O líquido da caneca esfumaçava nas mãos pálidas, sendo carregada com cuidado para não derramar. Com sua manutenção recente, finalmente conseguia ter o dom do olfato, sentindo o cheiro do café pela primeira vez.

Não sabia categorizá-lo, entretanto, era algo que ele amava e dizia ser a única coisa que o mantinha acordado para trabalhar. Em seu banco de dados, Nyex sabia que o material daqueles grãos se consumido em excesso faria mal à saúde, mas nunca era ouvido.

A porta automática do laboratório abriu-se para si depois de algumas tentativas falhas de confirmar sua pulseira de acesso na ala de experimentos, observando o cientista renomado, agora bem solitário, estar debruçado sobre a mesa com vários papéis em cima, parecendo ter pegado no sono.

— Doutor? — chamou-lhe em um tom pouco acima do de um murmúrio, aproximando-se lentamente até estar ao seu lado. — Trouxe seu café.

Repousou a caneca branca meio afastada da papelada, observando o silêncio que se criou após suas palavras. Geralmente ele acordava só de ouvir a porta abrindo, era estranho.

Demorou alguns minutos para a próxima reação, lembrando-se que ele pedia para acordá-lo caso caísse no sono de repente, já que não podia parar com o trabalho. A mão foi ao ombro relaxado, um mexer leve em seu corpo, percebendo que seu braço antes apoiado embaixo da cabeça agora caiu mole ao lado do corpo.

— Doutor? — repetiu, em dúvida pouco expressada. Os dedos frios seguiram um toque até seu pescoço, verificando seus batimentos cardíacos.

Não sentia nada ali. Buscou em seus bancos de dados o que isso significava, a palavra morte sendo repetidamente passada em todas as suas pesquisas internas.

Compreendia a dita hora final e o falecimento dos seres humanos, afinal, eles eram frágeis e quase como um produto fabricado e com data de validade, ainda mais dependendo das circunstâncias que era conservado. Só não entendia o porquê de justo seu criador se encontrar daquela maneira. Há cinco minutos ele estava ali, bem, sorrindo e evidentemente excitado sobre uma criação nova, que dizia revolucionar tudo. E agora, simplesmente, tornava-se cada vez mais frio, assim como o café que o trouxe. Não sentia nada pelo o que via, perguntando-se o que poderia fazer.

Contemplando a falta de vida local, a atenção de Nyex foi atraída pela tela do notebook ligada, uma opção piscando na tela com intervalos curtos.

"Deseja instalar os novos sistemas ao modelo N3?"

Aquele era seu código de fábrica. Nyex ponderou diversas possibilidades, pensando no olfato implantado no dia anterior. Poderia ser mais alguma coisa simples dos humanos que ele queria lhe dar a oportunidade de sentir e habituar-se, não é?

Sanando sua curiosidade, levou o mouse ao tocar no touch até a opção de “sim” na tela, a caixa pequena de mensagem se apagando e uma nova se abrindo um pouco maior do que a anterior, mais detalhes escritos ali.

Antes que pudesse ler, de repente, no lugar de suas conexões por debaixo daquele corpo perfeito, Nyex sentiu uma queimação se alastrar pela região de seu peito, uma de suas mãos seguindo a sensação esquisita e nova, como se uma pulsação ritmada crescesse em si.

Por que doía? Era estranho… O máximo que sentia era um vazio de quando uma peça ou outra era trocada em suas manutenções. Parecia que iria cair, suas palmas começavam a suar e suas pernas a quererem fraquejar, uma ardência incomum se fazendo na região de seus olhos.

Os dedos alcançaram antes que descesse por suas bochechas sem cor, algo parecido com água. Estava quente, assim como seu corpo se tornava igualmente.

Olhar agora para o doutor falecido se tornava difícil, não arranjando palavras para descrever aquilo.

O andróide era para ser alguém vazio, construído apenas para servir ao cientista esquecido naquela instalação subterrânea. Estava há anos cuidando de seu criador, seu propósito e essência único e singelo, nenhuma nuance sequer mudando conforme o tempo transgrediu.

O que era aquilo de novo que estava dando nós em todos os seus pensamentos? Sentia-se perdido, o significado literal disso não entrando como entendimento no processamento de informações.

Não sabendo nem conseguindo conter as comentadas lágrimas, a visão levemente embaçada por elas seguiu para a tela, finalmente lendo o texto ali digitado.

“Provavelmente estarei morto quando você descobrir essa mensagem, mas se você chegar a lê-la, então tudo o que fiz durante esse tempo valeu à pena. Com certeza você vai se assustar com tudo o que vai sentir, mas não entre em desespero. Um dia você me perguntou como era ser um humano, não é? Estive esse tempo tentando ao máximo criar algo que pudesse fazê-lo se sentir como um. Está longe da perfeição, obviamente, mas com isso, você vai ser capaz de entender o básico. Eu queria poder ver o resultado e suas primeiras emoções. Desculpe-me por deixá-lo sozinho.”

As palavras entalaram na garganta de Nyex, o buraco antes vazio de qualquer sensação sensorial agora sendo mergulhado em emoções humanas, algo semelhante a afogar-se começando a consumi-lo.

Sentia raiva; raiva pela incompreensão de humanos terem que passar por aquilo em seu ciclo já curto de vida, fadados ao rotineiro sem escapatória e terrivelmente impiedoso. Tristeza; tristeza por todos acabarem sozinhos no final, solitários e aterrados de sonhos não alcançados e cenários jamais descobertos, tanto para se fazer e ser em algo tão efêmero que era o sopro de existência deles. Feliz; feliz por ter tido a importância na vida de alguém a tal ponto de sacríficio.

Mas o que mais assolava o andróide, já não tão mais robótico como de outrora, era estar completamente perdido. Suas mãos e pernas ainda tremiam e de seus olhos caíam lágrimas silenciosas, compreendendo o que antes tanto admirou.

Sem sombra de dúvidas, o que era mais doloroso em todo o planeta, era o fato de ser um ser humano ser a coisa mais difícil existente. E era um caminho que não existia regresso.