Drania escrita por Capitain


Capítulo 56
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Notas iniciais do capítulo

atrasado? até parece. eu estou apenas adiantado de ré.



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Estranhamente, no fim, eu não senti ansiedade, medo, ou mesmo raiva.

Havia dor, mas também havia paz, e uma certa curiosidade mórbida, uma lógica fria, que governava meus últimos pensamentos. Não havia outra escolha. Meu rosto ardia como se eu houvesse mergulhado em metal derretido, mas minha mente permaneceu clara.

O Arauto desapareceu da minha visão, quando meus olhos desapareceram da face da terra. Na minha última memória, lá estava ele, parado.

Ele não pode dar para trás agora, percebi. Não em frente aos seus súditos, não quando ele havia acabado de fazer uma demonstração de poder. Recuar seria admitir a derrota, sem contar que os orcs deviam estar extremamente confusos com a minha presença, devido ao à nossa encenação mais cedo. Um fantasma aleatório, ou possivelmente uma parente do Arauto, que devia ter sido exorcizada mais cedo pela bruxa, mas surgira de repente e ameaçava se matar.

Recuar perante algo assim seria como um rei dando passagem para um mendigo.

Se eu pudesse, teria rido mais um pouco. Eu ia morrer, morrer de verdade dessa vez. Mas pelo menos, os planos que ele tinha pra mim estariam mortos e enterrados comigo.

Aurora e Goroth ainda podiam seguir em frente desestabilizando o controle do culto sobre os orcs, podiam avisar o mundo da conspiração para começar uma guerra. Não era um fim perfeito. Eu me sentia levemente incomodada por não saber exatamente o quê estava acontecendo, e...

Alice.

Eu voltei dos mortos para te ver de novo, te dizer...

 

Eu não consegui, afinal.

O Vazio tomou conta da minha existência, e a sensação de paz se foi. Todas as sensações se foram. Havia apenas o nada, e suas insistentes perguntas.

O que você quer?

Não sei.

Qual é seu nome?

Não sei.

Quem é...

De repente, o vazio se fora, suas perguntas interrompidas, seu frio abraço expulso. No lugar, havia calor. Um calor familiar, delicado, amoroso.

Um calor que me lembrava...

A sala era completamente abarrotada de livros. Não apenas as estantes, mas o chão, mesas e o peitoril das janelas, também. Mesmo assim, ela ainda tinha mais espaço livre que um andar inteiro do prédio em que eu morava.

A luz que entrava pelas janelas dispersava-se no ambiente levemente empoirado, formando belas faixas luminosas entre as inúmeras pilhas de livros. Com cuidado, eu lentamente circulava pela sala, desviando de livros e tentando não deixar meu nervosismo tomar conta.

Alice e eu mal havíamos entrado na biblioteca quando Frieda, a criada, entrou correndo e arrastou Alice pelo braço para fora, mencionando algo sobre uma emergência. Era desconfortável ser deixada sozinha naquela situação, e eu fiquei sem saber o que fazer.

A forma como Alice parecia animada para me mostrar esse lugar, e sua óbvia frustração por ter que sair do nada eram divertidas, entretanto. Eu pude ouvir claramente, mesmo depois da porta fechar, Frieda sussurrar "não faça bico!".

Cada passo que eu dava parecia se perder entre as folhas, o som engolido pela enorme quantidade de pergaminho e papel. Minha garganta já estava seca, e não fazia nem cinco minutos. Seria a poeira? A baixa humidade no ar? Nervosismo?

Mesmo sem ninguém olhando, eu disfarçei um sorriso e fingi pegar um livro para ler.

Frequências místicas, geometria das runas e orações: Refutando a tese da magia unificada de Azfar

Coloquei o livro de volta no topo da pilha. Era difícil de ler o até o título, e parecia ser chato. Magia não era algo que me interessava, pelo menos não mais. Me pergunto o que Zhar diria se soubesse que eu tinha parado de estudar. Me daria uma bronca, aposto. Ou talvez ele entendesse. Livros eram um luxo que eu nunca conseguiria bancar sem ele. Tenho certeza de que Zhar adoraria esse lugar, pensei. Era bem o estilo dele.

A quantidade de livros naquela sala devia custar uma fortuna. Melhor não tropeçar em nada. Será que Alice ia demorar? Peguei outro livro de uma pilha sobre uma mesa. A capa de couro verde tinha uma ilustração de uma montanha que parecia familiar.

A história e os mitos: Um compilado de relatos sobre A Montanha de Fogo, por Abraham Azfar.

Abri o livro em uma página qualquer. Havia uma ilustração da mesma montanha, porém mais baixa, e com o que parecia ser uma nuvem de poeira ou fumaça saindo do topo.

Grande erupção de 632: homogeneidade dos relatos e consistência no número e conteúdo de mitos locais sugere...

Um livro diferente me chamou a atenção no meio da sala, em um pedestal. Era velho, e as bordas das páginas eram irregulares. Estava aberto em uma página bem próxima ao meio, de maneira cerimonial, como se a sua simples presença trouxesse saúde e fortuna.

Era óbvio que livro era aquele. As cartas. Me aproximei com cautela. Isso é estúpido, me repreendi mentalmente. É só um livro. Mesmo assim, não consegui deixar de sentir um peso no estômago. As letras do manuscrito eram impecáveis e cheias de floreios, as margens de cada página adornadas com ilustrações douradas.

Fortificai minha cidade, ó povo escolhido, para que o poder da Ordem seja à todo inimigo causa de terror, e todo fiel motivo de orgulho...

— Finalmente! - Alice tinha uma aparência cansada ao retornar pela grande porta de carvalho. Sua voz mal saía, sem fôlego, e suor escorria sobre sua pele perto das raízes do seu cabelo ruivo. - Desculpa deixar...

— Respire primeiro. - eu falei - parece que você vai morrer a qualquer momento. O quê é que você foi fazer?

— Cura de... emergência... - ela apoiou as mãos nos joelhos e respirou fundo enquanto eu contornava os livros todos apressadamente para segurá-la antes que ela desmaiasse - Um dos nobres caiu do cavalo.

— Você fica nesse estado toda vez que...

— As preces não são simples orações ou desejos, Drania. - ela ofegou mais algumas vezes e se pôs em pé - elas são pedidos diretos a Vraal. Elas precisam de uma oferenda.

— Oferenda?

— Em troca da cura, você... - ela se interrompeu - o quê você estava fazendo?

— Fingindo interesse em todos esses livros - decidi ignorar a óbvia mudança de assunto. O que quer que ela ia dizer, estava claro que era segredo, ou um assunto desagradável - sinceramente, não sei o que você vê nesse monte de papel velho.

— Você tava tentando ler essas chatices aqui? - ela riu - esses eu só pego pra estudar quando tem prova!

— Prova?

— Não importa - ela me pegou pelo braço e começou a me arrastar por entre os livros, na direção de um canto que eu não tinha notado antes.

Próximo a uma das enormes janelas, e embaixo de uma escada que levava para o andar de cima, havia uma espécie de alcova vagamente circular. Visto que a escada passava em frente à janela, havia apenas um pequeno feixe de luz vindo da parte de baixo da mesma, iluminando, no centro do pequeno espaço, uma mesa com vários livros coloridos dispostos de maneira desorganizada.

Ao redor da mesa, havia uma imensa pilha de travesseiros, jogados para lá e pra cá sobre o que um dia fora um banco de madeira. Alice soltou minha mão, pegou um dos livros da mesa e se jogou na pilha de travesseiros com um suspiro.

— Esse é o meu cantinho! - ela disse - não é grandes coisas, mas é que eu tive que realocar que a minha casinha de bonecas foi... Enfim. É aqui que eu venho quando preciso relaxar.

Eu peguei um dos livros fechados sobre a mesa, esperando que por estar fechado, não estivesse sendo lido. O livro era bonito, de um jeito simples. A capa de couro era tingida de azul, e um simples símbolo dourado bem no meio, semelhante a uma runa élfica? O título era escrito na língua de Argoth, da qual eu sabia muito pouco, mas o nome embaixo me chamou a atenção: Kaelid Azfar.

— Você sabe ler em Argoth? - perguntei

— A língua não é "Argoth', Drania - ela me corrigiu - o idioma se chama Roëlith, e... - ela percebeu que eu não estava interessada na aula - sim, eu sei ler Roëlith. Azfar é meu autor favorito. Eu tehno uma cópia desse romance em língua comum em algum lugar...

Ela revirou alguns livros e me entregou um volume marrom. O título era "A guerra dos dois cajados".

— Esse cara é tipo um parente de Abraham Azfar? Eu vi vários livros com esse nome.

— Ele é neto do historiador.

Abri o livro. A história começava apresentando uma garota chamada Elizabeth. Uma princesa de... Vralgongard? A cidade apresentada no livro era bem parecida com Vralgongard, e havia até uma seção dedicada à floresta negra e à montanha de fogo. Elizabeth era uma princesa guerreira, porém presa em seu castelo, impedida de sair por conta de seu status. Ela tentava de tudo para fugir e se aventurar, porém seus planos sempre acabavam frustrados, e quando ela finalmente achava que conseguiria, uma guerra começa e a cidade fica sitiada. O tom do livro era pessimista, mas ao mesmo tempo engajante de uma forma sutil, e a protagonista...

Quando percebi, já havia lido três capítulos. Livros podem ser interessantes, afinal. Ergui meus olhos da página. Alice me encarava com expectativa.

— A história parece interessante - eu disse, simplesmente.

— Você lê rápido assim?

Ops. Eu havia esquecido por um momento que eu não podia parecer suspeita.

— Eu... - uma plebeia não deveria sequer saber ler, mas lá estava eu, lendo capítulos inteiros em menos de cinco minutos. Zhar, pensei, suas aulas acabaram sendo uma faca de dois gumes. — hããã... eu meio que preciso ler rápido porque... eu trabalhei bastante no porto?

— Ah - ela disse. minha explicação frenética pareceu surtir efeito - enfim, eu gosto muito dos livros de Azfar, porque eles... eu...

Ela se identifica com a protagonista. Uma princesa que não pode sair, uma mera ferramenta para os poderosos usarem. Alice... de repente me lembrei. No dia que a conheci, nos escondendo dos atormentados no cemitério.

Eu só...— Ela dissera - Queria ver como a cidade era antes de... Antes de...— sua expressão era tão triste e apática... Resignada.

Alice... Você...

— Você está morrendo de novo. - A voz súbita e mordaz da garotinha me fez pular. - Foram quantas vezes essa semana?

Lá estava ela, equilibrando-se sobre o pedestal, pisando nas cartas de Vraal como um estranho pássaro molhado em um poleiro de mármore, descolorida, apagada, como se fosse parte de um rascunho rabiscado às pressas.

A água fluía das dobras de seu vestido preto, e penas de corvo se desprendiam do seu cabelo feito de pura escuridão. A sua pele já não tinha mais cor, e ao seu redor, o mundo era preto e branco, como tinta no papel.

— Já que você não entendeu ainda - ela falou, e sua ira me fez tremer - eu vou ter que desenhar.

Seus olhos cravaram uma vala em minha alma. Eles eram abismos profundos e insondáveis, totalmente negros. Subitamente, eu me senti minúscula, impotente, como um grão de areia em um vasto deserto. Ela não era humana. Ela não era algo que eu podia sequer chegar perto de compreender.

— Drania, emissária da morte - ela ergueu a mão, e o mundo ruiu, explodindo em poeira e fumaça - eu vou te mostrar como o mundo acaba.

 

 


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