém se aproximar, me esquivando de seus braços.

Eles começam a temer pela minha saúde, pois a besta não come, seu corpo definhando a cada dia, a pele machucada e sangrando, o olhar ensandecido. O medo deles de me machucar os faz hesitar em conter a besta durante os episódios, e o que eles mais temiam acontece.

Com sua mandíbula mortal a besta quebra uma das pernas dianteiras e sem outra alternativa, Carlisle se vê obrigado a drogar ela, seria a solução perfeita, se não fosse pelo metabolismo da criatura. Fortemente drogada, a besta entre num coma, impossibilitada de acordar, e eu sou colocada no escuro mais uma vez, sendo obrigada a me alimentar apenas dos sons, escutando noite após noite, o choro melancólico de Esme que assiste meu sono eterno todos os dias.

Apesar de sua preocupação com esse novo quadro, Carlisle conforta todos quando é capaz de imobilizar a perna, sendo possível deixar que sua forma se encarrega da cura, mas ele demonstrar preocupação quando precisa inserir uma sonda na besta, pois ele não vê outra forma, é isso ou deixar a besta definhar até a morte. Além de tudo, eles precisam insistir nas minhas defesas, sempre conversando e tentando me trazer a tona... mas eu não posso, estou presa na escuridão, chorando e gritando em frustração, sendo obrigada a assistir a dor deles enquanto lutam por mim.

Na quarta semana eles começar a ficar preocupados, a besta está muito magra e fraca, e mesmo depois de diminuir as doses de sedativos, eles não conseguem ver melhora, pois ao invés de entrar em crise novamente, a besta está fraca demais para lutar, apenas encarando o vazio, sua respiração difícil e ofegante.

Eu sou mais animal do que eu mesma, não consigo reconhecer seus cheiros ou seus rostos... não consigo mais me reconhecer, e mesmo sem entender quem sou, besta ou pessoa, mesmo assim percebo que talvez, eu tenha começado a desistir.

Eu deixo que os sonhos me engulam.

Sam

28 dias.

É esse o tempo necessário para esquecer quem você é.

Nunca achei que passaria por isso de novo, não depois do drama de Jacob em relação a Bella e seu não imprinting.

Ver um irmão definhar por causa da ligação, era doloroso demais, agudo.

Eu podia sentir o seu desespero tremer em minha própria carne, a forma como a raiva o tomava cada vez que se transformava, correndo em desespero, buscando por ela, cada impulso que o levava ao descontrole, até que fosse necessária toda a alcateia para refrear a violência do seu lobo, que lutava dia após dia para atravessar a divisa, buscando alcançar sua parceira. E mesmo com todas as justificativas, eu ainda me pegava duvidando do meu próprio discernimento, pensando se realmente era certo deixar os dois separados. Isso passava, é claro, a dúvida, assim que eu me lembrava da forma que ela tinha reagido ao toque dele antes de colapsar.

E dia após dia, eu me empenhei para o ajudar a se controlar, sempre acreditando na melhora de Ayira, apenas para ter que esperar mais um dia, mais uma semana, correndo e lutando mais uma vez para impedir que Seth cometesse um erro e acabasse com os dois para sempre. Era difícil fazer isso com ele, impor esse tipo de tortura, eu mesmo sabia o que ele estava passando, entendia, mas também sabia que fazer diferente era a solução, pois na vida, ou você aprende com os erros, ou tem que viver com eles até a morte.

Seth tinha sido um lobo dócil desde o começo, mas desde Ayira e sua ligação, era como se uma parte dele, aquela que todos nós tínhamos vivenciado desde a primeira transformação, tinha finalmente acordado, toda a sua força, raiva e proteção incansável tinha acordado de um sono adormecido. E por isso ele lutou tanto, até que em um momento foi obrigado a ver sob a perspectiva da alcateia.

Seth odiava machucar as pessoas, e ver suas atitudes atingirem seus irmãos fez ele racional mais uma vez, ao menos o suficiente para parar de correr.

E então ele começou a se ressentir, seu coração pesado de mágoa e ressentimento, sim, foi isso que começou aquilo, foi forte demais, como arrancar um band-aid.

Não houve aviso, apenas um tapa, o exato momento em que Seth se desligou completamente de nós.

Cada pensamento, sentimento e imagem se desvaneceram do laço da alcateia... e então ele se foi.

E quando isso aconteceu eu fui até ele, o encontrando com as malas prontas, a dor escura em seus olhos, cada noite em claro se manifestando debaixo dos seus olhos em círculos negros, sua mandíbula suja da barba por fazer, as maçãs do rosto que antes foram marcantes agora estavam ocas pela magreza.

— Você vai embora?

Sua expressão é uma mistura de asco e raiva, ele enfia suas coisas na mochila com violência, o mais rápido que pode.

— O mais longe que eu puder.

Ele não queria dizer longe dela, queria dizer longe de nós.

O sentimento nas suas palavras me faz vacilar, eu esperaria aquilo de qualquer um dos outros, não de Seth, nunca Seth.

Isso é tudo culpa minha.

— Eu não posso mais sentir você, Seth.

Seu maxilar se contrai em tensão quando ele para e me encara, e então ele avança e meus lábios sobem sobre os dentes, meu lado dominante é apenas instinto, mas isso não impede ele de continuar perto, me intimidando, mostrando tudo o que ele tem sentindo, despejando isso, de forma humana e visível, vulnerável.

— Você quer saber o que eu sinto Sam? – ele ruge tão perto do meu rosto que cuspe espuma por seus lábios- Eu não sinto nada!

— Você precisa ser racional, já viu o que esse descontrole faz com o lobo...

— Você quer dizer minhas tentativas incansáveis de ajudar ela? Todas as vezes que vocês me caçaram como um animal? Me afugentando e rondando até que eu estivesse de volta aqui? Preso!

— Não vai ajudar ela assim.

— O que eu devo fazer então? Sentar e esperar até que ela definhe?

Seth só sentia a dor dele, estava tão fundo nisso, que não podia enxergar a si mesmo, mas ele não era o único sofrendo.

Toda vez que aquele telefone hediondo tocava, toda vez que Emily saia da varanda com o cenho franzido o esperando para dar o próximo recado, toda maldita vez que ele escutava a voz de um Cullen... ele só esperava pelo pior.

Não era fácil aceitar que depois do inferno que eles tinham passado, depois de tudo que ELA tinha passado, mais infelicidade caísse sobre a sua vida, como se ela estivesse fadada a viver em sofrimento e agonia.

Sam se sentia mais impotente do que nunca, tendo que sentar e esperar, isso combinado a tudo o que ele teve que ver Seth passar, o impacto desse sofrimento todo sobre eles.

Ainda se lembrava de um dia muito ruim, assim que eles souberam que os Cullen precisaram medicar Ayira para conter seus ataques, a forma como Bella tinha dito com a voz de um fantasma, que não sabia que podia ser possível passar uma eternidade vendo sua família sofrer.

Aquilo tinha quebrado Seth, mesmo em outro cômodo da casa ele pode escutar a ligação, e eu tive que ver  ele explodir porta a fora, como se estivesse prestes a correr para ela novamente. E como o covarde que eu sou, eu usei minha influência, parando ele no meio da chuva, forçando ele a ficar parado lá, tremendo em pura raiva, esperando que eu o libertasse do meu poder.

Eu não o fiz, o segurei até que ele cedesse contra a própria vontade, o joelho se curvando, caindo na lama, apenas para lutar contra isso, e eu senti a sua força, suor descendo por minha tez enquanto eu mantinha a minha influência como ferro, fazendo ele gritar em agonia o rosto erguido para o céu enquanto uma chuva torrencial chicoteava sobre nossos ombros.

O choro angustiado de Emily me fez vacilar, ela estava parada logo atrás, longe o suficiente para não ser atingida por nós, mas perto o suficiente para ver tudo, as mãos sobre a boca tentando conter o choro.

Livre do meu poder, Seth caiu de quatro na lama, seu corpo convulsionando com a força do seu choro.

Ele nunca me perdoaria por aquilo... mas era melhor isso, do que deixar ele cometer um erro maior.

— Seth não vá, você precisa de sua família, precisa de força e apoio, nós vamos passar por isso, Ayira vai...

— Eu não posso, não consigo mais fazer isso – seus ombros tremem com o choro contido e ele respira fundo, segurando isso dentro do peito, controlando o tremor – não posso mais machucar ninguém, eu não quero.

Derrotado, eu apenas suspiro.

— O que eu posso fazer por você?

Ele se vira, jogando a mochila nas costas, seus olhos baixos, ele balança a cabeça e então olha nos meus olhos, e apesar de tudo, sua honestidade não é um ataque, apenas cansaço.

— Nada do que já não tenha feito.

E dessa forma, ele vai embora, sem dizer adeus, apenas deixando um vazio para trás.

Mais uma semana passa, decido que só vou atender o telefone quando uma notícia boa vier, e todos os dias, eu espero que Seth volte para nós, para a sua família, a alcateia. Isso não volta, talvez nunca mais volte, assim como aconteceu com Jacob.

Pensar em Seth como um desgarrado não parece certo, ele não nasceu para estar sozinho.

Apesar de tudo, me sinto bem em saber através de Leah que ele está na casa da mãe, voltando a se concentrar em seus estudos, bem, o suficiente para não voltar a correr, é o que ela diz. A tentação de ir até ele é grande, mas eu respeito seu último desejo, se ele precisa de tempo, então eu darei isso a ele.

Quando chega o final de semana, eu finalmente atendo a ligação, e o que eu escuto me deixa enfurecido, pois apesar de tudo eu acreditava que os Cullen pudessem pensar numa solução, mas Alice, eu sua voz suave e humilde, diz com tristeza que Ayira não consegue voltar a sua forma humana, seu corpo na forma de lobo está muito fraco.

Com piedade, Alice suplica que ele vá até eles, que tente ajudá-la.

E mais uma vez, vou até a loba branca.

Quando entro na casa de vidro dos Cullen, quase dou meia volta, o cheiro de sangue e destruição permeia o ar ao redor, Carlisle me acompanha, sua voz soa como a estática de um rádio, mal posso escutar o que ele está dizendo, mesmo que seja sobre ela, eu apenas sigo o cheiro do sangue, o batimento cardíaco fraco que vem do segundo andar.

Quando Carlisle indica o quarto eu finalmente hesito, paro no portal e apenas assisto a cena, cada membro da família de vampiros, parados como estátuas, uma única coisa em comum entre todos: o olhar penetrante. Está nos olhos de cada um deles, a força com que eles se mantêm vigilantes, toda sua atenção voltada para o corpo na cama. Alice parece uma criança sentada ao lado do grande lobo, seu rosto de elfa está baixando, os olhos brilhantes com apenas um sentimento, e se ela fosse humana, seu rosto estava banhado em lágrimas, mas em sua imortalidade, tudo que ela pode fazer é observar e acariciar o pelo da criança que ela tomará para si.

Em frente a cama Edward se mantém em pé, seu olhar perdido em concentração, e isso me faz deduzir o óbvio, toda essa concentração é apenas seu poder espreitando para conseguir entrar na cabeça de Ayira. O parceiro da loira está sentado na cadeira giratória, o único movimento vem de suas mãos que giram um pequeno globo de neve, sua atenção totalmente voltada para a respiração da loba, girando o globo de neve toda vez que ela termina uma respiração longa e difícil.

A loira e a esposa de Carlisle estão em outro cômodo da casa, e Jasper não está à vista, mas ainda posso sentir o cheiro dele, num rastro recente que indica que ele se retirou assim que entrei na casa.

Bella se levanta da cama assim que dirijo minha atenção para ela.

— Você veio.

Ela está como sempre, em suas roupas desengonçadas, que sempre entregaram que ela não tinha sequer entrado na vida adulta.

Franzo o cenho ao ter um flash momentâneo de tudo que aconteceu desde que ela se mudou para Forks.

— O que eu posso fazer?

Bella olha de volta para a cama onde Ayira está, mas eu apenas encaro o seu marido.

— Nós achamos que talvez a influência do alfa a force a se transformar de volta, não há muita resistência agora, só o suficiente para impelir Alice e Edward...

Balanço minha cabeça e a faço olhar de volta para mim.

— E o que faz vocês pensarem que eu posso conseguir, quando o mais forte de vocês não?

Depois de todo esse tempo, esperando que eles pudessem conseguir ajudar, e aqui estava eu, sendo questionada a fazer algo que eles não tinham sido capazes, quando suas habilidades e conhecimentos eram muito superiores aos meus.

Alice foi a única que reconheceu meu pensamento silencioso, ela viu em meu rosto.

— Não funciona assim.

Ela parece despedaçada por não conseguir fazer nada, sua expressão suplica por ajuda.

— Já sabemos que na forma vampírica ela pode impelir os lobos, o que faz sentido, dado que na forma lupina ela tem resistido aos poderes psíquicos de Alice e Edward, os impedindo de interferir.

Carlisle caminha para dentro do quarto, usando uma caneta com lanterna para verificar os sinais de Ayira, seu corpo bloqueia minha visão, e fico agradecido de não ser forçado a encarar. A vergonha parece corroer meu estômago, esse não é o momento para me retrair, não depois de resistir tanto, mas não posso me impedir de pensar em Seth indo embora, a sua expressão traída.

— Seth se desligou da alcateia.

Eu não tinha a intenção de contar, apenas escapou por meus lábios, e Bella assistiu tudo, o momento que me arrependi das minhas palavras.

— Eu sinto muito Sam.

— Você acha que tem haver com o estado dela.

Edward não desvia sua atenção, sua voz apenas afirma algo que ele consegue ler em meus pensamentos, irritação queima meus olhos agora voltados para ele, a distração é bem vinda, então uso isso para afastar os outros sentimentos.

— E qual seria esse estado?

Ele finalmente me olha, mas não vejo nada insultante em seu olhar, apenas honestidade crua, e isso desarma qualquer desaforo que estava crescendo em meu peito.

— Não é sua culpa, Sam, ou nossa.

Eu quero acreditar neles, e venho tentando lutar para manter minhas convicções desde que tudo aconteceu, é difícil fazer isso quando existem tantos “e se”, e mesmo agora, segurando meu orgulho como ferro, apenas para ser derrubado pela culpa, não posso sequer agir dessa forma novamente, não depois de Seth.

 - Ela está muito fraca... não posso forçar.

— Apenas tente, por favor... salve minha filha.

Eu gostava de Alice, ela era de longe a minha Cullen preferida, mesmo em sua imortalidade, ela ainda podia ser mais humana que a maioria.

E ela de todos, tinha abraçado Ayira como se fosse sua, olhando por ela desde o momento que ela chegou em nossas vidas, protegendo ela de sua dor, encorajando cada passo que ela dava para uma vida plena e coberta de felicidade... ela abriu os braços para uma estranha e a chamou de filha.

Eu tinha lutado com todas as forças para rechaçar esta criança estrangeira e depois de tudo, não pude impedir que a criança que existia dentro do meu coração, reconhecesse Ayira, o que ela era e o que ela tinha passado. Então eu a vi de verdade, enxerguei dentro de sua alma, a reconhecendo como minha semelhante, mas também como um milagre que eu não achava que precisaria presenciar nesta vida. E foi difícil resistir ao sentimento paternal bobo que ela despertava toda vez que aprendia algo novo, foi difícil refrear cada impulso, mesmo agora eu podia sentir as palavras se formando em minha mente, lutando contra o meu orgulho.

Ela era minha também, era da alcateia e dos lobos, ela era filha da terra.

— Eu vou, mas ainda temos um obstáculo.

Quando me viro para Carlisle ele indica o banheiro de Ayira, atravesso o quarto com a respiração presa, evitando a todo custo olhar para o animal na cama. Assim que a porta se fecha as minhas costas soltei minha respiração e praguejei, uma porta não é o suficiente para impedir que os vampiros sintam o cheiro da minha hesitação, assim como não me impede de sentir a preocupação deles.

Retiro minhas roupas e me transformo, o que não é problema do espaçoso e luxuoso banheiro.

A porta se abre assim que termino de me  transformar, é Bella quem abre caminho para que eu entre no quarto novamente.

Me coloco de frente para a cama, onde Edward estava segundos atrás, e finalmente ergo a cabeça e encaro meus medos, meu focinho contrai ao sentir o cheiro da vulnerabilidade que Ayira expele de sua pele suada por baixo do pelo. Fico encarando ela por muito tempo, gravando cada machucado, cada osso saltado em sua coluna, cada tremor, para sempre em minha lembrança, para que eu me lembre que nem mesmo o ser mais forte pode fugir de um sentimento tão profundo quanto a dor emocional.

E me faço gravar tudo, por que só assim, posso reunir força o suficiente para fazer o que é preciso.

Eu me concentro naquilo que está enterrado dentro do meu coração, aquela força que cresceu dentro de mim. Uma responsabilidade que me foi dada de bom grado, mas que também precisei lutar por.

Eu puxo isso de dentro, como fiz tantas vezes, canalizando o poder por todo meu corpo, crescendo de dentro para fora, se manifestando de forma física enquanto imponho isso para frente, sobre ela, cada onda se desprendendo para ela, como uma presença espiritual, um zumbido cantando em meu peito enquanto eu assisto um fantasma tremer.

E não funciona é claro, pois apesar de tudo, ela ainda consegue resistir, e mesmo usando a minha maior vantagem, não consigo fazer ela voltar a forma humana, minha invocação não é forte o suficiente para fazer ela ceder. O que remanesce de seu poder parece formar um domo ao seu redor, impedindo que qualquer coisa penetre, eu posso sentir isso fisicamente, cada onda do meu poder voltando, se retirando em desistência.

Me sentindo derrotado eu tento uma última coisa, na esperança de conseguir tocar o que ainda remanesce dela, sua consciência.

Ayira... me escute...

Tento inutilmente falar com ela pela ligação da alcateia, mas nem isso eu posso.

Ela não pode responder, não pode escutar.

É como se estivesse ausente, perdida para sempre.

— Ela não escuta ninguém, não reconhece ninguém.

Edward apenas afirma cada pensamento na minha cabeça, sua voz parece lutar contra a derrota, mas eu sei, que não existe mais nada que possamos fazer.

Frustrado eu volto para o banheiro, onde me transforma de volta, transtornado com o vazio que senti depois de tentar falar com ela, e depois de me vestir rapidamente eu volta para o quarto apenas para encarar a casca vazia que é o lobo que está a sua frente.

E eu busco, em meio a cada respiração, eu busco pela criança que conheci.

— Eu deveria ter vindo antes, mas Seth também precisava de ajuda, foi difícil mantê-lo longe.

É como um gatilho, assim que o nome sai da minha boca ela reage. O lobo começa a tremer e a ganir, e é como assistir um pesadelo, a forma como ela se contorce e tenta se desprender de algo.

— Outro episódio?

Os braços de Alice seguram o corpo frágil contra a cama, seus olhos brilham apavorados quando ela assente com a cabeça.

— Ela responder a Jacob não significa que não pode responder a você também, ela o admira e respeita Sam, o reconhece como o alfa que é.

Saber quem ele é não minimiza a minha reação quando Jasper simplesmente se materializa ao meu lado, a surpresa sacode o meu corpo, e eu franzo o cenho irritado com a falta de atenção do meu instinto.

— Não vai funcionar.

— Tente mais uma vez, tente agora.

Ele não parece ele mesmo. Talvez por eu não o conhecer tão bem, ou pela gravidade da situação, mas essa pessoa, esse homem ao meu lado, cheio de sentimento angustiado e esperançoso, não parece em nada o vampiro silencioso que eu tinha visto tantas vezes.

— Isso pode piorar tudo...

— Já está pior – ele aponta para ela, e eu olho seu corpo lutar uma luta mental – ela já está sofrendo, e se não continuarmos tentando, nunca saberemos se existe uma possibilidade de acabar com isso.

Ele soa frustrado, como se estivesse enciumado por existir uma possibilidade de eu conseguir e ele não, a sua impotência como protetor é como uma derrota, e perder para alguém destrói toda sua estabilidade.

Passo minha mão por entre o cabelo em frustração, e olho para o corpo de Ayira colapsando antes de encarar Jasper.

— Não sei se consigo sozinho.

Seu queixo se ergue orgulhoso, mas em seus olhos eu posso ver a verdade do seu medo, com a mesma intensidade que eu vejo brilhar a sua confiança em mim. Ele está depositando toda sua esperança numa última tentativa, confiando que eu vá conseguir, confiando a vida da sua filha em mim.

E então eu percebo isso, a verdade.

Nós somos os pais verdadeiros de Aira, os primeiros homens que ela pode confiar de verdade, depositando todo o seu amor e crença em nós, dividindo entre nós dois tudo o que ela acreditava, e juntos, nós somos mais, ambas as metades de sua vida dividida, de quem ela é, um encaixe para apenas um universo, onde não existe distinção entre vampiro ou lobisomem, apenas irmãos, fogo e gelo.

— Não vai fazer só, eu vou estar aqui, nós dois vamos fazer isso juntos.

— Certo.

Jasper troca um olhar com Edward, e ele faz um aceno para que os outros saiam do quarto, Bella espera por Alice, que parece lutar contra si para deixar Ayira, mas ela se levanta, e segura as mãos de Bella quando as duas saem.

Olho mais uma vez para Jasper e ele assente sóbrio, sem hesitar eu retiro minhas roupas e me transformo imediatamente, meu corpo vibrando com a força que sinto, meu lobo ascendendo mais uma vez acima de Ayira, forçando e lutando para puxar ela para fora do seu lobo.

Meu sangue parece retumbar em meus ouvidos como tambores, e longe, na floresta eu posso sentir essa canção soar no sangue dos meus irmãos quando um por um, cada loba da alcateia ergue sua cabeça e uiva em resposta, me fortalecendo, dando forçar através da ligação.

Ao meu lado Jasper usa sua influência, aumentando as reações de Ayira, seu corpo convulsionando num ataque violento, quase como uma convulsão.

— Quase posso sentir ela.

A voz de Edward parece apenas um sussurro, mas eu me concentro novamente e continuo a expelir cada onda de poder, até que eu possa derrubar cada muro e assim o vampiro consiga entrar na cabeça de Ayira.

— Eu consigo ver... – a voz de Edward apenas some, e eu sinto meu poder falhar quando a vontade de olhar para o vampiro fisga em meu cérebro – Não posso escutar ela, mas consigo ver.

O que você vê? Onde ela está? O que está acontecendo? Ela ainda está viva? O que é isso?

Não sou apenas mais eu, sou toda a alcateia, cada presença espiritual se manifestando em minha cabeça, se abrindo para um estranho quando eu tento me comunicar, não consigo impedir que a minha mente dardeja perguntas desenfreadas em meio ao poder crescente, e eu sei que Edward pode entender, então não tento refrear o pensamento caótico quando sinto a fúria da alcateia ao ser revelada dessa forma.

— Tempestade e escuridão, eu vejo suas barreiras construídas através de buracos vazios, escondendo seus reais pensamentos – ele rosna quando percebe algo e se interrompe – ela está presa nas próprias lembranças, em pesadelos.

Meu lobo ladra e se sacode, quando minha paciência finalmente explode, e sem pestanejar eu tomo uma decisão, pois não posso mais ver esse sofrimento, não vou tomar essa culpa e não vou deixar Ayira se afogar em seus próprios medos.

Só existe uma única solução.

Quando saio em disparada pelo quarto eles não me impedem, saio da casa tão transtornada que mal posso enxergar, e só consigo saber onde estou quando eles finalmente se juntam a minha corrida, seus corpos acompanhando o meu desespero, me seguindo através da floresta, toda a alcateia se une, numa corrida contra o tempo.

E eu só paro quando finalmente o vejo, parado no meio do caminho, seu corpo tenso tremendo prestes a se transformar.

E eu paro, meu sangue cantando, incendiando através do meu corpo.

Eu ergo minha cabeça e finalmente canto junto, cada lobo se unindo a minha canção.

Seth

Fogo.

É tudo o que sinto enquanto corro, suor queimando minha pele enquanto atravesso a floresta.

E apenas um pensamento me move: Ayira.

Mais tempo eu teria tempo para pensar naquele momento, o momento exato que a Sam e toda a alcateia veio ao meu encontro, mas eu sabia, antes mesmo de eles me encontrarem, eu senti, o exato momento em que ela finalmente me chamou.

Seth...

Era um chamado, uma súplica e um pedido de socorro, apenas uma palavra, meu nome, e então ela se fora, e eu sabia o que fazer.

Quando os lobos pararam em frente a minha casa eu já tinha corrido para fora e arrancado a minha camisa, e assim que eles começaram a uivar, eu corri.

Nada teria me preparado para aquele momento, para estar enfim com ela depois de toda a tortura das ultimas semanas. Então quando eu parei na frente da casa, mal registrei quando Edward abriu a porta, apenas entrei e comecei a subir as escadas até chegar ao quarto dela.

Não me importei com a ausência dos Cullen, não reparei em seu corpo sozinho sobre a cama, ou o frágil estado de saúde em que ela se encontrava, apenas parei a sua frente e esperei por aquela sensação.

Ela não veio.

E isso me faz fraquejar, meu corpo cedendo em fraqueza quando meus joelhos atingem o chão e eu ofego em desespero em busca dela.

Não consigo sentir sua presença, ou sequer nossa ligação, eu só sinto vazio e sofrimento.

Meu coração dói, como se estivesse sendo esmagado.

— Me perdoe, deveria ter vindo antes, deveria ter lutado até não definhar... se eu tivesse vindo mais cedo, então não existiria esse abismo entre nós agora.

Eu ainda posso sentir isso queimar dentro de mim. Cada sentimento gritando para que eu faça algo, e não posso controlar a forma como me sinto, sei que não devo, mas eu apenas quero mais, quero ser capaz de salvar ela.

Ela é a escolhida...

Quando você vê a pessoa, tudo muda, não é mais a gravidade que te segura no planeta... é ela.

Nada mais importa, você faria qualquer coisa, seria qualquer coisa por ela.

Um amigo, um irmão, um protetor, um amante...

 Ela está sofrendo, toda essa dor que eu sinto ao meu redor, me sufocando, doendo em meu coração, está tudo vindo dela, do sofrimento que ela mesma está se impondo. Agora mais do que nunca, eu preciso ser mais, preciso ignorar todos os meus sentimentos e controlar o meu próprio sentimento, para ser o que ela precisa que eu seja.

Um irmão e um amigo.

Eu estendo minhas mãos humanas e penso em todas as vezes que ela foi capaz de me tocar, e sei que isso só é possível quando eu sou lobo, só assim ela é capaz de se sentir segura para ter contato físico comigo. Então, se ela pode, eu também posso, é uma via de mão dupla, e apesar de querer muito, eu hesito mais um pouco, meus olhos bebendo da branquidão do seu pelo, a forma afiada em que suas orelhas macias de curvam.

Eu me aproximo da cama, perto o suficiente para sentir seu hálito quente quando minha mão descansa no colchão ao lado de sua cabeça.

E impelido pela necessidade de sentir ela, inspiro profundamente, ignorando a dor e sofrimento, absorvendo apenas a sua essência, aquilo que faz dela vampira, loba e humana, que a faz ser ela mesma, Ayira.

Seu cheiro preenche meus pulmões, me afogando nela, cada nota suave e intensa do seu cheiro, fazendo meu coração leve, meus batimentos lentos e calmos.

Ela tem cheiro de dama da noite, uma flor que conheci uma vez numa visita escolar ao jardim botânico, mas também cheirava a cada raio de sol, quente e energizante, e a madeira queimada na lareira em noites frias de nevasca.

Mas acima de tudo, ela cheirava à esperança.

É como se ela tivesse sido feita apenas para mim.

Personificando todas as coisas boas, tudo que me fazia feliz nessa vida.

É quase imperceptível, mas eu sinto a mudança assim que estou ao seu lado, se manifesta na forma como seu lobo respira, mais profundo, se esforçando. Mas é só isso, seus olhos continuam fechados, sua consciência ausente, apenas uma casca de si mesma, na forma de uma criatura bela e mitológica.

 - Você é tão preciosa...

Eu começo a falar e para envergonhado, não sei o que eu poderia dizer que fosse capaz de fazer ela me escutar, e sequer tinha conseguido raciocinar nas últimas semanas, não o suficiente para planejar o que dizer quando estivesse perto dela novamente.

Minhas mãos se crispam sobre a fronha de sua cama, buscando sentir algo sólido para me segurar, pois há esse sentimento de queda no meu peito, meus olhos se fechando quando prendo a respiração, apenas para manter a sensação dela mais tempo dentro de mim.

Então me levanto e me afasto dela, sento na cadeira giratória perto da escrivaninha e apoio meus braços nas pernas tentando me sentir à vontade o suficiente para tentar falar.

Sangue sobe pelo meu rosto quando a vergonha supera a ansiedade.

Apenas sigo meu coração e começo a falar.

— Eu ainda me lembro da primeira vez que me transformei, como se fosse ontem – empurro uma mecha de cabelo para trás da orelha e não consigo impedir um sorriso ao lembrar das circunstâncias da minha primeira transformação – Eu era apenas um garoto, ignorante desse mundo sobrenatural que existia por trás das histórias que os garotos da tribo gostavam de usar para assustar os mais novos.

Ele se lembra de como tinha sido na escola da reserva, quando as coisas começaram a ficar estranhas, de repente Leah começara a chorar por todos os cantos, tratando todos de forma ruim, enquanto Sam só se distanciava cada vez mais, sua presença já intimidadora tinha se tornado mais aguda e assustadora de repente, ele se isolava de todos. Naquela época eu pensava que tudo aquilo era apenas a máxima de um drama adolescente, pois sua irmã estava sofrendo com um término de namoro, mas era mais que isso.

Ele teve que ver quando cada um dos garotos começou a largar a escola, formando uma gangue comandada por Sam, que era o líder. E então tinha Paul, sempre explosivo, tentando amedrontar os garotos mais jovens, impondo medo com as histórias antigas da tribo.

Eu era alheio a isso, estava mais preocupada com minha irmã, ficando doente enquanto Sam começava um namoro com nossa prima Emily.

E então tudo começou a desmoronar quando meu pai teve um ataque cardíaco.

— Meu pai era um homem bom, esse era o único pensamento na minha cabeça o tempo todo, em como tinha sido injusto que ele, um homem bondoso e gentil, tivesse sido levado da nossa família...

Meus olhos ardem, não posso impedir que a dor me empurre como uma onda forte do mar, e como se já não bastasse toda a dor que vem de Ayira, ainda sou obrigada a sentir o que eu senti no momento em que soubemos que meu pai não tinha resistido.

— E apesar de tudo, de toda a tragédia, ser surpreendido com o dom... Foi como se o universo quisesse me recompensar depois de tirar uma das coisas mais importantes da minha vida.

Não tinha sido tão bom assim, eu só tinha descoberto o motivo do ataque cardíaco logo depois de me transformar, eles disseram que era para o meu próprio bem, eu não passava de uma criança, já era difícil ter que lidar com toda a informação de ser um lobo. Saber que a transformação de Leah, fora o que desencadeará o ataque cardíaco do meu pai, tinha sido uma tristeza infinita, mas não por ela ter causado, não tinha sido assim, era triste porque ela se culparia o resto da vida, por ter causado a morte do nosso pai.

Mesmo depois de tantos anos, ela ainda se ressentia, e mesmo que mamãe e eu garantimos que não a culpamos, ainda sim Leah se torturava.

— A vida me tirou meu pai, e então me deu esse presente mágico, um que eu aceitei com grande felicidade, pois quando você é adolescente, tudo é muito intenso, cada acontecimento te torna o centro do mundo.

Eu parei e olhei para todo o seu quarto, percebendo pela primeira vez que esse era o seu lar, o lugar onde ela passava a maior parte do tempo, que personificava a sua personalidade e a forma como via o mundo. No entanto, eu não fazia ideia de quem Ayira era, cortinas claras, cores de parede ou objetos materiais mundanos, essas coisas não iam me mostrar quem ela é.

Eu precisava de mais tempo, precisava ficar perto dela, entrar na sua vida aos poucos, só assim eu poderia prestar atenção em cada mania, cada trejeito de sua fala, a forma como ela agia ao redor da família, dos amigos...

Amigos, ela já tinha até amigos.

Sam dissera que Ayira não tinha tido problemas em fazer amigos na escola, na verdade, o que ele quis dizer foi que era impossível uma pessoa não querer estar perto dela, e não era apenas por causa de sua aparência exótica e chamativa, ele disse que era porque ela era como a lua em meio a escuridão da noite, atraindo vagalumes com sua luz brilhante, atraindo todos para a sua pureza infinita.

Num primeiro momento eu tinha me sentido enciumado, mas então não existia mais sentimento contraditório, pois eu queria que ela fosse amada, não só pelos Cullen e pela tribo, eu queria que ela pudesse ter pessoas em sua vida, para que não se sentisse sozinha nunca mais. Isso não impedia meu sentimento de exclusão, ainda me sentia jogado de escanteio, e não era algo que ela fizesse de propósito, afinal, se conquistar sua confiança não fosse tão difícil, não valeria a pena, eu queria ser digno dela, acima de tudo.

— Eu lutei batalhas, tantas, e tão jovem, sempre protegendo pessoas com quem me importava, a maioria delas ao lado da família Cullen, mais de uma vez, e não foi apenas força e morte, também existiram lutas emocionais, lutas onde o movimento da vitória era a verdade, e não quem morria e quem vivia. Acho que nunca foi sobre mim. Não como agora.

Desde que eu tinha conhecido Ayira, desde o nosso imprinting, eu tinha plena noção de que em algum momento, existiria a possibilidade de haver guerra novamente, mas no momento, as únicas batalhas que precisávamos travar, eram as que envolviam nossas famílias, e principalmente, nós mesmos.

Não foi difícil assim, para mim.

Ser aceito pelo mundo não tinha sido problema, minha mãe sempre se gabara com as amigas sobre minhas habilidades sociais, ela gostava de me chamar de “sua borboletinha social” pois eu nunca tinha falhado em fazer as pessoas gostarem de mim.

Não era atoa que eu vinha sofrendo tanto ao tentar me aproximar dela, eu nunca tinha precisado me esforçar para fazer alguém gostar de mim.

Talvez esse foi o meu erro, me esforçar tanto.

Depois do julgamento com os Volturi, tudo tinha seguido seu rumo, não existiam mais transformações na alcateia, a família de Edward estava finalmente protegida, e todos puderam assistir Renesmee crescer saudável e feliz, com Jacob ao seu lado para segurar sua mão em cada fase.

Eu assisti o amor deles crescer, e me senti imensamente feliz por meu irmão, depois de tudo, Jacob merecia um final feliz.

Eu não me importei por ser um dos poucos dos membros da alcateia que ainda não tinham passado pela experiência do imprinting, eu e Liah tínhamos isso em comum ao menos, mas eu não sofria como ela por não ter encontrado a minha alma gêmea.

Eu já tinha me apaixonado antes, e fora doce e inofensivo, nunca durando mais que o suficiente, mas não passavam disso, paixões passageiras, nunca um amor duradouro.

O único vazio que me afligia constantemente, era tentar me prender a normalidade, por muito tempo eu não soube como viver sem lutar, sem estar sempre caçando vampiros desgarrados e protegendo a humanidade.

Puxo o elástico que prende meu cabelo e brinco com ele entre meus dedos, o movimento distraindo minha atenção para longe dela por um momento.

— De repente, a vida finalmente voltou ao normal, e eu nem sabia mais qual era a sensação, eu não precisava mais seguir uma pessoa, ou obedecer ordens, não precisava caçar vampiros do mal e nem proteger a humanidade. Era hora de lutar por mim. Fiz escolhas que me afastaram do meu lar, decidi que meu novo objetivo era concluir uma graduação – um sorriso se racha em meus lábios quando comparo a vida adulta com a minha adolescência conturbada - faculdade não é tão emocionante quanto lutar contra recém-criados. Assim que entrei para a faculdade, tive que aprender a conviver com a saudade constante, da minha família e casa. Eu não tinha uma razão maior para viver, só o mesmo fardo que qualquer outra pessoa carrega na vida, que é basicamente crescer, viver e morrer... claro que tinha os estudos e o trabalho no meio, mas eu me dei bem nos dois sem muito esforço. Minha irmã gosta de ser irônica sobre o fato de eu ter me sucedido como um humano melhor do que um humano, ela nunca deixa passar a coisa do lobisomem.

Eu segui o mesmo rio por muito tempo, apenas deixando a corrente me levar, nunca sendo surpreendido por nada, só esperando cada coisa acontecer naturalmente, até Ayira chegar.

— A verdade é que eu precisava me agarrar a algo, e foi mais fácil apenas seguir a corrente.

Eu não esperava por aquilo e talvez por isso o momento tenha sido tão esmagador.

Tinha planejado passar o feriado com minha família com meses de antecedência, já fazia muito tempo que eu não ia visitar eles, estava tão perto da graduação, apenas um ano e meio e eu finalmente teria minha especialização em mãos, e assim poderia voltar para casa e fazer o que eu amava, com o bônus de uma boa remuneração é claro.

Minhas malas ainda nem estavam prontas, minha intenção era terminar e apenas pegar a estrada quando saí da última aula e recebi a ligação de Sam.

— Não é que eu não esteja feliz com esse acontecimento inusitado, mas caramba Sam!

Do outro lado da linha um bufo rude soou.

— Você poderia apenas atender como uma pessoa normal, ao invés do estardalhaço de sempre, me encorajaria a ligar mais vezes.

Joguei a cabeça para trás e ri com tanta força que os alunos ao redor começaram a reparar. Isso não me impede, pois assim que olhei para as pessoas ao redor, vi elas corresponderem ao meu sorriso, como se soubesse a piada.

— Não seja ranzinza velhote.

— Respeito Seth.

Sam não era o meu alfa desde o rompimento, e mesmo que eu seguisse Jacob, ainda me sentia impelido a obedecer Sam toda vez que visitava Forks, afinal, ela ainda era o alfa do território, e Jacob não estava lá para competir pelo trono.

— Apenas aceite, você está se transformando em um velho ranzinza.

Seu suspiro cansado só acentuou meu comentário, meu sorriso estava prestes a rasgar meu rosto no meio.

— E você vai ser um moleque atrevido até o final da vida.

Ele tinha razão, eu sempre seria um brincalhão pois não resistia, eu precisava manter as pessoas rindo ao meu redor, felicidade era o meu dom, uma expressão triste sempre me faria ficar desconfortável.

— Como você está? Emily já decidiu que não aguenta mais o seu humor...

Ele me cortou no meio da frase, sua voz era séria, grave.

— Você está vindo para casa?

Quando Sam usava aquela voz, isso só significava uma coisa: problemas em casa.

Eu parei assim que encontrei minha motocicleta, apenas parei e prestei atenção.

— O que aconteceu?

Depois de tanto tempo, não pude impedir a sensação de excitação com a possibilidade de existir algo maior acontecendo, algo que exigisse que eu começasse a correr novamente, a ser apenas lobo.

— Não aconteceu nada, estão todos bens, nós estamos bem.

— Por que o suspense então?

— Estou reunindo o conselho, preciso contar algo para todos.

— Ok... – jogo a chave da motocicleta para cima e a pego, repetindo o movimento, meus olhos presos no estacionamento cada vez mais vazio – você não vai me dar nenhuma pista, não é?

— Quando você parte?

— Assim que amanhecer.

— Venha hoje ainda.

Sam não era do tipo paternal, na verdade, ele tinha péssimas habilidades nesse quesito, mas não quis cutucar a ferida, não quando eu sabia o porquê dele não se preocupar com minha segurança ou capacidade de me manter em cima de uma moto por horas.

Olhei para o meu relógio de pulso e suspirei.

Passava das três, eram apenas três horas de viagem de Seattle até Forks, normalmente eu seria capaz de fazer ela em duas horas, mas eu não estava afim de correr, meu plano era ter uma boa noite de sono depois de ter estudado o dia todo e então quando amanhecesse eu partiria, chegando em casa a tempo do almoço, sem correria, sem estresse.

— Quando começa a assembleia?

Mais um bufo, Sam não gostava de formalidades.

— Esteja aqui às sete e meia.

— Minha mãe vai ficar irada com você.

Ele desligou imediatamente, este era Sam, bruto e desapegado.

Eu apenas fiz o que ele queria, como sempre, essa era uma coisa que eu era muito bom também, obediência.

Assim que entrei na reserva foi como se nunca tivesse saído, a floresta me recebeu com um chamado que fez meus ossos zumbirem, a ânsia para me transformar era tão grande que canalizei toda ao acelerar a moto, o ronco ecoando através das árvores, não chegava aos pés da verdadeira sensação de correr, mas era o suficiente.

Assim que parei escutei o grito de Leah.

— Eu não acredito, seu pirralho!

Mal consegui descer da moto e ela já estava em cima de mim.

Abracei seu corpo, tirando ela do chão eu girei ao redor rindo do seu entusiasmo nada comum, contagiada pela minha alegria ela não se reprimiu e riu junto.

Minha mãe e Sam vinham logo atrás.

Quando coloquei Leah no chão, procurei pelos braços da minha mãe instantaneamente, dando um beijo demorado em seu rosto, absorvendo a essência reconfortante do seu cheiro familiar, me afundando em seu abraço protetor.

— Por que você não disse que viria? Eu poderia ter te buscado.

Leah parecia muito eloquente, como se algo estivesse prestes a pular de dentro dela.

— E perder todas as expressões de deleite em ver meu lindo rosto?!

Sam ficou parado nos observando até que eu me soltasse da minha mãe.

— Olha só se não é o garoto prodígio.

Sua expressão velada não o ajudava na construção da piada, mas deixei isso passar quando ele me abraçou de forma bruta e masculina, com direito a tapinhas e tudo.

— Você nunca se cansa de me zoar, não é? Eu já tenho vinte e quatro seu velhote!

Quando se afastou ele me encarou de forma inquieta, como se quisesse dizer algo diferente do que disse.

— Velhos hábitos nunca morrem, venha.

Eu os segui em direção a fogueira, e pareceu como sempre, nada tinha mudado, era apenas uma reunião qualquer.

Estava tão envolvido na sensação de familiaridade, que só percebi o cheiro de um lobo estranho quando já estava quase em cima da fogueiro onde o círculo se reunia, a tensão no ar era palpável, e quando Sam finalmente saiu da minha frente indo em direção a algo foi que finalmente a vi.

Foi como se algo estivesse me chamando.

Olhe para cima Seth... apenas olhe....

Não tive tempo de assimilar, a sensação foi repentina, avassaladora, me fazendo perder o fôlego.

Meu corpo pareceu parar de funcionar assim que meus olhos a encontraram.

O sentimento esmagador de pisar em terra firme quase me fez cair sobre os joelhos, era como se eu tivesse sido suspenso no ar por tanto tempo, que quando toquei a terra não tinha estabilidade para ficar de pé.

Seus olhos, um azul e um castanho, me sugaram para um lugar novo.

É como a gravidade, toda a força dela muda

De repente não é mais a terra que te prende

Você faria qualquer coisa, seria qualquer coisa que ela precisasse

Um amigo, um irmão, um protetor, um amante...

É devastador, um novo mundo se abre, como se tudo que eu acreditava não fosse real até aquele momento, nada mais importante sem a presença dela, a loba estranha parada a minha frente agora possuía a minha alma, meu ar, meus olhos e meu coração.

Só existia ela, finalmente.

Minha respiração finalmente se liberta, e eu nem sequer sabia que estava prendendo ela durante os poucos minutos que fui sugado de volta para o dia que a conheci.

— Acho que nunca me senti desestabilizado na vida, não até te ver... foi como se eu estivesse vivendo errado o tempo todo, e só quando te vi que finalmente me senti alinhado a minha vida.

Eu não tinha visto apenas uma loba branca na minha frente, quando aconteceu, eu fui capaz de ver tudo, eu vi todos os acontecimentos importantes da sua vida, toda a dor e cada pequena felicidade que ela conheceu, vi seu rosto evoluir de um bebe recém nascido até o que era agora, uma jovem linda, com a pele de neve salpicada por ciscos de terra, cabelos como as asas de corvos e um olhar tão puro quanto o mais brilhantes dos milagres.

— Eu vivi toda uma vida, apenas para descobrir que na verdade ela nunca tinha começado. Você mudou tudo, eu nunca estive tão incerto sobre a vida quanto neste momento, e toda vez que vejo você lutar, eu sofro junto.

Foi como se o pedaço que faltava da minha vida finalmente se encaixasse no meu coração, fazendo com que tudo que aconteceu e o que estava acontecendo tivessem um significado, pois tudo tinha me levado para aquele momento... para aquela menina parada numa armadilha de lobos.

Ayira

A sua voz é como uma corda, e ela estava sendo jogada em minha direção, descendo lentamente, cada vez mais perto, deslizando até a minha prisão de escuridão e dor.

— Eu sei que não demonstro da mesma forma, mas às vezes fico tão confuso quanto você... é difícil colocar na sua cabeça que algo maior, como Deus ou o destino escolheu uma única pessoa para dar significado a toda sua existência. Eu posso sentir esse laço entre nós, mas isso não é o suficiente para saber quem você é... estou tão perdido quanto você, tão confuso quanto... e se continuarmos assim, nunca chegaremos a lugar algum.

Eu posso ouvir a incerteza em sua voz, a incerteza dos seus sentimentos, isso me surpreende, de uma forma quieta e prazerosa, pois saber que ele está tão confuso quanto eu em relação aos seus sentimentos, me faz sentir encaixar, neste momento, nesta realidade. Tudo que ele quer dizer é que não me ama, não ainda, mas que também não está distante disso.

— Eu estou esperando a mais tempo Ayira, e talvez seja por isso que deixei a porta aberta para você, mas não estou demandando nada... só quero que você saiba que eu continuarei esperando, até que você se sinta pronta... ou não.

Suas palavras ficam suspensas no ar enquanto o silêncio desliza simples e confortável no ar entre nós, isso é claro não é o suficiente para disfarçar o peso da sua derrota por ser incapaz de me ajudar. Através dos olhos da besta eu observo da escuridão, seus doces olhos escuros encarando as próprias mãos, inconsciente da minha atenção.

Com um estalo de consciência, eu perco que não estou mais suspensa na escuridão, e posso sentir, um formigamento ligeiro e cada vez mais crescente, posso sentir minha carne, meus ossos, e posso piscar meus olhos... meus olhos de lobo.

Me afundo desesperadamente nesse breve momento de lucidez e o uso com todas as forças, sei que ele não pode escutar meus pensamentos, mas a besta pode se comunicar, da forma dela, da forma que agora eu controlo, ganindo em agonia, pedindo socorro.

Seth...

Ele me encara quando faço barulho, e percebe quase instantaneamente que estou prestes a ter mais um episódio, pois o som que sai do meu peito, é doloroso e interminável.

Seth... me ajude... Seth...

E lá está o milagre pelo qual eu estive esperando dolorosamente, uma lufada de ar limpo, soprando meus cabelos, trazendo um fio de luz para a escuridão, e eu o escuto, alto e claro, na minha cabeça.

Eu quero te ajudar...

Meu choro é de agonia, e escorre de dentro da escuridão para fora da besta, o rosto de Seth se ergue, seu olhar agudo sobre a cena da loba se retorcendo sob a cama, sua tez se franzindo, como se ele pudesse sentir o que estou sentindo, minha luta.

Sem pestanejar ele age, apenas se deixando levar pelo instinto, pelo seu desejo desesperado de poder ajudar, para tomar toda a dor para si.

Ele me toca.

E aqui estamos novamente, na raiz de toda essa situação, voltando ao começo.

Quando ele toca a cabeça da besta ganha uma mordida na mão imediatamente, é quando eu percebo que meu controle está escorregando, que estou sendo arrastada de volta para o limbo. Isso não impede Seth de continuar tentando, com uma expressão firme ele rosna de volta e fecha a mão sobre uma porção farta de pelo no pescoço da besta, tentando alcançar a pele.

Resistindo a besta puxa e arranha, tentando se livrar do agarre, ágil e rápido Seth arrasta ela de seu monte de tecidos destroçados e a puxa para si, em direção ao seus braços, ganindo e chiando a besta luta contra seu agarre de ferro, mas ele é firme e persistente, e continua puxando ela em direção ao seu peito.

A besta está presa entre seus braços, a cabeça gigante de lobo contra o peito de Seth, se esquivando e afundando as patas no colchão, ele não vai soltar, suas mas são fortes, mas não agressivas, ele mantém sua cabeça contra o peito, suas mãos massageando o pelo denso.

Presa e incapacitada, a besta para e eu posso sentir mais um sopro de luz.

Tum-tum... tum-tum... tum-tum...

Eu posso escutar ele, posso escutar seu coração, as batidas frenéticas e desesperadas... ele está com medo, medo por si, medo por ela, pelos dois.

Me abrace...

E é como se ele pudesse escutar o pedido.

— Você nunca vai precisar me pedir... eu sempre vou te abraçar.

A batida do meu coração parece ecoar no dele, em sincronia, e por isso eu me concentro nisso, até que possa sentir a onda de letargia amolecer cada membro, o corpo da besta enfraquecendo com a força da proteção de Seth. E eu sinto novamente, seus braços ao meu redor, as mãos se afundando na minha pele através do pelo branco, o carinho suave das pontas de seus dedos nas minhas orelhas e então, na extensão da minha coluna, fazendo pressão, relaxando os músculos tensos, acalmando.

Eu sempre vou proteger você... até de você mesma, se for preciso.

Ele me abraça, e é um abraço infinito, cheio de suporte e força, e eu posso sentir isso na minha alma, no meu coração, restabelecendo cada parte que esteja se desprendendo do meu ser. Cada pedaço começa a voltar ao seu lugar, como se eu estivesse reconstruindo novamente, eu respiro fundo, cada membro do meu corpo amolecendo, o calor do corpo de Seth aquiesce o que antes esteve frio, sua força preenchendo o que antes esteve vazio.

E ele está aqui, o tempo todo, como se não fosse embora jamais.

A besta finalmente sede, e eu mal posso suspirar antes que minha consciência caia em um sono profundo e reparador.

Seus braços são meu porto seguro, me acolhendo e aclamando em meio a tempestade de escuridão que rodopia ao meu redor, sendo sugada por algo mais forte, caloroso e brilhante, como a luz do sol num dia quente e ensolarado, a luz consome toda a escuridão que estivera me aprisionando, e só existe o seu abraço, que me segura o tempo todo.

Eu acordo com a sensação da brisa soprando sobre o meu rosto, fios de cabelo dançando e provocando cócegas nas minhas bochechas.

E toda vez que eu abro os olhos, nos breves momentos de consciência, eu vejo você, ainda aqui, ainda me esperando, como se esse fosse o único lugar que você quisesse estar, para sempre.

A sensação de ser dona do meu corpo novamente parece ilusória, mas de olhos fechados eu me deixo sentir cada membro, quente e preguiçoso, até mexer os dedos dos pés, sentindo a maciez do edredom que cobre meu corpo.

De garras e pelos, eu renasço, surgindo de toda a dor e sofrimento, minha pele queimando em cada lambida maliciosa de ar frio. Eu sou uma recém-nascida novamente, sendo exposta ao mundo em minha nudez, obrigada a sentir pela primeira vez, a sensação deslizante do lençol quando você o envolve ao meu redor, alheio a minha pele nua, me zelando como um irmão lobo, como se pertencesse a sua alcateia.

Não faço ideia de quanto tempo eu estive dormindo, mas a sensação está aqui, me fazendo ter noção de que um tempo considerado se passou desde o momento em que eu voltei a ser eu mesma de novo. Só consigo me lembrar de algumas coisas, momentos que eu não sei dizer se foram reais ou apenas mais sonhos lúcidos.

E depois de sua vigília, você resisti, não me abandonando de forma alguma, apenas cedendo espaço o suficiente para as pessoas que me amam também terem sua vez para me proteger. E mesmo sabendo que não é proposital, eu choro a sua distância, mãos carinhosas deslizando tecido por minha pele, um choramingo dolorido queimando no meu peito, infinito até que não é mais, pois você volta, e me cobre novamente, fazendo dos seus braços a minha fortaleza, vigiando a vulnerabilidade do meu sono profundo.

Meus olhos se abrem apenas para encontrar luz cegante, fecho eles novamente para impedir a sensação de tontura que a luz provoca na minha cabeça. Está claro demais, o que indica que estamos apenas no começo do dia.

E eu te procuro a todo o momento, em busca do seu toque familiar, eu entrelaço minha mão a sua, segurando o lar perdido que achei no dia em que meus olhos encontraram os seus pela primeira vez. Terra molhada, chuva, fogo e vento. Lar.

E assim que tento abrir meus olhos novamente, a brisa sopra mais uma vez sobre o meu rosto, soprando uma calma sensação de adormecer, me puxando mais uma vez para o sono profundo, braços fantasmas me apertando contra uma muralha feita de calor e paz.

Só consigo acordar de vez quando meu corpo decide que é hora de atender todas as necessidades biológicas que estive ignorando. A sede queima na minha garganta e percebo que nunca senti tanto quanto naquele momento, a fome corroendo meu estômago, uma sensação voraz e oca. Procuro pelo relógio digital que fica no criado mudo e paraliso  ao ver a data brilhando na tela digital em tons fortes de azul.

Quatro dias, eu estive dormindo por quatro dias.

Meu corpo se espreguiça deliciosamente, cada osso estalando em sons reconfortantes, minha perna se deslizando pela fronha como se uma fratura nunca tivesse existido, a pele lisa e sensível que antes estivera esfolada e machucada, está tudo em seu lugar.

Ele está aqui...

O lobo está espalhado de forma desengonçada e pela metade na ponta da cama, sua forma desleixada refletindo toda a sua energia drenada por quatro dias, ele está dormindo, completamente inconsciente, mesmo em uma posição tão indigna.

O formigamento nas minhas bochechas me faz levantar os dedos até os lábios, encontrando meus dentes expostos.

E estou sorrindo.

Pela primeira vez, eu me sinto completamente bem, sem qualquer tipo de medo ou estresse, apenas sinto certo, como se não existisse mais nenhum receio.

Ele está aqui, e é certo.

Eu me levanto lentamente, observando o tempo todo o seu grande lobo, tento não fazer barulho algum para não perturbar o seu sono, mas assim que saio da cama e coloco meus pés no chão, sinto aquela sensação esmagadora de voltar a terra, e não consigo reprimir um suspiro.

Meus olhos se fecham em prazer, deixando a sensação percorrer meu sangue, até que chegue ao meu coração, batendo calmo e cheio de ternura. Respiro fundo para conter a explosão de sentimento, e olho mais uma vez na direção de Seth, tirando uma foto mental deste momento, registrando a forma como ele se sente seguro e a vontade perto de mim.

Ele está aqui, ainda está aqui.

Me levanto dessa vez sem medo, pois sei que ele está cansado demais para estar alerta, mas também sei que enquanto eu me sentir bem e segura, ele também se sentirá. Sigo para fora do meu quarto em direção a cozinha, pois é de lá que vem a movimentação, cada som se propagando pela casa de vidro, mais agitada do que nunca, um alarido de pessoas envolvidas numa única ação.

Paro no último degrau e respiro profundamente, deixando que cada um se assente novamente em meu coração, me lembrando de todas essas pessoas maravilhosas, que estiveram aqui o tempo todo, mês esperando.

Não são apenas os Cullen, eu posso sentir o cheiro de Sam, sua presença emburrada e seria observando enquanto uma brilhante Emily gira uma espátula num bol cheio de massa dourada, e também há Sue, com seu sorriso doce.

Estão todos no mesmo cômodo, lobos, vampiros e humanos, unidos por apenas uma coisa.

Eu.

Meu rosto cora profundamente, o estômago caindo em culpa ao perceber a situação que causei. E eles fingem estar alheios a minha presença, eu sei mais é claro, Esme cozinha ovos enquanto Carlisle tem uma conversa profunda com Sam, Sue e Bella estão sentadas enquanto Emily termina de bater uma massa. Emmett coa café fresco e Rosalie presta atenção em algo que Alice diz, Edward seguindo um raciocínio paralelo ao da irmã.

E há Jasper.

Jasper que sentado ao lado da parceira é o único a me encarar, sua expressão tão vazia quanto sempre foi, e talvez essa expressão desprovida de emoções seja o motivo de eu quebrar, desamparada eu sinto meus olhos queimarem, a garganta se fechando.

— Eu sinto tanto.

Todos param o que estão fazendo para olhar na minha direção, encolho com a onda aterradora de constrangimento que os olhares preocupados causam, baixando a cabeça eu encaro os meus pés em derrota, uma lágrima solitária deslizando por meu nariz quando eu sufoco um soluço.

Ele se levanta da cadeira e se aproxima, ficando na minha frente, observando a minha dor, o sussurro de seu poder puxando tudo para fora, influenciando meus sentimentos a ficarem cada vez mais intensos, até que eu não possa mais lutar contra isso, deixando um soluço fraco e infantil fugir dos meus lábios, meus olhos se derramando em um milhão de estrelas caídas.

E eu choro, choro como nunca chorei na vida, como uma criança desamparada que finalmente se libertou.

Meu corpo todo treme descontrolado quando seus braços se enrolam a minha volta, o gesto afetuoso é novo, para nós dois, e no começo é estranho, como se ele não soubesse o que está fazendo, tão duro como uma pedra, seu corpo tenso tentando se ajustar a bagunça trêmula e soluçante que eu sou.

Não tento parar o impulso, neste momento tudo o que eu quero é ser confortada, e por isso ergo meus braços e os enrolo ao redor da sua cintura. Tudo muda. O vampiro dá um suspiro que nunca precisou dar, ele o faz profundamente, como se estivesse segurando o ar a vida toda, seu corpo relaxar ao redor do meu, ficando mole, se ajustando, apertando seus braços ao meu redor, trazendo minha cabeça para o seu peito.

— Vai ficar tudo bem criança.

Ele deposita um beijo incerto no topo da minha cabeça, e então apoia o seu queixo em cima, apenas me deixando chorar, para que toda a angústia seja derramada, cada dor e cada sombra.

Eu estou despertando.


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Notas finais do capítulo

Sei que não é do meu feitio, mas como uma pessoa insegura e perfeccionista, eu vou pedir mesmo assim.
Me digam se ainda tem esperança sobre a fic, o que tem incomodado vocês, o que os deixa curiosos e quão animados vocês ainda estão.
Ah, eu também adoraria criticas para a melhora da história.
Até sexta-feira.



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