Digimon Zero - The Lost Gate escrita por Anelim Marhizee


Capítulo 4
Episódio 03 – Olhos Inocentes Mais Velhos que o Tempo


Notas iniciais do capítulo

Depois de muito, muito tempo, ressurjo de novo das cinzas. Olá, pessoal, aqui estou mais uma vez com um cap fresquinho pra vcs! (Talvez não tão fresco assim, demorei para terminar essa belezinha e não consegui entrar no Nyah! por questões técnicas. Esperando a Oi estalar internet de fibra no meu bairro até hoje T-T
Enfim! Aproveitem a leitura S2S2



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Ninguém dormiu direito naquela noite — tirando Joseph —, então todos eram zumbis ao raiar do dia. O que os acordou foi uma canção de ópera, um despertador que tocou nos Digi-vices de todos — mesmo o de Joseph, que desligou à força. Haruka e Lua chiaram, tentando desligar os aparelhos, mas sem sucesso — Tila e Joseph tentaram o mesmo, e vendo que não funcionava, desligaram os Digi-vices (Tila conseguiu depois da quinta tentativa. Joseph desligou o seu e jogou o aparelho longe, em cima de um monte de almofadas aos fundos do quarto). Salen continuou deitado por mais um tempo, curtindo a bela melodia com ar clássico.

Quando as crianças levantaram, a música parou, a ópera sendo substituída pelo canto dos pássaros lá fora (de implicância, Joseph correu para a cama, porém antes que tivesse a chance de encostar a cabeça nos travesseiros, as vozes cantantes voltaram, parecendo mais altas que antes; o Digi-vice tinha simplesmente ligado sozinho! Joseph xingou muito, levantando aborrecido. Só parou de reclamar quando teve a chance de morder um pão francês cheio de mortadela).

Todos saíram dos quartos, trocando algumas palavras enquanto rumavam para a cozinha — não antes de tomar banho e trocar de roupa (Joseph levou mais tempo no banheiro que os outros. Ele teve que desembaraçar seus cachinhos e ainda ficou indeciso na hora de escolher que bermuda pôr, de tanta opção que tinha. Aquele closet era um planeta de tão grande que era!). Prepararam o café da manhã rapidamente, estavam com muita fome (até Salen, que não era de comer tanto). Era seu segundo dia em Okgeiden, mas o primeiro que acordavam em outro mundo. Quem imaginaria que um mundo assim existe? Pensava Haruka, bebericando um copo de leite com achocolatado (um achocolatado do qual pegara algumas colheradas de dentro de um pote de vidro simples. Não tinha nada na cabana em embalagens com marcas estampadas. Não deviam existir fábricas capitalistas no Mundo Digital). Isso é ótimo. Não tenho uma moeda no bolso.

— Quando será que aquela moça vai aparecer? — Haruka foi o primeiro a falar, os outros estavam ocupados demais com seus lanches e sucos gelados.

— Oráculo, você quer dizer. De moça, ela tem só a aparência — disse Tila, mordendo uma torrada cheia de geleia. Ela não foi mesmo com a cara de Lírian, mesmo ela tendo nos ajudado. Haruka não sabia se apoiava a desconfiança de Tila, considerando que a oráculo os sequestrara (por mais que fosse por uma causa nobre), ou se desaprovava a postura da garota por ela estar sendo muito dura com tudo minuto após minuto. É até um pouco plausível esse comportamento dela. Estamos em outro mundo, caramba. Ele não sabia como não ficara nervoso com esse fato.

— Verdade. Lírian disse que nos levará até Kosumos, onde os Nigmas Sagrados estão esperando por nós — Salen ressaltou, tomando outro iogurte. Ao seu lado, Joseph comia cereais de chocolate como se aquela fosse sua última refeição, nem um pouco interessado na conversa.

— Vocês acreditam mesmo nessa história? De Digimons? Raças digitais e não sei mais o quê? — perguntou Tila.

— Que pergunta é essa, Tila? Não acredita nas coisas que Lírian disse? — quis saber Lua.

— E os Digi-vices? Isso não significa nada pra você? — indagou Haruka, chocado com a descrença da colega de cabana. Incrédula e desconfiada. Péssima combinação.

Como se invocada pelas dúvidas de Tila, uma esfera de luz de um branco puríssimo brilhou perto da mesa, e Lírian estava lá, sentada num pufe cor de pérola entre Tila e Haruka. A mini-roqueira deu um salto da cadeira, quase caindo no chão.

Aqui estou, Crianças Escolhidas. Assim que acabarem de comer, podemos ir.

— Já, já, a gente termina! — disse Joseph e praticamente engoliu sua geleia de morango, matou seu chá de erva doce e comeu a fatia de pão de forma com mel que restava em seu prato. — Não demora, hein, galera! — Enquanto esperava os outros, ficou mexendo no seu Digi-vice, curioso em desvendar todos os segredos por trás daquela tela sem botões. É como um megacelular do futuro! Um de seus sonhos estava materializado bem em suas mãos, que emoção! Agora Joseph acreditava que milagres eram reais.

Tila foi a próxima a acabar de tomar café, depois foi Salen, depois Haruka.

— Podemos ir. — Haruka já foi levantando.

— Lua ainda não acabou. — O mais novo do grupo apontou para ela, que devorava pãezinhos de queijo.

— Anda, Lua, engole logo isso aí! — Tila brigou com ela, pegando sua jaqueta das costas da cadeira em que se sentava há alguns segundos.

— Esperem, por favor! Se eu não comer mais um pouquinho, vou desmaiar. Não quero dar trabalho para ninguém. — Lua tentou comer mais rápido e acabou se engasgando (Salen deu um copo com refresco de manga para ela).

Podem trazer aquelas bolsas — comentou Lírian com toda a paciência do mundo, coisa que impressionou Haruka. Queria ser calmo assim. Pensou, e ele e os outros olharam para onde a oráculo indicava. Sobre um armário baixo (se Joseph não estava ficando biruta, tinha um monte de comida pré-cozida e pipoca de micro-ondas dentro dele. Será que Lírian achava que nenhum deles sabia cozinhar?) havia algumas mochilas acomodadas, elas eram cheias de compartimentos fechados a zíper e velcro. Eram todas iguais: pretas, espaçosas e achatadas, cada uma de um determinado tamanho.

Parece até que foram feitas sob encomenda… Pensou Lua embasbacada, e também percebeu que havia nomes costurados nos pequenos bolsos da frente de cada uma das mochilas — numa das bolsas menores estava escrito “Lua” em lindas letras verdes.

Elas contêm produtos de higiene, kit de primeiros socorros, guloseimas entre outros suprimentos necessários em viagens nômades, como a que vocês farão a partir de hoje — contou Lírian, pegando todos de surpresa, até o pequeno Salen.

— Viagem? Que história é essa? — Tila não gostou nada daquela ideia.

— Só um momento, senhora Lírian. Não íamos somente nos juntar aos Nigmas e lutar contra Aíria?

Não é tão simples assim. — Aquelas palavras atingiram Haruka em cheio. — O percurso até Kosumos é rápido, no entanto a viagem não se encerra aí. Terão que visitar as vilas e cidades ainda não tomadas por Aíria, localizar templos e resgatar relíquias que representem os deuses digitais (isso de nada têm valor para minha irmã, mas essas relíquias são capazes de invocar os deuses se usadas da forma correta, e talvez livrá-los de seu cativeiro), dentre outras atividades que os Escolhidos de Yew devem fazer.

— Escolhidos de Yew?

Oh, sim, pequeno Salen. Yew é a deusa dos desejos e das estrelas cadentes, aquela que abençoou a humanidade com a dádiva do Digicódigo. Vocês têm o Digicódigo graças à ela, por isso são os Escolhidos de Yew. Vamos, não há tempo a perder!

— Lua! — Tila disse com urgência, sua colega de quarto ainda tomava café da manhã. 

— Tô indo… tô indo! — a menina das meinhas listradas disse entre uma golada e outra em seu quarto copo de suco de laranja (meinhas listradas porque ela usava a meia-calça de listras brancas e rosa-bebê de quando chegou ao Digimundo, mas fora isso sua roupa estava diferente de antes. Em vez de macacão e blusa de mangas longas, agora usava um vestido cor de creme de saia rodada com babadinhos rosa-pastel, um casaquinho de lã branco e rosa e botas de montaria marrons).

É incrível como esse mundo é informacional e flexível. Parece até que as coisas mudam a nível celular para se ajustar a tudo. Tila pensava nessa teoria (isso explicaria o mistério por trás daquela blusa T-shit amarela de bainha preta, daquela jaqueta preta com pedrarias cristalinas nos ombros, daqueles shorts jeans, daquela calça legging preta e daqueles All Star pretos de cadarços amarelos, que couberam tão bem nela). Sou uma abelha de jeans. Gostei.

Cada uma das crianças pegou uma bolsa de viagem, retirando-se da cozinha de imediato. Eles foram buscar suas próprias bolsas e saíram da cabana, encontrando Lírian esperando por eles do lado de fora — Haruka, que não trazia bagagem ao ser tragado para Okgeiden, estava lá com ela. Mano, essa mulher é um fantasma, só pode! Pensou Joseph todo arrepiado com as aparições espontâneas de Lírian. Oráculos são de arrepiar.

Vamos para a Ilha Kosumos no meu transporte particular. — Atrás da mulher sinistra de sorriso gentil estava estacionada uma nave de formato oval com espaço para dez pessoas, de carapaça azul-metálica e janelas de vidro temperado. O veículo flutuava a alguns palmos da grama dourada da floresta de joias preciosas, completamente sem rodas ou flaps.

— Uau — disseram Haruka e Joseph com cara de paisagem.

— Vou no banco da frente. — Tila passou correndo por Lírian, tentando puxar a porta do lado do assento do carona, mas a descarada não abria não importando a força que fizesse.

— Nem pensar. Menores de idade só no banco de trás. — A Oráculo contornou a nave, abriu a porta e sentou no banco do motorista, acionando um botão que abriu as portas traseiras do veículo. Pisando duro, Tila entrou na nave, sentando no banco de trás como seu irmão e os outros.

Ugh! Cara, eu odeio adultos.

— Não se aborreça com isso, maninha. É perigoso para crianças. — Salen tentou acalmá-la.

— É tão perigoso aqui quanto lá, já que se a nave cair e explodir, a gente vai morrer não importando em que parte dela esteja — rebateu Tila, fazendo um muxoxo. Lírian ligou o motor da nave, que soou como o som do farfalhar de milhares de folhas para Salen. As concessionárias precisam de uma repaginada, com uma nova era de carros com motores ecológicos que fazem barulho presentes na natureza.

— Ela pode andar na frente sem se preocupar em morrer, meu bem. Ela não é humana — debochou Joseph, cutucando nas coisas do grande painel que se estendia por todo o interior do veículo aéreo, que era inteiramente coberto com gavetas e portas como um armário gigante (se tinha um talento que Joseph possuía era o dom de bisbilhotar, ainda mais se fosse para xeretar a nave de um oráculo). A nave era cheia de gavetas com várias coisas interessantes: picolés e potinhos de sorvete, embalagens transparentes com petiscos de carne aquecidos e biscoitos doces e salgados de aspecto macio ou crocante, garrafas de plástico com bebidas gasosas ou leitosas, caixas transparentes forradas com veludo azul com relógios, colares, canetas, grampos e uma infinidade de objetos que pareciam ser de prata, bronze e materiais valiosos do tipo (e não parava por aí).

— Fica quieto, carne seca — retrucou Tila, quando ninguém mais esperava por isso.

— Fica quieta você, palitinho de dente!

— Agindo que nem dois pirralhos. Ainda perguntam por que vamos atrás… — Suspirou Lua, pegando um picolé de mirtilo sem que ninguém visse (Salen até viu, porém ele estava mais interessado em observar o mundo inexplorável além da janela ao seu lado).

— Vamos decolar — avisou a Oráculo, e os cintos, como se ganhassem vida, saltaram sobre as crianças, circulando as cinturas delas e as prendendo em seu abraço acolhedor de segurança. Nessa hora, a nave foi içada no ar, levantando vários metros de uma só vez, algo semelhante a um elevador subindo por andares, mas bem mais suave (Joseph mal notou, de tão concentrado que estava na caixa de rosquinhas com cobertura de chocolate sobre suas pernas).

— Quanto tempo leva até Kosumos? — perguntou Lua, olhando sedenta para dentro de uma das gavetas com comestíveis refrigerados, seu alvo era uma garrafinha de limonada com menta.

— De nave, uns dez minutos. Ah, se quiserem, podem seguir o exemplo de seus amigos de apetite insaciável. — Tila e Haruka riram de Joseph e Lua, Salen nem prestou atenção ao que Lírian falou, com os olhos presos nas bolinhas brancas que voavam em círculos no céu, batendo suas asinhas enquanto pareciam disputar uma partida de futebol aéreo (era no mínimo curioso como seres tão minúsculos e sem pés conseguiam ser tão habilidosos). Aposto que são Digimons. A cada minuto passado, mais Salen queria saber daquele mundo estranho e inovador. Preciso saber.

— Será que tem como a gente ir de carro? Eu odeio voar! — Lua gritou quando Lírian arrancou com a nave, voando a quilômetros por hora.

O trajeto foi surpreendente. Salen não conseguia parar de observar a paisagem correndo pelas janelas, ponteada por bosques verdejantes, dourados e prateados, colinas de pedra branca e cachoeiras cristalinas, vales cheios de lagos congelados e gêiseres soltando vapor. Viram alguns animais, bichos que lembravam os que tinham em seu planeta, mas com algumas diferenças — o pequeno nerd viu um elefante peludo demais para ser um elefante (mamutes cibernéticos, essa era nova), leões-marinhos de pelos em muitos tons de azul, pássaros com dois pares de asa, raposas com caudas em excesso. Interessantes e nada parecidos com os que o garoto já vira ou ouvira falar, e isso o intrigava demais. Será que são Digimons? Ou talvez não, não tinha como ter certeza.

Segundo Lírian, os Digimons eram os animais mais desenvolvidos de Okgeiden, possuidores da Digievolução, portanto, deveriam existir outros tipos de animais naquele mundo, os que não “digievoluíam”. Mas como diferenciar um reino animal inteiro do outro? E o que seria a Digievolução, afinal? O crescimento dos Digimons deve ser esporádico, não contínuo. Eles não devem nascer, crescer e morrer como animais comuns. Talvez só precisem de um gatilho para mudar de forma… Tocou no quadrado no bolso da calça social justa, seu Digi-vice dobrado ao meio era quase imperceptível de tão leve. Era um palpite arriscado, porém era melhor do que nada (Salen sempre foi de especular e de indagar, e como sua mente não parava quieta, ele pensava em deduções antes mesmo de se dar conta). Bem, o único jeito de descobrir será quando estivermos diante dos Nigmas. Como Digimons, eles com certeza digievoluíam.

Logo não sobrevoavam mais por florestas e montes. A visão do manto de água salgada que ia abaixo era quase opressiva. Não importa quantas vezes eu veja, não consigo lidar com tudo isso. Salen desviou o olhar, de repente se interessando pelo bate-papo dos mais velhos. OaHo oceano ainda não me parece muito amigável.

— Os Digimons podem falar?

Perfeitamente que sim, Salen. — O que o pequeno nerd gostara em Lírian era a rapidez com que ela respondia suas dúvidas (Salen esperava que a oráculo não estivesse tentando enlaçá-los numa armadilha. Afinal, traidores podem ser ótimos mentirosos, e Aíria não parecia ser o tipo de tirana que deixa seus inimigos andando livremente por aí). Ela continuou — Todos os Digimons nascem com a capacidade de se comunicar com humanos e qualquer outra espécie, ao contrário dos Angimons, os animais tidos como “irracionais” desse mundo, parecidos com os que habitam seu mundo. Ah, chegamos. — O mais novo do grupo olhou agitado através das janelas, logo encontrando o que procurava. Seu destino era uma pequena ilha cheia de árvores (pinheiros e eucaliptos em maior peso) e cachoeiras que desembocavam em riachos entrecortados por lagoas e pontes de pedra cinza com desenhos estranhos entalhados. Símbolos de escrita. Ideogramas digitais. Deve ser a forma de escrita do Digimundo. Avaliou Salen. A questão era descobrir se aqueles símbolos se aplicavam a todos os povos digitais ou a apenas alguns. Havia altares da mesma pedra cinza aqui e ali, sustentando ovos do tamanho de bolas de futebol americano, com muitas cores e desenhos gravados nas cascas. O que são aqueles ovos? Que criatura poria ovos tão grandes…? A resposta se acendeu na mente de Salen, e ele aguardou pelo próximo passo do Segundo Oráculo de Okgeiden. — Essa é Kosumos, a Ilha dos Começos, também conhecido como o País Primevo, onde a vida de todos os Digimons se inicia.

— Aquele vulcão lá no meio tá ativo? — perguntou Haruka, apontando para uma parte mais adiante da ilha. Havia um vulcão lá, cercado por colinas cor de sal pontilhadas por construções que eram uma mistura de estilo colonial europeu e tradicional japonês. — Cospe lava de verdade e mata de verdade?

Está ativo, sim, mas não há com o que se preocupar. Quando ocorre uma erupção, o magma se esfria assim que toca a atmosfera e é convertido em chuva de cinzas e de pétalas de todos os tipos de flores da ilha. É a coisa mais linda de se vê nessa região do Digimundo. — Salen viu a irmã franzir a testa, fazendo sua típica cara de descrença. Estamos em um mundo que nem deveria existir, e ela ainda dá tanta brecha para ceticismo? Acorda, Tila. Somos os primeiros humanos a explorarem esse planeta. Um planeta que nem fazia parte de sua realidade.

— Que fofo! — Sorriu Lua.

— Lava de verdade é mais legal. — Joseph deu de ombros. Salen se perguntava se ele raciocinava antes de falar sobre coisas que pudessem comprometer sua vida.

— Como os Digimons… são gerados? — Tila perguntou na frente de Salen.

Os Digimons são imortais, morrendo e renascendo infinitas vezes, vocês verão. Eles não podem ter filhos e não conseguem viver na natureza por muito tempo, condicionados a viver em civilizações, seja no meio de outros Digimons ou do povo de IA.

— IA? — Joseph ergueu as sobrancelhas, tirando alguns grãos de açúcar de seu queixo com as costas da mão.

— Inteligência Artificial. Agem como humanos, mas não são, acertei?

Exatamente, Tila. Os IA parecem pessoas, porém sua base é feita de Digicódigo, sendo os seres vivos de maior valor potencial desse mundo. São poderosos ao passo que fracos, por seus poderes estarem ligados restritamente com seus deuses representantes. São poucos IA que não caíram no jugo de Aíria, alguns escaparam para vilas e cidades livres, outros seguem como fugitivos. Vamos pousar.

Lua — que durante a viagem parecia ter se esquecido de que estavam em pleno ar — esperneou durante todo o pouso e saiu correndo assim que chegaram à terra firme, se lançando na grama verde do prado em que aterrissaram. Todos desembarcaram, Lírian saiu por último.

A ilha era mais linda sendo olhada de baixo do que por cima. Na superfície de algumas lagoas e riachos do lugar flutuavam flores gigantescas e descansando sobre elas haviam ovos de vários tamanhos, cores e texturas diferentes. Tem mais aqui… Divagou Salen, ficando ansioso em encontrar com o Nigma que o acompanharia na missão de derrotar Aíria. Nas rochas e árvores cresciam cristais azuis, amarelos, verdes e roxos, de onde brotavam mais ovos — era incrível como aqueles elementos se imiscuíam a paisagem de forma tão natural. Estamos em outro mundo. As leis da Terra não se aplicam aqui. Salen pensou crítico, sem conseguir parar de olhar ao redor. Era muita novidade para assimilar.

— Cadê os bicho?! — Joseph procurou em volta, correndo por entre as árvores. Estamos cercados de Digimons, Joseph. Como você não percebeu ainda?

— Volta aqui, Joseph! — chamou Haruka, fazendo uma cara preocupada (provavelmente, preocupado com a falta de cuidado com que o outro menino segurava os ovos que parava para ver).

— Idiota — resmungou Tila de braços cruzados, esperando pelo próximo passo de Lírian.

— É tão bonito! — O berro repentino de Lua atraiu a atenção de Tila. A menina das meias listradas estava agachada na borda da lagoa mais próxima, admirando ovos sobre flores que boiavam nas águas tranquilas. Tila viu um ovo que a intrigou, era do tamanho de um ovo de galinha caipira (seria igual se galinhas pusessem ovos verdes incrustrados com flocos de gelo). Interessante. Será que nossos Digimons estão dentro de ovos tão pequenos assim?

Lírian foi apressada até Joseph, que observava uma pedra de safira muito redonda e grande para ser uma joia normal. Aquilo também é um ovo de Digimon?! Naquele momento, Haruka viu que tinha muito que desbravar ainda naquele curioso mundo.

Jovem Joseph — Lírian o chamou, tocando no ovo de safira que ele já pegara para olhar mais de perto. Por um instante, a voz dela suavizou ecos; convertidos em uma cálida brisa (ao menos, essa foi a impressão de Lua).

— Oi? Ah, tá. — Ele entregou a joia bruta para ela, que pôs o ovo em uma fenda esférica que dividia um cristal de ametista em duas grandes rochas preciosas. — Foi mal.

Vê todos esses ovos em volta? — Lírian indicou ao redor ao longo de toda parte do bosque ao alcance de seus olhos. Joseph concordou com um aceno de cabeça, e ela prosseguiu — Todos eles são Digitamas, e em cada um deles dorme um Digimon. O tempo de hibernação varia de espécie para espécie, e as habilidades podem interferir também. Esse é o Bosque das Pétalas Aquáticas. — Joseph não foi nem um pouco com a cara daquele nome. Que nomezinho mais mixuruca. Os Nigmas Sagrados não se encontram aqui. Eles repousam no Vale das Almeríades.

— O que são Almeríades, senhora? — Salen se aproximou da Oráculo, cada vez mais carente de informações.

São o aspecto astral dos seres digitais, as “almas” deles, feitas de Digicódigo em forma bruta. O Vale das Almeríades é um templo aos Nigmas Sagrados, uma cidade de galerias e câmaras que percorrem todo o subterrâneo de Kosumos. Lá, vocês se encontrarão com os Nigmas, cada um em seu altar de descanso. Os Nigmas devem ser venerados por todos no Digimundo. Essa era a opinião do pequeno gênio, que jamais ouvira falar de um templo de dimensões tão exorbitantes. — Eles os aguardam, Escolhidos de Yew. — Lírian inclinou a cabeça para cima, pondo o indicador debaixo da orelha direita e dizendo com a voz ampliada centenas de vezes (microfones deviam ser indispensáveis no dia a dia dela) — Irmã, pode me ouvir?

— Vocês não pararam quietos desde que chegaram, seria impossível não notar sua presença, Lírian. — De repente, eles escutaram aquela voz carregada de ironia bem-humorada.

— Olha ali! — Lua apontou para um galho alto de um pinheiro nas redondezas.

Em pé sobre ele, tinha uma garota baixa talvez um ou dois anos mais nova que Lírian. O cabelo azul-ultramarine, que descia por suas costas como um véu de veludo, estava preso num rabo de cavalo alto, prendedores com pingentes de pedras preciosas coloridas pendiam dos fios aqui e ali, fazendo o rosto dela reluzir como se uma aura natural o cobrisse. Sua pele era quinhentos tons mais escura que a de Lírian, de um belo marrom acetinado, mas os olhos conservavam o verde-prado dos da Segunda Oráculo. Suas roupas eram bem simples — camiseta de gola larga folgada, calça jeans gasta e tênis de corrida, tudo do mais puro preto —, tirando pelo casaco, uma manta lilás peluda que alcançava seus joelhos.

— Olá, Digiescolhidos, sou Nírian, o Aviso, a Terceira Oráculo de Okgeiden — apresentou-se a garota na árvore, saltando no chão entre o grupo guiado por Lírian. — Não sabem como eu estava curiosa para conhecê-los. — Ela é uma das Oráculos?! Assustou-se Haruka. Se não fosse pelo fato dos cabelos não parecerem tingidos, eu diria que ela é uma garota comum. Uma humana, no caso.

Pois bem, teremos que nos separar agora — avisou Lírian, encurtando a distância entre ela e Nírian.

— O quê? Por quê? — quis saber Lua, que já tinha se afeiçoado à Lírian.

Confio a segurança deles a você, Nírian — disse o Perdão de Prata, dando um abraço na recém-chegada.

— Pode ficar tranquila, mana. Tomarei conta deles direitinho — assegurou o Aviso. — Vii Goe. — Por mais que não tenha compreendido o que Nírian disse, Salen sentiu que aquilo era uma despedida.

Vii Goe, querida irmã — disse Lírian e se afastou da outra Oráculo.

— Vigor o que?

Vii Goe — Lírian corrigiu Tila. — É uma das formas de se despedir em kaniano arcaico, a língua da qual o kaniano moderno falado em todo o Digimundo se derivou. Portanto, Vii Goe, Digiescolhidos. — Ela fez uma rápida mesura para eles, brilhando num branco de cegar.

— Aí, quando é que a gente vai conhecer a tal da Yew? Droga, ela já deu no pé! — reclamou Joseph, descendo do galho do eucalipto mais próximo em que tinha subido.

— Hum, apressadinha. — Bufou Tila, pensando que devia ser fácil para a Segunda Oráculo abandonar menores de idade assim.

— Não deem importância para isso, Lírian é assim mesmo, indo embora sempre que lhe dá na telha e ajudando todo mundo como se nunca quisesse nada em troca. Um coração puro e confuso de se entender — contou Nírian, claramente incomodada. Ela começou a andar, e as crianças foram atrás dela.

— E você, Nírian? Vai exigir algo em troca para nos ajudar? — Haruka perguntou como se nada estivesse errado (ele podia fingir bem, mas Tila sentia o medo exalar dele). Pelo menos, Lírian a gente meio que já conhecia. Mas essa aí… Olhou para Nírian pelas costas, desconfiadíssima.

— Não. Vocês são apenas crianças humanas. Sei que não podem me oferecer nada, só seus sentimentos sinceros e as energias de seus espíritos aventureiros. — Um calafrio percorreu o corpo de Salen com aquele comentário da oráculo. Talvez ela precise se alimentar de espíritos. Tenho que ficar em alerta. — Relaxem, não vou pegar nada de vocês, vou dar uma de Lírian e ajudá-los de graça. O único preço que deverão pagar é o de auxiliar os Nigmas na guerra contra a minha irmã louca. Mais rápido, crianças de ouro, não temos tempo a perder!

Nírian apertou o passo, Haruka e os outros tiveram que fazer o mesmo. O bosque se parecia cada vez mais com um jardim, até eles se verem cercados de vez por um campo de lavandas ponteado por arbustos de mirtilos. A mescla de aromas era muito doce. Joseph amou e poderia viver cheirando aquilo. Que frutinha boa… Pensou, deliciando-se com um punhado de mirtilo (abrira o maior compartimento de sua mochila pessoal, enchendo-o com as frutinhas azul-arroxeadas. Nírian fez vista grossa, fazendo uma nota mental de que mais tarde iria punir aquele pirralho).

— Aíria é uma maldita obcecada por poder que deseja acima de tudo localizar esse lugar, onde ela conseguiria arranjar um monte de escravos para lutar sua causa — Nírian não parava de falar, conduzindo-os depressa pelo campo. — Se ela se apossar dos Digimons antes mesmo deles nascerem, poderá corrompê-los até a raiz de suas almas (os Digicódigos deles se tornariam tão podres que só um milagre os traria de volta a sanidade).

Entraram numa trilha pavimentada por ladrilhos brancos e pratas. Parecem lascas da lua. Pensou Haruka deslumbrado. A trilha levava direto para a varanda de uma casinha de pedras com o formato de um cilindro. Nírian abriu a porta de ferro cromado da casa e a adentrou, as crianças foram atrás dela — Tila foi a última a entrar, não largando mão da desconfiança nem por um segundo sequer.

— Podem deixar suas bolsas aqui. Devem estar cansados de levá-las para cima e para baixo. — A Terceira Oráculo indicou os sofás arrumados no centro da minúscula sala de estar. Todos seguiram a instrução dela, até Tila. — Que bom que Lírian os trouxe logo, os Nigmas estavam ficando cansados de esperar. — Nírian os levou pela casa, abrindo uma pequena porta de madeira em arco num dos cantos da pequenina cozinha da casinha, saindo novamente no campo de lavanda e mirtilo. — Aíria, sua ruína está por vir, desgraçada! — Nírian gritou do nada, voltando a guiá-los pela Ilha dos Começos.

— Tem certeza que vamos ficar bem seguindo essa aí? — Joseph cochichou com Tila.

— Pela primeira vez, concordo com você. Lírian parecia mais confiável.

— Posso não ler mentes que nem a fofa da Lírian, mas escuto com uma precisão de arrepiar. — Os dois engoliram em seco ao ver que a Oráculo sabia que falavam dela. — Tenham cautela ao falar, não sou conhecida como um dos seres mais pacientes de Okgeiden.

— A Lírian lê mentes?! — Sobressaltou-se Lua. Eles saíram do campo roxo-azul, indo parar numa praia de areias brancas com um toque de verde-limão. A água do mar era em degradê, vindo de verde-petróleo na costa e variando de tons de verde e azul até se tornar um poderoso azul-oceano mais ao longe. O céu era como Haruka vira no dia anterior, azul-dia pontilhado por nuvens branquinhas. Estrelas moldadas em números cintilavam lá em cima, muito acima das nuvens, conectados por linhas tracejadas de brilho cósmico (poeira cósmica formando um ínfimo pedaço do mapa do universo). Do universo digital? Aquele dia nunca sairia da cabeça de Haruka.

— Claro que lê, por isso a esquisita parece sempre ter uma resposta na ponta daquela língua de princesa encantada que ela tem — Nírian respondeu à Lua. — Oh, deixe-me adivinhar. Ela não contou para vocês a respeito das mil e uma habilidades dela. — Todos negaram, seguindo-a pela praia. Tila estava com raiva por Nírian ainda não ter dito onde os estava levando, mas amava a sensação de pisar na areia fofa, nem ligando para a grande chance dela entrar em seus sapatos. Mas a sensação boa durou pouco e logo Tila voltou a se irritar, cansada daquela caminhada que parecia não ter fim. — Claro que não contou, ela ama fazer mistérios sobre várias coisas, a identidade dela não fica de fora, exibida do jeito que é.

— Onde a gente tá indo? — perguntou Tila. Joseph conseguia ver fumaça saindo pelas orelhas dela. É um trem, um trenzinho com o motor a ponto de explodir! Teria rido da cara da garota, se Nírian não tivesse respondido:

— Não é para a morte certa, posso afirmar. Tenha paciência por mim e por vocês, minhas crianças de diamante. Daqui a pouco estarão diante dos Digimons mais poderosos que existem. Oh, chegamos. — Diante deles se elevava uma pedra imensa com compridas portas de ferro de bronze com símbolos em alto-relevo (as mesmas insígnias talhadas em alguns dos altares de pedra lá no bosque. Salen nunca se esqueceria de um padrão simbólico tão belo).

A grandiosa rocha pertencia claramente ao que se erguia detrás dela: o vulcão que eles tinham visto à distância, quando estavam na nave de Lírian. A visão do enorme monte cuspidor de lava era mil vezes mais esmagadora assim de perto (Haruka não falou nada porque era um pouco tarde para admitir seu medo colossal por vulcões). Não dá pra falar agora. Vou ter que encarar isso. Era um mundo digital. Se eu me machucar aqui não vai doer tanto quanto doeria no mundo real, né? Foi ele pensar isso que as portas abriram para dentro, revelando um salão tão dourado quanto negro. — Entrem, sem temer! — incentivou Nírian, vendo que ninguém estava se mexendo.

— Lírian disse que esse vulcão não é letal. Ela mentiu sobre isso também? — quis saber Salen.

— Minha irmã clara de ovo não mente, ela só adora omitir. — Nírian deu de ombros, coisa que a deixou com um ar ainda mais jovial. — Vão logo, antes que minha ira divina ofusque seus olhos de quartzo sem brilho. — Eles enfim entraram, logo rodeados por paredes de granito com placas de ouro. Pilastras retangulares sustentavam o teto de rocha crua polida, havia mais símbolos entalhados neles e no teto (esses detalhes não passaram despercebidos por Salen). O salão desembocava em cinco caminhos, corredores obscuros que levavam sabe lá Deus para aonde (a ideia não agradava Lua nem um pouco, mas ela não ia recuar. Não sozinha). Cada uma mais doida que a outra. Tila só imaginava qual seria o nível de loucura de Aíria. Tão louca que mataria qualquer um para obter a menor das vantagens que fosse, talvez… — Acabamos de passar pelo Portal dos Perdidos, e esse é o Salão Central do Vale das Almeríades. Lírian explicou o que é esse lugar?

— Você não disse que podia ouvir tudo o que a gente dizia? — rebateu Joseph antes que Haruka pudesse responder.

— Sou onipresente, claro que ouvi. Só queria saber se dava para confiar em vocês. Os humanos que já tive o desprazer de conhecer adoravam mentir e roubar um dos outros.

Um silêncio incômodo se instaurou no recinto depois da resposta amarga de Nírian, ecoando pelas paredes de rocha e metal. Foi Lua a quebrar tal silêncio:

— Não conheceu muitas pessoas, senhora Oráculo.

— Por Yew, que menininha educada! — elogiou Nírian, afagando os cachos de Lua, que riu com o carinho. — Estou encarecidamente pensando que Iania amará conhecê-la, Sakane Lua. — As cinco crianças sentiram um frio avassalador por um segundo, e em seguida, mais rápido que qualquer flash de memória, Nírian estava diante deles multiplicada por cinco (uma Nírian para cada um). — Por aqui, Digiescolhidos — ela falou com sua voz aumentada cinco vezes, muito mais eloquente do que Lírian com sua voz ecoante.

— Você se multiplica, que animal! — Joseph se empolgou.

Eu diria que dividi minha essência segundo a minha Onipresença, mas você entendeu o básico. Muito bem, Joseph Bezerra.

— Bezerra? Que nome ridículo — zombou Tila.

— Não pedi sua opinião, varapau — retrucou ele.

— Parem com isso, poxa. Vocês não fizeram outra coisa além de trocar farpas desde que se conheceram — ralhou Haruka. Tila olhou feio para ele, e Joseph principiou uma discussão, mas as Nírians os detiveram ao dizer:

A cada hora que passa, Aíria fica mais forte…

— Estamos indo! — avisou Lua, se despedindo de todos e indo até a Nírian que fazia um gesto para ela a seguir.

— Boa sorte, Salen. — Tila abraçou seu irmãozinho, e ele a abraçou de volta, falando o menos temeroso que conseguiu:

— Para você também, Tila.

— A gente se vê, galera! — despediu-se Joseph, indo com outra Nírian por um dos corredores sombrios.

— Venha, Haruka. — Ele ficara tão distraído com os outros que tomou um susto ao ver que era o único que restara para trás. — O tempo corre impiedoso. Não quer que Aíria invada seu mundo, não é? Então, venha. Chain’relk espera. — Haruka andou o mais rápido que conseguia atrás de Nírian, orando para não morrer naquele mundo estranho. Suya, mamãe, minna, esperem por mim. Eu vou voltar pra vocês.

#          #          #

O medo de Joseph era semelhante ao de Haruka, mas o dele era mais intenso, pois Joseph temia ser comido pelo Nigma que estava indo encontrar. Depois de Nírian dizer “Vamos lá, garotinho. Não precisa desmaiar”, ele a seguiu por uma cadeia intricada de corredores iluminados por chamas branco-acinzentadas ardendo em velas em vários castiçais por todo o caminho. As paredes em volta ora eram de bronze e rocha, ora de rocha e vidro — através das vidraças, muitas coisas em exposição: árvores retorcidas com florezinhas douradas crescendo; bicicletas grandes demais ou com formato estranho demais para qualquer ser humano andar; mostruários de roupas lindas ou bregas, estantes flutuantes com fitas cassetes e VHS e prateleiras voadoras (elas tinham asas nas extremidades, voando despreocupadamente) com livros de capas coloridas e metálicas; tinha até um bando de tigres filhotes brincando no meio de uma nevasca contida, rolando em dunas geladas e coçando suas garrinhas em brinquedos feitos de um material que lembrava borracha. Uma borracha das boas, senão já teria rasgado. Pensou Joseph, se apressando para igualar o ritmo de seus passos aos da Oráculo (não queria ser o novo brinquedo dos tigrezinhos).

O que assustava Joseph de verdade nem eram os tigres enjaulados, mas sim o Digimon que estava prestes a conhecer. Ele era um idiota completo, não tinha condição nenhuma de ajudar ninguém em guerra nenhuma contra supervilã nenhuma (sem contar o detalhe de que o Nigma com certeza o odiaria só de olhar para ele. Ou o amaria. Em peso, as pessoas não iam com sua cara). Coragem, Joseph! Se o tal Nigma que vai trabalhar contigo for que nem os bichinhos que você viu lá fora, vai ser moleza. Não tem o perigo de comerem você vivo. Força na peruca, moleque! Ele tentou se encorajar, mas era difícil agora que não estava mais cercado por seus colegas de viagem e Lírian (ele não confiava em Nírian, que parecia do tipo de gente que troca os outros por uma sacola com moedas de ouro).

— Chegamos.

— Ahn? — Joseph não teve nem tempo de ficar perplexo. Nírian abriu a cortina diante deles, e parte da luz que se escondia atrás dela escapou, derramando feixes de um azul-elétrico no corredor aceso em branco em que estavam.

— Seu Nigma dorme lá dentro.

— Tá. Tô indo.

— Ah-ah, só um instante. Precisa ouvir uma coisa antes de ir. Feche os olhos e se concentre na minha voz.

— Por que eu tenho…

— Fecha os olhos, Joseph.

— Tá. Estão bem fechados.

Ouça-me, Joseph Bezerra, porque minhas palavras trarão o despertar de seu Nigma Sagrado. — As palavras de Nírian ressoaram dentro de Joseph, enchendo seus ouvidos com ecos do mar, mistura perfeita da voz do oceano e dos brados dos trovões que povoam céus tempestuosos. Então, Nírian mostrou que era um oráculo de verdade.

 

Nas águas profundas,

Tentou se esconder

O raio sagrado

Que ruge poder.

Ache o caminho

Para o oceano, Jovem Escolhido,

Porque o sal de suas lágrimas

É sinceridade em profusão.

Um trovão sabe a hora de rugir,

A hora de ajudar seus amigos,

E recolhe as gotas de chuva,

Que carregam o sal de seus prantos.

Aos corações partidos, Trovão Rugidor: dê a cura.

 

Profusão? Mas que diabos é isso?! Foi tudo que Joseph conseguiu pensar.

— Você está pronto, Joseph. Agora vá, e não se esqueça de seu Digi-vice. — Que bom que não se esquecera do maldito aparelho, se não estaria bem ferrado.

Ele não se sentia muito pronto para ficar sozinho com um possível monstro de videogame, mas os versos rítmicos (rítmicos? Ele tinha dito isso mesmo?) de Nírian o deram força, dando a coragem necessária para ele seguir em frente. Devo estar lelé da cuca ou virando um covarde para não querer ficar a sós com um animal santo. Vendo que não dava mais para hesitar, o garoto pigarreou, deu tchau para Nírian e foi adiante, passando pela cortina.

Foi recebido por um salão submerso — o lugar era uma fusão de deque de piscina com quarto (quarto de gente rica, porque era grande pra dedéu) — sem janelas ou portas — a única saída que talvez houvesse era pelo teto, esse feito de vitrais em tons de azul, vermelho e amarelo. Colunas gregas (aquele estilo de arquitetura da Grécia Antiga que ele não sacava nem um pouco) saíam da água que lotava a maior parte do quarto — o “chão” do quarto funcionava como uma piscina funda —, onde vários elementos se achavam submersos — uma cama com teto e cortinas (Joseph não sabia o que era um dossel), estantes com livros, uma escrivaninha, um monte de espelhos (de onde Joseph podia ver, a maior parte da piscina era entapetada por espelhos, o que intensificava a iluminação do lugar).

Tudo era branco com adornos dourados, tirando pelos candelabros no teto, todos cheios de cristais acesos em luz cerúlea, clareando e dando um efeito bonito e meio elétrico a tudo. Joseph estava numa das poucas partes sem água do lugar, de pé no que parecia o deque da piscina.

Se tudo não estivesse tão acabado, seria um lugar agradável de passar as férias de verão.

Sobre uma das colunas mais baixas havia uma TV, ela chiava e chuviscava, mais do que estragada. Algas marinhas grossas desciam junto à pilastra da TV, contornando-a até afundarem na água e se espalhando sobre os lençóis e a cabeceira da cama naufragada. Olhando com mais atenção, dava para ver a almofada que tinha recostada à cabeceira da cama — sobre ela, estava acomodado um ovo maior que qualquer ovo de Páscoa que Joseph já tinha esbarrado. Àquela distância, tudo que Joseph conseguia ver eram as miniaturas de raios que passeavam pelo ovo, como se ele fosse envolto por um campo eletrizado semelhante ao de uma enguia elétrica. É ele. Joseph soube assim que pôs os olhos naquele ovo. Tenho que pegar ele! De alguma forma misteriosa, ele soube o que fazer (tudo obra de Nírian e do leve feitiço que ela lançou nele, o garoto teria se afogado se não fosse pela intervenção do Oráculo, pois nadar não era uma das virtudes dele). Movimentou suas pernas, descendo veloz e certeiro, a pressão a sua volta aumentando a cada braçada que dava.

Se estivesse em seu estado normal, seus pulmões já estariam sedentos de ar e não teria força para sair da água. Porém todo o corpo de Joseph agia como se nadar fosse uma segunda natureza — o fôlego não lhe faltaria enquanto precisasse permanecer dentro d’água. Chegou ao nível do chão do quarto-piscina e subiu na cama sem demora. Empurrou algas para fora do caminho, alcançando enfim o ovo eletrizado — ele era negro com gravuras de ondas quebrando numa praia e do alto de um prédio infestado de antenas de TV sofrendo curtos-circuitos (todos os desenhos num verde-turquesa fluorescente, que emitia luz própria; a luz das gravuras brilhavam na água, deixando ela com um toque esverdeado). Segurou o Digitama com ambas as mãos (ficou feliz por não levar um choque) e repetiu as palavras de Nírian sem perder tempo, cada verso do poema (as palavras rimavam, aquilo só podia ser poema!), enviando ondas de energia no corpo de Joseph.

(Obs.: não era um poema.)

E recolhe as gotas de chuva,

Que carregam o sal de seus prantos.

Aos coraçõ- — o garoto nem conseguiu terminar de recitar. As correntes aquáticas ficaram muito intensas, tão fortes que formaram um torvelinho. Joseph não conseguiu se segurar, sendo levado com a força das correntes revoltosas.

Foi jogado para fora da água, um foguete-humano prestes a se chocar contra a parede mais próxima.

#          #          #

Lua não teve medo de ir com Nírian, ela já confiava na Oráculo. Ao passo que se assustou com os cenários que preenchiam os corredores por detrás de suas paredes de vidro, a menina ficou maravilhada com o que viu — cobras nadando numa piscina em uma paisagem artificial; cachorros com perna de sapo assoprando bolhas de sabão; uma pista de brinquedo onde corriam carrinhos sem o monitoramento de ninguém (ela teve a impressão de que os carros tinham olhos, mas deixou pra lá. A ideia era bizarra demais). Lua perguntou o que eram aqueles animais todos, e Nírian disse:

— São Digimons que conseguiram escapar de Aíria. Desamparados e feridos, eles invocaram Lírian (por ser onisciente, ela é a criatura mais rápida para atender um pedido de socorro). Sem lugar para escondê-los da bruxa da nossa irmã, Lírian pediu minha ajuda. Desde então estou cuidando de todos os Digimons que não tem para onde ir, principalmente filhotes, que não podem pagar por estadia em cidades e vilarejos e geralmente dão muito trabalho para alguém querer adotá-los. Como sou apaixonada por crianças, o mínimo que posso fazer é acolher todas que eu puder. — Depois disso, Lua se sentiu ainda mais à vontade perto da Oráculo. Sou criança, ela nunca me faria mal ou à Tila, Salen, Joseph ou Haruka. Eles estariam seguros enquanto estivessem na Ilha dos Começos (Lua não quis pensar no que podia estar por vir. Era mais fácil para ela viver um dia de cada vez).

— Chegamos — Nírian disse de repente, parando à frente de uma porta estranha (bem, Lua inferiu que fosse uma porta, considerando que tinha uma maçaneta, o corredor era cheio de portas que não pareciam ser portas, mas que deviam ser portas). Era uma casca de árvore com pequenas florezinhas rosa-azaleia crescendo por ela toda, coberta por raízes de cima a baixo. Era de uma beleza singular, ecológica e doce em sua simplicidade.

— Que graça!

— Não é? Sua Nigma a espera atrás dessa porta.

— “Sua”? — repetiu Lua, logo se dando conta. — É ela? O Nigma que vou ajudar é-

— Isso. Agora vá. — Lua foi em direção à porta, porém a Oráculo a parou. — AH, só um instante. Está com seu Digi-vice? — A garota pegou o aparelho no bolso interno de seu casaquinho, um quadrado perfeito azul-noite com pitadas de esmeralda, areia e oliva. — Ótimo. Tem uma coisa que precisa ouvir antes de ir adiante. Feche os olhos e se concentre na minha voz.

— Tá. — Lua fez como pedido sem questionar ou protestar.

— Boa menina — Nírian disse com a voz normal, e então seu timbre se tornou ecoante — Ouça-me, Sakane Lua, porque minhas palavras trarão o despertar de sua Nigma Sagrada. — As palavras de Nírian retumbaram no peito de Lua, como os tambores que as pessoas tocavam quando iam contar uma história ancestral (cada batida de tambor acompanhava uma batida do coração da garotinha sonhadora). Ela sentiu cheiro de terra molhada e frutas prontas para serem colhidas e escutou o som de milhares de cristais se partindo, vidro com tilintar de estrelas se despedaçando (aquele barulho servia para ser o som característico de magia sendo conjurada). Enquanto escutava a Oráculo, Lua desejou que Nírian fosse sua fada madrinha e a concedesse uma nova vida, sem Albert para perturbá-la, sem nada de ruim que pudesse machucá-la ou a seus pais.

 

Uma rosa,

Quando valiosa,

Vale mais que mil diamantes.

A terra chora,

Toda vez que perde

Um filho seu.

Nem toda fortuna do mundo

Pode se igualar ao valor da vida, Criança Escolhida.

Não haveria amanhecer para ninguém

Se não restasse uma única árvore de pé.

Seja firme, Rosa Valiosa,

Sua bondade é sua arma

E o amor, seu forte escudo.

Seja forte a todo momento: proteja sempre.

Lua reabriu os olhos, sendo recebida pelo sorriso largo de Nírian.

— Você está pronta, Lua. Confio em você.

Lua sorriu para Nírian e fez uma leve mesura para ela, virando para a porta. Sem pensar duas vezes, girou a maçaneta e puxou a porta — ela era um pouco pesada, mas a menina mal notou de tão ansiosa que estava para se encontrar com sua Nigma. Sua futura parceira Digimon. Tomara que ela goste de mim. E que eu não seja um peso morto na missão dela. Se havia algo que Lua temia era atrapalhar os outros.

Ela entrou no desconhecido, a porta se fechando sozinha às suas costas. Foi parar num pátio apilhado de árvores de formato e cores peculiares — algumas eram azuis e menores do que Lua, algumas tinham troncos corais e retorcidos, outras possuíam troncos robustos e frondosas folhagens verde-neon, violeta e rosa-fúcsia. Aqui e ali, fontes jorravam água dentro de lagoas anãs, e algumas lagoas anãs que não tinham fontes tinham em si mergulhadas as raízes de algumas das árvores ao redor.

Uma fina película cristalizada fazia vez de teto, era tão brilhante quanto um diamante, mas tinha cor de ouro-rosa, fazendo os raios de sol que adentravam o lugar iluminar a tudo com tons pastel. Do chão entre as árvores brotavam esculturas de cristais de várias cores e aspectos — animais variados, flores de tamanhos exagerados, objetos úteis (cadeiras, mesas, vasos com brotos e florezinhas lápis-lazúli e mais daquelas de pétalas rosa-azaleia desabrochando) e muito mais coisa. Lua andou pelo lugar, admirada com tudo que via. É assim que estufas de Digimons se parecem? Queria ter uma assim lá em casa.

Mais aos fundos daquele espaço surpreendente e mágico, Lua encontrou um berço feito de safiras rejuntadas por fios de ouro, que trançavam belos bordados pela superfície de pedras preciosas. A “caminha” do berço era forrada com acolchoado cor de vinho e sobre ela tinha um ovo branco-cintilante envolto por pétalas de rosa azul presas por dois anéis de diamante rosa na diagonal (Lua não se lembrava de já ter visto rosas daquela cor tão bonita). Nada faz sentido, mas eu não me importo. Tudo que importava era ver a Nigma acordar.

Recitou as palavras de Nírian, e a magia aconteceu — o problema foi que foi forte demais para Lua. A raiz de uma das árvores se ergueu, avançando na menina e a atirando longe, em direção a um conjunto de cristais pontiagudos.

#          #          #

Tila não prestou muita atenção ao trajeto, nas coisas que Nírian dizia (só se dissesse a respeito ao seu encontro com o tal Nigma ou coisa parecida). Só acaba logo. Quero matar Aíria e voltar para casa. Vovô não merece ficar parado no tempo esperando a boa vontade de um bando de monstros de dados e circuitos.

O que acontecia passou a ser relevante assim que Nírian avisou:

— Ah, chegamos ao antro de Souruki, minha Nigma predileta. Tão imbatível e digna. — A tal Nigma, Tila não sabia que era do gênero feminino. Melhor. Fora Salen, nunca me dei muito bem com garotos.

Tila olhou séria para a porta a sua frente. Era de aço comum com arabescos acobreados em relevo, no lugar de uma maçaneta havia um puxador semelhante àqueles usados em cofres de banco ou em compartimentos de submarino, redondo e muito dourado. Isso é ouro puro. Que nem na Floresta do Cântico. Tila gostaria de saber se os Digimons tinham ouro para dar e vender.

Feche os olhos, Tila.

— Por quê? — Vai botar um rastreador em mim? Tila era agradecida por Nírian não ler pensamentos, porque duvidava muito que ela seria tão paciente com ela como Lírian fora.

— Sem as palavras que direi, sua Nigma não vai despertar. Quer ser a única Digiescolhida sem Digimon protetor? — A menina não respondeu, só ajeitando as lapelas do casaco. — Hã, pensei. Só feche os olhos, não vou sugar seu cérebro, querida.

Antes que conseguisse, eu quebrava seu pescoço, velhota. Devia ao avô por pagar aquelas aulas de karatê para ela.

Ouça-me, Tila Gewandsznajder, porque minhas palavras trarão o despertar de sua Nigma Sagrada. — As palavras de Nírian foram sopradas sobre Tila como minitornados, arrepiando-a até a alma, mas não de medo. Aquelas lufadas de vento sussurravam palavras indizíveis, cutucadas de poder em cada um de seus sentidos (ela era pressionada de todos os lados). Sentiu um cheiro insuportável, ferro derretido misturado com sangue e ferrugem, mas não foi nem metade do suficiente para nocauteá-la. É só isso que você tem, Nírian? Eu aguento muito mais. A cabeça da garota se enchia de pensamentos vingativos, coisa que não durou nem mais cinco segundos. Uma cálida brisa a envolveu feito um cobertor macio, enchendo o imo de sua alma com confiança desenfreada. Posso vencer Aíria. Tenho poder para isso.

As palavras de Nírian eram poder puro.

A ventania mística

Que ninguém pode conter

Derruba os empecilhos,

Puro poder.

Aço de fada

Não é o bastante

Para cortar sua confiança inabalável,

Jovem Escolhida.

O Digimundo é a janela,

E o Outro Mundo é um caminho de orgulho

Que só você pode e deve trilhar.

Aventure-se pelos mundos, Guerreira Veloz, e

As regras que tentam nos escravizar: quebre-as.

Tila abriu os olhos depressa e se curvou para frente, ofegante (parecia ter acabado de correr uma maratona. Que ideia absurda!), as mãos nos joelhos para tentar manter algum equilíbrio.

— O… que… acon… teceu? — perguntou entre uma arfada e outra.

— Souruki sempre foi complicada. Confiança e Orgulho são fortes demais, difíceis para uma única pessoa suportar.

— São só sentimentos. Que diferença eles fazem?!

— Toda a diferença, você verá. — Tila não gostava do tom usado por Nírian. O quê? Digimons se alimentam de emoções, por acaso? A ideia era estranha até para a situação atual. — Vá, ela espera por você. — Tila saiu de perto de Nírian, louca para ficar livre da chatonilda. — Espero que tenha se lembrado de trazer seu Digi- — Pescou o Digi-vice do bolso com uma agilidade quase sobre-humana e mostrou com uma mão, girando o puxador da porta com a outra. — Ok, espertalhona. Vou torcer por você.

Valeu pela força, Oráculo que não vê futuro nenhum. Você até que é legal. Mesmo Lírian sendo mais amigável, Nírian conseguia ser camarada também.

Sem soltar um pio das reclamações que sua mente produzia e reproduzia, Tila abriu a porta e entrou, guardando o Digi-vice de volta no bolso.

Qualquer pico de raiva que ela pudesse ter se foi ao ver aquilo. Estava em uma mistura de praia com uma metrópole sem endereço. Pequenos arranha-céus se erguiam dentre as águas e entre os coqueiros só um pouco mais altos que Tila. As estruturas laminadas dos prédios e suas pequeninas janelas refletiam o brilho do sol que ameaçava subir no horizonte — o sol literalmente saía da parede e ali se fixava —, no limite da paisagem, onde o céu e o mar davam um beijo eterno e azul. Um pôr de sol que nunca acaba. As areias da praia brilhavam douradas à luz do sol.

O teto era uma versão plana de céu, algumas nuvens que pairavam rente a ele eram em 3D. Será que consigo tocar? Hã, o que eu tô pensando? Tudo não passa de efeito cinematográfico. Quem dera o cinema tivesse tanto pixels assim… (Salen dizia que um dia chegaria naquele nível, talvez dali a uns dez, vinte anos. Tila tinha sorte de não ter que esperar tanto para ver tal evolução tecnológica.)

Tila sabia que não era possível aquilo ser um pôr do sol de verdade, que não passava de uma mentira holográfica (totalmente possível em um mundo feito de dados e números binários), mas o que fazer quando a coisa é tão real que a vontade de tocar se torna irresistível? (Ela só acreditaria se tocasse naquele céu, naquelas nuvens de algodão, naquele lindo sol poente.)

De cara, Tila não percebeu, mas logo ela sentiu aquela bizarra brisa a empurrando, como se quisesse repeli-la — cada passo era uma luta a ser vencida. A areia não se mexia fácil, e logo a garota entendeu o porquê disso (a areia era pó de ouro. Essa era a razão para ela brilhar tanto, não o sol ou seus reflexos intensos). Não posso… desistir! Com muito esforço, ela continuou em frente, focada em chegar ao sol.

Ao alcançar o limite onde o manso mar lambia a areia, parou para tirar os tênis e as meias. Tirou a jaqueta e dobrou algumas vezes para cima as barras de sua legging, enfim entrando no mar. A água era muito rasa, então nem chegou perto de molhar as roupas. A ventania ficou menor quando entrou no mar, o ir e vir das águas refrescava seu corpo exaurido. Certo. Onde está você, Souruki? Ela avançou, andando devagar para não se desequilibrar e ir de cara na água, se aproximando rapidamente do poente que prendera os olhos de Tila — não demorou muito para estar a poucos palmos dele.

Parada diante do sol pela metade no horizonte tão palpável, Tila não conseguiu resistir.

— É tão bonito… — Ela estendeu as mãos, aproximando-as do sol e seus raios superquentes. Descobriu da pior forma que a pequena estrela era de verdade, só não ateando fogo a si mesma e sendo reduzida à poeira cósmica graças à interferência dos ventos, que envolveram seu corpo até o último fio de cabelo, criando uma barreira de vácuo a sua volta. As radiações destrutivas do sol apenas afagavam seus braços, fantasma de vapor de água prestes a ferver.

Fascinada com o que acontecia, Tila continuou em frente e suas mãos adentraram a estrela anã — agora tão de perto dava para ver, ela não era maior do que uma bola de basquete —, chegando ao núcleo sem qualquer impedimento. O epicentro dela era extremamente duro e liso, tão morno quanto uma pizza prestes a cozinhar seus dedos. Tila puxou os braços de volta, tombando com o desespero de acabar sem membros.

Caiu sentada, a água (que enfim descobriu ser doce por ter respingado em sua boca) esfriando suas mãos, agora sem a proteção do vento, e o que elas seguravam firmemente. Um ovo grande o bastante para não permitir que os dedos dela se unissem. A casca era prata pura — a superfície irregular igual a papel alumínio esmagado refletia as cores ao redor (laranja metálico, azul metálico, verde metálico) —, um colírio para os olhos de qualquer um, fosse por ter um coração ganancioso ou por admirar belas esculturas, e aquele ovo era uma verdadeira obra prima. Queria que pudesse ver isso, Salen. Você, que é tão curioso, ia amar observar e fazer anotações científicas desse ovo.

 O que quer que houvesse dentro daquela joia (não importando qual fosse a cara da Nigma Sagrada adormecida dentro dele), Tila foi direito ao ponto, recitando os versos que Nírian soprara em cima dela.

Quando chegou à última palavra, as coisas simplesmente rodaram feito disco de vinil. O vento perdeu o controle, rodopiando a garota até ela estar no centro de um tornado. Institivamente, ela abraçou o ovo, protegendo-o do ataque que o vento desferiu contra eles em seguida.

#          #          #

Salen contou segundo após segundo, corroendo-se em curiosidade. Quero conhecer logo meu Nigma representante. O ajudarei a salvar seu mundo, e ele me ajudará a salvar o meu. Era justo, não tinha como negar. As galerias do Vale das Almeríades revelavam surpresas após surpresas, entretanto Salen se atinha mais aos ladrilhos pretos e brancos dos corredores, nervoso demais para observar os incontáveis elementos dignos de análise presentes naquele labirinto subterrâneo.

Ele queria jogar, explorar, mas nada disso teria graça sem Tila. Maninha, espero que se saia bem. Se os Digimons eram mesmo civilizados, dava para dialogar com eles. Os Nigmas são Digimons Deuses, não há dúvida. Se não os desrespeitarmos, nenhum perigo aparecerá… Salen nem acabou de pensar. Por favor, Joseph, não faça nenhuma bobagem. Além de ansioso, o pequeno nerd começou a ficar demasiadamente preocupado. Não. Tenho que manter a calma. Se eu perder a cabeça, o que farei? Alguém tinha que manter a calma por todos, pelo bem dos Digiescolhidos (o garoto não achava aquele nome bom para um grupo. Pois bem, teria que aceitá-lo até todos poderem se sentar para pensarem juntos em um novo nome).

— Enfim, chegamos. — Salen não se surpreendeu com o aviso de Nírian, ele vira de antemão a porta ao fim do corredor, distinta de todas as demais no ambiente. Era dupla e cada lado era uma perfeita asa de cisne, uma branca e outra negra. Na parte que elas se encontravam havia uma viga de madeira finíssima e cinza e bem no meio dela, dois puxadores com aldravas, tudo prateado. As chamas alvas dos castiçais no corredor conferiam um ar fantasmagórico à porta de face dupla. Aquela era a entrada do templo sagrado do Nigma que aguardava por ele, não havia erro. Salen se voltou para a Oráculo, esperando pela próxima instrução dela. — Meu bem, feche os olhos e se concentre na minha voz.

Ele cerrou os olhos, obrigando seus pensamentos a recuarem um pouco (depois de algumas tentativas falhas de meditação, Salen notou que não conseguia silenciar sua mente completamente). Sua atenção era toda de Nírian, que disse sem mais delongas:

Ouça-me, Salen Gewandsznajder, porque minhas palavras trarão o despertar de seu Nigma Sagrado. — As palavras de Nírian se agigantaram sobre o menino, mergulhando-o num mar imaterial de sombra que só seus olhos conseguiam detectar (peso nenhum e milhares de sensações em troca do toque dele), um brilho veio de acima, uma chuva de cacos de pura luz cristalizada (uma chuva de toques suaves sobre seu corpo pesado por conta da pressão do mar de escuridão).

 

A luz pode até

Encobrir a escuridão,

Mas não pode esconder a verdade

Do vosso coração,

Anjo de Luz e Sombra.

Flecha certeira

É para seus inimigos,

Bálsamo na ferida

É para seus protegidos:

Siga firme na justiça

E nunca se esqueça de nada,

Sábio espírito esperançoso.

Meça a tudo — do amor ao ódio, Pequeno Escolhido.

Assim que Nírian acabou de falar, Salen desabou no chão aturdido, por pouco não sufocara. O que foi isso?! O poder do Nigma é tão grandioso assim? Não havia forma de um garotinho tão pequeno suportar tamanho acúmulo de poder. Por isso devemos lutar ao lado dos Nigmas, não lutar com os poderes deles. Corpos humanos não aguentam tanto.

— Aqui, querido. Consegue se levantar? — Salen aceitou a ajuda da Oráculo, levantando com dificuldade. — Quer um copo d’água? Um pão de mel?

— Não… — Respirou fundo algumas vezes, conseguindo relaxar e firmar as pernas. Soltou as mãos de Nírian com delicadeza, não queria agir com grosseria sem querer com sua anfitriã. — Já me sinto melhor. Muito obrigado, senhora. Agora irei até o Nigma. Não é correto ficar aqui parado enquanto o povo do Digimundo sofre.

— Que menininho mais perceptivo, muito bem. Que a sorte esteja do seu lado, Salen.

— Do seu também, senhora Nírian. — Virou-se e foi até as portas.

— Um instante! Toque a aldrava pelo menos uma vez. Gaihu não gosta nem um pouco de ter seu sono perturbado sem aviso prévio.

— Ele me ouvirá daqui?

— Aposto meus cabelos centenários que sim.

Após essa breve conversa agradável com a Oráculo, Salen bateu duas, três vezes uma das aldravas, envolvendo o puxador com ambas as mãos e abrindo a porta para dentro. De olhos arregalados, o pequeno nerd adentrou a sala diante dele, encostando a porta atrás de si.

O fulgor que atraía seus olhos era mais belo agora dentro da sala do que parecera lá fora. Era uma biblioteca de apenas três cores: branco, preto e sépia. Prateleiras intermináveis de livros se estendiam para todos os lados, o chão parecia uma extensão do pavimento do resto da cidade-galeria — quadrados pretos e brancos, um tabuleiro de xadrez sem peças que parecia não acabar nunca —, tirando por algumas partes isoladas com desenhos de círculos espiralados de prata esfumaçada.

Todos os livros eram de capa dura cor de sépia com milhões de títulos conhecidos e desconhecidos, dando um nó na cabeça do garotinho que adorava estudar. O teto era um afresco de anjos tocando cornetas e trombetas enquanto voavam ao redor de um símbolo que conhecia bem — o yin-yang, preto no branco, branco no preto sem começo, meio ou fim. As únicas janelas que havia no lugar ficavam no topo de uma das paredes do salão, aberturas em arco — sépia no branco. Lâmpadas redondas como enfeites de natal flutuavam pelo espaço, acesas em luzes tão brancas que doeriam os olhos de qualquer ser humano comum. Mas não Salen (a visão dele era preparada para receber grandes descargas de luminescência, apesar dele não fazer ideia disso ainda).

Apesar da biblioteca ser um sonho de consumo, o menino se ateve ao motivo de ter ido ali.

Gaihu. Cadê você?

Correu por entre as prateleiras, procurando pelo Digimon Deus em todos os cantos com que topava. Foi encontrá-lo sobre uma mesa em um canto deserto da biblioteca (deserto de livros, nesse caso), um ovo repousado em uma almofada verde-escuríssima sobre uma escrivaninha, logo ao lado tinha uma ampulheta rachada ao meio, as areias azuis-elétricas dela se derramando no mogno. O ovo era o quebra-cabeça ideal da luz e das trevas, branco reunido ao negro, as peças pareciam mudar de posição como se flutuassem em uma substância líquida. Era bizarro e lindo numa tacada só. Salen não se cabia em alegria.

Pegou o Digi-vice no bolso do casaco e disse os versos de Nírian (as palavras vieram fácil para ele, de tão acostumado a memorizar os mais diversos tipos de informação), tocando meio tímido no Digitama ao terminar.

Esse brilhou e enegreceu com força máxima, explodindo numa névoa cinza. A névoa se dissipou, revelando uma bolota meio anil, meio nívea, asas imensas saíam de sua cabeça, envolvendo-a quase toda — Salen logo percebeu que as asas da criatura eram as orelhas dela. “Ele me ouvirá daqui?” Lembrou-se do que ele próprio dissera e perdeu o fôlego (com aquelas orelhas, com certeza que ele ouviria. Devia ter uma audição com um alcance de quilômetros). O serzinho afastou uma das asas-orelha do rosto, e um grande olho violeta encarou o pequeno nerd — Salen não se aguentava de emoção. Não tem nada a ver com as esculturas de deuses que já vi. Uma espécie de divindade diferente…

— Gai… hu?

— Sim, sou eu — confirmou a criatura com sua voz aguda (parecia uma criança!). Talvez seja mesmo. Um bebê, considerando que acabou de nascer. — Você é minha Criança Escolhida, não é?

— Sim. Meu nome é Salen. — Gaihu tirou as asas da frente do corpo, se mostrando de vez. O pequeno nerd ficou chocado. Ele parece um hamister, um coelho, um morcego e ao mesmo tempo nada disso! Essa devia ser a graça dos Digimons: parecer muito com algo e ainda assim ser único. Os olhos violeta de Gaihu eram tão infantis, tão inocentes, que seria difícil achar que ele vivera outro dia fora aquele, quem dirá dizer que ele vivera provavelmente vários séculos, já que se tratava de uma divindade. Que lindo. Nunca me imaginei encontrando com um deus ainda em vida. Ah, se pudesse mostrar sua nova descoberta para todos na Terra!

— Oi, Salen. Em tese, meu nome é Gaihu, mas se quiser me dar um novo nome… — A bolota falante deu de ombros, se é que isso era possível, já que seus bracinhos eram minúsculos (as patinhas eram roxas, como as pontas das asas-orelha). A barriga e o rosto redondo eram brancos e o pequeno nariz era lilás-azulado. — Ficar dizendo o tempo inteiro o nome divino não é legal. É como acender um farol no meio de um campo inimigo.

— Posso pensar? — Ele é um deus. Não posso nomear assim. Preciso de tempo. Tempo!

— Claro. Mas o quanto mais rápido for, melhor. Pode me chamar de Asinha enquanto não pensa em nada. — O garoto nem teve tempo de digerir a tentativa de piada do Digimon e levou um abraço dele (ele envolveu os ombros de Salen com as asas, espalmando as patinhas no peito do menino). — Ah, estou tão feliz em te conhecer, Salen!

— Opa, calma. — O pequeno nerd podia sentir o coração acelerado da criaturazinha; isso trouxe lágrimas a seus olhos.

— Melhor dia nos últimos três séculos… — Suspirou Gaihu feliz. — Agora… empresta o Digi-vice?

#          #          #

Haruka estava cansado de andar.

Sentia-se vazio. Ele até queria ficar assustado, chocado, incrédulo, animado. Contudo, tudo que sentia era uma leve sensação de desespero, uma pluma flutuando a esmo na beirada de um precipício. Foi com a Nírian que o guiava sem dizer uma palavra, tentando não pensar em nada…

De cara, conseguiu ficar quieto. Mas sua mente não o deixou em paz por muito mais tempo. A lembrança do sonho em que um leão o perseguia voltou a atormentá-lo, fazendo o medo crescer gradativamente no peito do garoto, um incômodo o cutucando teimosamente. Agora não, coração. Não fique nervoso agora. Bateu no próprio peito com o punho fechado, enfim assustado. Aquele era um péssimo momento para perder as estribeiras.

Como será que Chain’relk deve ser? O nome dele volta e meia retornava com força total, dando alfinetadas na sua alma. Ele é um Digimon, um Digimon que guarda o Digimundo. Ele não pode ser cruel, não é?

Haruka estava tão distraído (como ele fora da morbidez para o nervosismo tão rápido assim?! Ah, a culpa só podia ser da mudança radical em sua vida) que via apenas dentro da própria mente — a galeria que se desenrolava a seu redor passava em branco para ele.

— Até que enfim chegamos.

— É aqui? Tão simples assim? — ele perguntou. Estavam em outro corredor sem nada de diferente dos outros por onde tinham andado (até os castiçais pareciam os mesmos!), o único detalhe novo na paisagem mórbida era a porta diante deles, feita de cedro e gelo sólido, um gelo que não derretia e, portanto, não encharcava a parte de madeira da porta. Lindo e impossível de existir. Pensou Haruka embasbacado, e ainda assim estava ali de pé à sua frente. Tudo é possível, simples assim. Ele se convenceu, indo para a porta, impelido por uma coragem que não pensava possuir (tremia de pavor dos pés à cabeça). Nírian o impediu.

— Eh, eh, alto lá, meu caro viajante. Não vá entrando dessa forma.

— Por quê? Falta alguma coisa?

— Sim, mas tem outra coisa. Ao passar por essa porta, estará em um templo erguido para Chain’relk, a autoridade entre os Nigmas Sagrados, o mais sentimental e responsável Digimon que existe, um bichinho complicado e amigável que lidera como ninguém. Ele se entristece quando vê corações duvidosos, e é exatamente como o seu coração se encontra. Por que tem tanto medo, meu bem? — Haruka abaixou os olhos, envergonhado por estar agindo de uma forma tão ridícula. — O Digimon além dessa porta quer muito compartilhar o destino dele com você. Alegre-se, pequeno Haruka, você é o primeiro dentre os humanos que ele escolhe para parceiro, o primeiro dos primeiros. Não há com o que se preocupar. — Saber aquilo lhe deu alguma força para seguir.

— É mesmo?

— Tenho certeza. Seu Digi-vice está aí, certo? — Ele balançou a cabeça, dizendo que sim. — Ótimo. Agora, feche os olhos e se concentre em minha voz… — Haruka fechou os olhos depressa, querendo que aquilo acabasse de uma vez (não se sentia seguro, mesmo com as coisas maneiras e reconfortantes que a Oráculo dissera. Sua ansiedade era intensa demais).

Ouça-me, Kanata Haruka, porque minhas palavras trarão o despertar de seu Nigma Sagrado. — As palavras de Nírian caíram sobre o menino como uma breve nevasca, cobrindo-o com afagos suaves e agradáveis (infelizmente, o que era bom não durou muito). Ele logo sentiu os pés pesando, a neve faz de conta o atrapalhando a se mover (queria dar uma olhada no que acontecia de fato, mas não encontrou forças para abrir os olhos. Uma venda invisível parecia ter coberto sua visão). Então, ondas de calor o lamberam, uma quentura morna que o amorteceu como se tivesse se enrolado em um edredom num dia incrivelmente gélido.

Doce geada,

Chama bravia,

Resiste a tudo

Ajuda a todos,

É aquele que vê frio e calor

Dentro da alma:

Aquele que suporta.

Coragem e altruísmo

Nunca lhe faltam,

Ó, bravo Sacerdote de Éter,

Que nunca desiste,

Nem quando não parece haver

Qualquer salvação.

Recupere o que se perdeu, Humilde Escolhido: restaure.

Quente e frio se chocaram, causando um choque término em Haruka. Ele abriu os olhos de supetão, abraçando a si mesmo como se fosse morrer congelado, apesar de transpirar feito um louco. O que foi isso? O que essas palavras fizeram comigo?! Não conseguiu perguntar, estava mais preocupado em voltar aos eixos. Focou os pensamentos em coisas que o deixavam feliz, e seu coração foi se acalmando.

— Consegue ir adiante?

— Consigo. Arigatou, Nírian-sama.

— De nada, Haruka-chan.

— Nos vemos depois?

— Claro. A você e a todos seus companheiros de missão, desejo boa sorte e muitas benções.

Sorriu para a Oráculo, agradecido pelo apoio e pela compreensão dela. Transpôs a porta de gelo e cedro, chegando a um lugar inacreditável. Fora parar num bosque — um bosque dentro de uma sala de paredes circulares, era como estar encerrado em um cilindro gigante — onde as árvores tinham troncos e galhos de gelo sólido azul-esbranquiçado com folhagens de laranjas, amarelos e azuis holográficos (as folhas pareciam revestidas com cristais em vez de queratina). Havia poças cheias de lava em intervalos superior a um metro no chão coberto de neve e de uma terra negro-cinzenta esfarinhada (aquilo eram cinzas?!). Quantas árvores morreram para produzir essa quantidade de fuligem? O céu era rocha vulcânica regelada, cristais de gelo desciam aqui e ali e se sobressaíam na forma de estalactites. Em um canto tinha uma minicachoeira com magma substituindo a água — o afluente incandescente simplesmente saía da parede por um buraco —, o fogo líquido despencava numa lagoa sem nunca transbordar. Isso deve ser o que mantém essas poças mortais… Haruka não gostava nem de imaginar.

Então algo — uma necessidade imensa de agir — se apossou do menino, e ele seguiu adiante, um passo de cada vez. O que eu tô fazendo?! Se isso me atingir, vão ter Haruka tostado no jantar de hoje. Só contava os segundos até o momento em que uma das bolhas que estouravam na superfície das poças mortais respigaria magma nele.

O pior aconteceu a seguir, quando a memória das palavras encheu sua cabeça, cegando-o momentaneamente. Num instante, ele andava sem rumo pelo bosque vulcânico congelado, no seguinte ele tropeçou em um galho partido no meio das fuligens, tombando sobre uma poça de lava — foi um mergulho impossível de ser evitado.

Na hora da queda, Haruka não teve tempo de gritar ou piscar, ele simplesmente estava no magma, afundando sem parar — a profundidade parecia ser relativa naquele mundo, porque a poça era tão funda quanto um lago (um lago cheio de fogo pastoso apenas um pouco morno e muito macio, toque de tinta fresca). Era meio difícil para se movimentar, o magma era bem mais denso que a água. O que aconteceu? Eu era para estar morto… Considerando que era um mundo digital, talvez muitas coisas tidas como inviáveis no mundo real pudessem se concretizar ali. Bem, não importasse o que fosse, ele estava vivo e isso era o suficiente para ele. Linhas dançantes de negro-cinzento e marrom-avermelhado marcavam o laranja-vivo da paisagem fluída que o cercava, era surreal ver todos aqueles detalhes tão de perto. (Ele só percebeu que respirava normalmente um tempo depois, quando seu lado reflexivo voltou à ativa).

Avançando mais um pouco, ele encontrou uma coisa que não deveria estar ali. Algo que não deveria ser possível. Em uma violeta exagerada de tão grande sobre um altar esculpido em pedra vulcânica em cima de uma colina negra, havia um Digitama. Sua casca era azul-glacial e era forrada por geada do branco mais puro que já vira, por alguns lugares da casca havia símbolos talhados — os mesmos símbolos que lavrava o altar em que estava o ovo, uma beleza rara que merecia ser apreciada por muitos em vez de ficar esquecida em uma caverna submarina (magmarina, nesse caso). Achei você. Haruka não precisava ser esperto para saber que era naquele ovo que descansava o Nigma Sagrado que o acompanharia em toda sua jornada em Okgeiden.

Aproximou-se do altar, pegando o Digi-vice no bolso de sua calça. Parou diante da flor, vendo seu reflexo no Digitama — só parte dele, mas aquele pouco bastou para Haruka dar uma olhada nele próprio. Ele usava uma blusa lilás com um urso panda usando óculos desenhado na frente, calça jeans lavado, pulseira de pano do mesmo tom creme de seus sapatênis e seus usuais óculos de aviador — item que jamais largava — pendurado em seu pescoço, o marrom dos óculos não combinava em nada com o resto do conjunto. Os cabelos, sem o efeito do gel que geralmente usava, caíam soltos ao redor da cabeça, uma franja comprida roçava um tiquinho suas pálpebras quando piscava. “Está bonito”, podia ouvir Suya dizendo (ela adorava quando ele deixava os cabelos livres de produtos químicos). Não posso esquecer de perguntar se Nírian tem gel pra cabelo…

Parando de hesitar, apontou o Digi-vice para o ovo e repetiu os versos do poema recitado por Nírian; as palavras vieram com a mesma facilidade com que se respira. Assim que acabou de recitar, o Nigma logo deu sinal de vida.

Um clique alto se fez presente, e o ovo rachou, pedaço a pedaço a casca e a geada caindo, virando vapor e então nada assim que tocavam o altar de pedra. Uma nuvem de calor condensado cheio de fragmentos de gelo que haviam aprendido a voar e de fagulhas mais brilhantes que todo o magma em volta se formou à frente do garoto, circulando os restos do Digitama e o rodopiando rápido, rápido e mais rápido a cada milissegundo, até estar na velocidade da luz. Haruka não conseguiu desviar os olhos, era lindo demais para perder qualquer detalhe que fosse.

O tornado se desfez, desaparecendo sem deixar rastros, assim como o Digitama. Agora, no meio das pétalas da violeta anormalmente grande, tinha um coelho cor de creme, as orelhas dele eram enormes e possuíam californiana coral, escurecendo até um tom acentuado de castanho bem nas pontas das orelhas — elas eram divididas em duas um pouco antes de alcançarem o chão (belas características que o diferenciava de qualquer coelho que Haruka já tivesse visto). No topo da cabeça se pronunciava um pequenino chifre espiralado de cores (cor de areia, terracota, branco) e as patas dele eram das mesmas cores do chifre. Ele não era muito maior do que um bichinho de pelúcia e era tão fofo quanto um. Por que um deus como ele tem uma cara tão meiga? Algo assim não era para ser permitido! Haruka quis abraçá-lo e fazer carinho nele, porém se conteve.

— Eu sou Chain’relk, o Nigma do Fogo e do Gelo, guardião da Coragem e do Altruísmo. Você é aquele que eu tanto procurava. Diga seu nome, meu Digiescolhido.

— Haruka. Muito prazer, Chain’relk.

— Oh, não. Chame-me assim apenas quando mais precisar de mim. Os Nigmas sempre assumem nomes temporários para andar discretamente pelo Digimundo. Nomeie-me, Haruka.

O garoto pensou por um tempo. Ele não precisou de muito tempo, sempre fora bom com nomes.

— Zero…? — Olhou nos olhos castanhos-avelã do Nigma. Eles eram velhos ao passo que infantis, sábios à medida que inocentes (olhos que atravessavam Haruka. Ele podia sentir o olhar do Digimon Deus no âmago da alma). — Zero está bom?

— Zeromon, por tanto.

— Zeromon? — Estranhou Haruka. — Não, falei só Zero.

— Os nomes dos Digimon sempre terminam com o sufixo “mon”. Zero é o nome que me deu, mon é a marca do que eu sou em meu nome, portanto Zeromon.

— Ah, tá. Então, Zeromon, tem um plano para pegar Aíria?

— Preciso conversar antes com Souruki, minha melhor estrategista. — Deve ser um dos outros Nigmas. Ele só imaginava de quem a tal Souruki poderia ser parceira.

— Vamos então?

— Primeiro…

— O quê-? — O garoto não estava esperando por aquele abraço. Zeromon saltou do altar e o envolveu com as orelhas num abraço caloroso, era como ser envolto por uma almofada muito macia que tinha desenvolvido braços. Os braços dele são muito curtos para me abraçar. Divagou Haruka, retribuindo o carinho. Fechou os olhos com um sorriso no rosto. Era engraçado como superara seu medo de uma forma tão inusitada. Obrigado, Zeromon. Sem você eu não teria conseguido calar minha fobia. Quando não estava derretendo e transformando as coisas em carvão, magma conseguia ser um elemento maravilhoso.

Ok. Tenho que ver como os outros estão. Apesar de conhecer Tila e os outros há tão pouco tempo, a segurança deles importava bastante para ele.

#          #          #

Tila, Lua e Joseph não tiveram a mesma ideia de Haruka e Salen, e por isso os Nigmas dos três não despertaram logo de imediato. Eles se esqueceram de seus Digi-vices, que deviam estar em mãos no momento em que recitaram os chamamentos — que alguns chamaram imprudentemente de “poema” (na verdade, Nírian era culpada por aquilo ter acontecido, principalmente por não ter dito que eles precisam segurar os Digi-vices na hora em que acordassem os Nigmas).

Por causa desse descuido da Terceira Oráculo do Digimundo, três dos cinco Digiescolhidos corriam perigo de vida.

Assim que a cabeça de Joseph iria acertar em cheio na parede do Templo de Mizart, água saltou da piscina do salão, se reunindo na parede e amortecendo o corpo do garoto. O Escolhido de Yew gritou algumas vezes, olhando a tudo aterrorizado enquanto abraçava o ovo de seu Nigma. Gritou, elevando tanto a voz que deu uma bolha de ar em seu cérebro. Joseph desmaiou, caindo todo mole no deque do salão-piscina. O ovo rolou para fora de seus braços, quebrando em pedaços. A criatura que saiu de dentro dele dava alguns traços com um leão-marinho e com um lobo, de pelagem albina, um branco incorruptível como seu coração. Seus olhos eram do mesmo rosa de suas garras, e a majestosa crina que seguia de sua cabeça até a base do pescoço era de um azul cobalto vibrante, um moicano de dar inveja. No meio da testa, saía um chifre dourado como o de um unicórnio. Ainda sonolento, o leão-marinho-canino (ou Mizart, como ele amava ser chamado) levantou e foi em seu andar pausado até seu Digiescolhido.

— Fracote! — murmurou brincalhão, chegando o focinho perto do rosto de Joseph. — Dorme um pouquinho, chefe. A gente já se fala. — O Nigma se concentrou, puxando um carrinho manual em formato de concha e arrastou Joseph para dentro dele, pondo-se a puxar o carrinho. — Que bom que meus braços não são finos que nem os seus, se não eu teria sido obrigado a chamar a chata da Nírian. Não vou com a cara daquela abusada… — Mizart continuou a reclamar, arrastando Joseph de volta para o começo, para o Salão Central.

Em vez de ser empalada por um bando de cristais afiados, Lua caiu num monte de flores fofinhas — os cristais tinham sido convertidos nas flores (um método sempre usado pela Nigma Iania quando ela sentia que tinha alguém em perigo por perto). A visão dela perdeu o foco e logo estava nos braços de Morfeu, sonhando que perseguia canários cor de rosa.

O Digitama no berço estourou em milhares de pedacinhos, deixando para trás um pássaro curiosíssimo — uma mistura perfeita de arara azul com águia. Ele era atarracado, de penas inteiramente azuis com bico de um cinza-escuro impressionante. As asas eram de arara, os olhos cor de âmbar e as garras afiadíssimas como as de uma águia. Flores de cerejeiras brotavam nas laterais de sua cabeça, servindo como orelhas para o pássaro (na verdade, era uma passarinha. Uma linda Digimon de aparência única. Única como qualquer um dos Nigmas).

A Digimon — mais conhecida como Iania — se espreguiçou e se pôs de pé. Então, ela viu Lua desabada sobre as mais novas flores do templo-jardim.

— Oh, isso é um desastre! — Ela surtou, voando até Lua. — Acorda, acorda! Acorda, por favor. — A garota não reagiu aos estímulos de Iania, que sacudiu o ombro dela e afagou o rosto dela. — Ai, não adianta, ela não vai acordar. Não se preocupe, logo você vai despertar e vamos poder nos conhecer, doce menina.

Tila apertou mais ainda os braços ao redor do Digitama, obstinada em protegê-lo. Nada tira ele de mim! Mas a menina não pôde competir com a força dos ventos, que a nocautearam. Ela desmaiou na hora, tombando sobre um agrupado de condomínios de brinquedos ao lado de um coqueiro cheio de cocos prontos para serem colhidos. Com o desmaio repentino da garota, o ovo voou longe, quicando duas vezes antes de se espatifar em muitos e muitos cacos de prata cromada. Do ovo destruído emergiu uma linda criaturinha, uma mescla encantadora de raposa com leão (quer dizer, leoa. Souruki era a mais forte dos Nigmas Sagrados, a estrategista genial a qual Chain’relk se referira). Os pelos dela eram louros, amarelo-canários na maior parte de sua cauda de raposa e nas patas felina, e carmim na ponta da cauda e nos pelos ao redor de seus olhos de joias verdes.

A ventania violenta parou com o despertar da raposa-leão.

— Ora, ora, essa é a menina de quem me tornarei parceira? — Souruki foi andando devagar até Tila, ciente de que ela não acordaria por enquanto. — Bem, tudo bem, ela é bonita e consigo sentir que ela tem um espírito forte compatível com o meu. A humana que escolhi. — Acariciou com a patinha peluda o rosto da pequena roqueira, dando um sorriso meio irônico, meio empolgado. — Seja bem-vinda ao Diginferno, minha criança. Nos falamos assim que acordar.


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Notas finais do capítulo

Entonces, fico feliz que tenha chegado até aqui. A gente se vê, brigadeirinhos S2



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