Drania escrita por Capitain


Capítulo 46
Sacerdote


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!
capítulo novo em... breve?



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/788789/chapter/46

—é assim? - Alice me perguntou pela sexta vez.

— Mantenha seus pés firmes - eu disse, segurando-a pela cintura - e tente sempre manter seu torso em posição, mesmo quando desviando de alguma coisa. Se seus pés não estiverem bem posicionados, você vai cair, ou melhor, vai ser derrubada. Manter o equilíbrio pode ser uma questão de vida ou morte as vezes.

— Tudo é uma questão de vida ou morte para você - Alice brincou - você não acha nada divertido?

— Você tentando parecer intimidante é bem engraçado - eu falei - e foi sua ideia aprender a lutar.

— Eu não quis dizer realmente aprender a lutar, Drania. Só... sei lá, dar um bom soco. ou dois.

— Quem tirou sarro de você dessa vez? - eu puxei seu braço para a posição correta e ela ficou ali, parada no meio do jardim, como uma estátua. Uma bela dama, de uma família nobre, em um vestido coberto de babados, brincos de ouro, um leque na mão esquerda, a mão direita estendida e o punho fechado. Sim, uma nobre dama, congelada no tempo, bem no meio de uma briga de rua. Alice, ainda sem deixar a pose, virou o rosto para me encarar, completamente ignorando minha pergunta.

— E então? - ela disse - agora está certo?

— Sim, agora está. - Eu ignorei as falhas na postura dela, porque provavelmente não iriam melhorar nada, mesmo que eu as indicasse - Exceto pela parte em que você deveria estar se movendo.

 Ela finalmente deixou de bancar a estátua, e parou, com as mãos na cintura, e fez um biquinho enquanto fingia observar algo muito interessante na árvore à sua esquerda.

— Não vai me contar quem conseguiu irritar tanto a senhorita Alice que ela atravessou a cidade uma terceira vez apenas para me pedir aulas particulares no caminho da violência?

— Eu ja disse que não pedi pra aprender a lutar - Alice virou o rosto ainda mais longe, e o biquinho ficou um pouco mais pronunciado - e ele não é da sua conta.

— oho, então realmente existe um alguém - eu falei, com um sorriso malévolo - e um ele, ainda por cima. Agora eu realmente estou curiosa.

— Eu não gosto dele, se é isso que está pensando - Alice ficou vermelha na hora - e ele não é um garo... quer dizer, ele é, mas...

— Não vai me contar? - eu falei - tem certeza?

— Não é nada de mais - Alice desfez a pose infantil, mas sua expressão me dizia que era algo de mais — um dos eunucos que serve no templo fica espalhando mentiras sobre mim e meus pais.

Espere, eunuco? Alice deve ter notado minha expressão confusa, porque ela imediatamente explicou.

— O templo emprega eunucos para auxiliar as sacerdotisas e aprendizes com as tarefas diárias - ela falou - como eles não... têm... hã...um... hã... as... as aprendizes deviam ter um eunuco como servo... e o que foi indicado pra mim é o pior fofoqueiro mentiroso do mundo! Ele inventou que meu pai não é meu pai, só porque eu tenho um cabelo ruivo e meu pai não tem...

— Mas sua mãe não é ruiva?

— Ela é, por isso mesmo não faz sentido nenhum! - ela reclamou - ele fica me provocando só porque eu estou sempre soz... porque eu gosto de estudar, e ele quer que eu vá às festas para ele poder ficar conversando com os outros eunucos.

Ah, é. Alice era a garota solitária. Por um instante eu me perguntei como isso sequer era possível, com o jeito divertido dela, e a sua determinação de continuar sendo minha amiga mesmo com a distância e as diferenças que nos separavam. Mas aí eu lembrei do sorriso de Zhar. É, as pessoas discriminam sem motivos. Eu sacudi a cabeça.

— Não acho que bater nele seja a melhor forma de lidar com a situação.

— Eu não vou bater nele - Alice refez o biquinho - mas que dá vontade, dá.

— Falando nisso - eu tentei mudar de assunto -você nunca me contou o que tanto você faz no templo.

— Você está falando sério? - ela estava tão chocada que nem percebeu - você não sabe?

— Eu imagino que você deve fazer alguma coisa relacionada a Vraal - eu deduzi - você reza?

— Espera aí, não é possível que você não sabe o que uma sacerdotisa faz. Está nas cartas de Vraal! todo mundo sabe!

— Bem, eu não sei - dei de ombros - ninguém é muito religioso... na verdade, esquece, as pessoas na zona norte são muito religiosas, sim. Eu e Zh... Eu não sou.

— Você e quem? - foi a vez de Alice me provocar.

— Ninguém. - Eu respondi - Um amigo. Ele morreu.

— Ah - a animação na voz dela morreu também - eu sinto muito.

— Está tudo bem - eu tentei desviar a conversa de novo - me diz, o que você faz, realmente?

Alice me observou com o rosto sério por uns instantes. Com um suspiro, ela decidiu continuar.

— Os sacerdotes e sacerdotisas da Ordem dedicam a vida a servir Vraal - ela começou - os sacerdotes são responsáveis por espalhar a palavra das cartas de Vraal pelo mundo, e as sacerdotisas são responsáveis por zelar pelos templos e comunidades. Fazer oferendas, realizar rituais, e encaminhar os pedidos dos fiéis a Vraal com nossas preces.

— Como aquilo que você fez no rio com Ada.

— Aquilo foi uma prece pedindo a cura de Ada, sim - nós estudamos as cartas, e decoramos as preces, e aprendemos os rituais, até completarmos 14 anos. e depois, nós somos iniciadas como sacerdotisas da ordem e passamos a viver no templo.

— Calma lá isso quer dizer que depois que você fizer quinze anos, você vai ficar presa no templo para sempre?

Alice suspirou.

— Eu não vou mais poder deixar o templo, a não ser para festividades e outros eventos da ordem, ou se um sacerdote precisar de auxílio.

Então era por isso que Alice queria tanto conhecer o mundo lá fora. No dia em que nos conhecemos, ela havia dito algo parecido. Na hora eu não prestara atenção, mas... eu nunca tinha saído do meu bairro - ela dissera - eu só queria ver como a cidade era antes... antes de... Eu tinha mudado de assunto ruim para um assunto pior. mesmo assim, eu não pude deixar de perguntar.

— Alice... é isso que você realmente quer fazer?

Havia um leve toque de vermelho no canto dos seus olhos.

— Eu...

— Ora, se não é minha mais aplicada aprendiz! - a voz grave e melódica era vagamente familiar, porém eu não conseguia lembrar de onde.

O dono da voz era um homem de meia idade, cabelo preto curto com um início de fios grisalhos, uma barba bem cuidada e penetrantes olhos azuis. Ele se aproximou, caminhando entre as flores à nossa direita, com as mãos nos bolsos. As suas roupas eram tanto estranhas quanto extravagantes, de um tecido que eu não conhecia, claramente feitas sob medida. A parte mais estranha era a gola alta e cachecol azul claro, no meio da primavera. Ele também não parecia ter nenhum problema em quebrar as regras do jardim e andar fora do caminho.

Embora seu tom fosse leve e divertido, o seu rosto era sério, quase carrancudo. Ele se aproximou, uma centena de borboletas levantou voo de entre as margaridas e desapareceu nas árvores próximas. Antes que eu pudesse lhe dirigir a palavra, Alice segurou meu braço com força e se ajoelhou, inclinando a cabeça de maneira reverente. Eu a copiei, após um instante de confusão, percebendo que aquela pessoa provavelmente não era alguém que eu podia desrespeitar.

 - Que a graça de Vraal abençoe seus passos - Alice entoou - para que possamos seguir suas justas pegadas no caminho da Ordem, ó enviado do Primogênito do Sol.

Será que eu devia repetir o que ela havia dito? Como eu devia cumprimentar esse cara? E se o cumprimento fosse algo específico para sacerdotisas ou servos do templo? O que ela quis dizer com “enviado do primogênito do Sol”? ela quis dizer Vraal? se for isso, ele é...

— Por favor, se levantem - o homem replicou - não há necessidade de utilizar cumprimentos tão formais, Alice.

Alice claramente tinha uma objeção, mas levantou, porém manteu a cabeça baixa, e eu a segui.

— Ora, parece que nem ouviram o que eu disse! - ele exclamou - nada de cabeças baixas também. Isso é uma ordem.

— é uma imensa honra - Alice finalmente ergueu a cabeça, mas o seu rosto continuava visivelmente apreensivo. - Supremo Sumo Sacerdote.

Então essa era a razão do desespero. Aquele cara era o Supremo líder de Vralgongard? Eu não o havia reconhecido, porque as únicas vezes que eu o havia visto tinham sido durante um de seus pronunciamentos, apenas á distância, em seus robes cerimoniais, antes de uma grande execução ou na abertura de um grande festival. Por isso sua voz era tão familiar.

 - é uma surpresa encontra-la em meu jardim favorito, Alice. - Ele disse - e em companhia de uma dama tão distinta. Não vai me apresentar sua amiga?

Eu imediatamente entendi o que ele estava pensando. O que você está fazendo no meu jardim? Quem é essa garota? Ela não parece alguém da nobreza, não com essa cor de pele. Talvez a filha de algum comerciante? Será que ela é um problema?

— Perdoe minha falta de cortesia - Alice inclinou-se mais uma vez - essa é Drania, parente de um dos meus servos, que se ofereceu para me acompanhar em uma caminhada.

Essa mentira deslavada sem nenhuma hesitação vinda de Alice me surpreendeu tanto que eu quase deixei escapar uma exclamação de espanto. E era perfeitamente adequada para a situação, ainda por cima. Como a parente de algum servo, alguma eventual descortesia por falta de conhecimento seria perdoada, e ninguém iria desconfiar ao me ver retornar pelo portão. Ela deve ter passado um bom tempo preparando essa desculpa, eu percebi.

— Drania... - O Supremo Sumo Sacerdote estreitou os olhos, demonstrando um súbito interesse em mim - Esse é um bonito nome... bem incomum. Foram seus pais que escolheram?

Não, foi Zhar. Quando nos conhecemos. Quando ele me salvou da neve.

O olhar dele era de curiosidade genuína, e talvez um pouco de aversão, como se o meu nome o fizesse lembrar de algo desagradável. Eu percebi que havia deixado o Supremo Sumo Sacerdote esperando por minha resposta enquanto lembrava de Zhar. Opa. Eu segui a linha de raciocínio de Alice, e complementei a mentira dela com detalhes vagos, porém convincentes.

— Perdoe-me por minha hesitação, e por não poder lhe oferecer uma resposta concreta - eu abaixei minha cabeça para falar, como Alice fizera, tentando meu melhor com o tom formal que eu ouvira Alice e Frieda usar quando conversando com outras pessoas ricas - porém meus pais morreram quando eu era pequena, e sendo criada por uma tia, nunca tive a curiosidade de perguntar sobre as origens do meu nome.

— Ah - seus olhos se acalmaram, e expressaram satisfação por um breve instante, antes de se encherem de uma falsa tristeza - se é assim, sinto muito por seus pais.

O Supremo líder de Vralgongard então estendeu a mão e bagunçou meus cabelos, num gesto calculado para parecer espontâneo e fraternal, mesmo que os seus olhos não contivessem nenhum indício de emoção. Eu estava tão aturdida pela situação que nem percebi que havia deixado meu toque aberto. Assim que a mão dele tocou meus cabelos, eu senti. Por um segundo, eu entrei em pânico, imaginando todas as formas dolorosas de morte que eu poderia ter se meu cabelo decidisse mudar de cor agora, ou eu revelasse minhas marcas.

Por sorte, nada aconteceu. Ele recolheu a mão, e eu disfarcei um suspiro de alívio. E então a realidade do que acabara de acontecer me atingiu. Eu havia sentido o Supremo líder de Vralgongard. Se eu guardasse e interpretasse aquelas informações... eu poderia...

Nunca se transforme em gente importante— a voz de Zhar me lembrou. - E nunca venda informações que você sentiu sobre alguém. É tabu.

Mesmo sem minha intenção, minha cabeça começou a processar as informações que o toque me revelara. O supremo Sumo Sacerdote havia bebido vinho a não muito tempo, pouco mais que um gole. Ele era saudável no geral, apesar de a idade estar começando a trazer seus problemas característicos. Suas juntas iriam começar a incomodar em breve, e seu coração talvez começasse a mostrar sinais de fraqueza em dez anos.

Além disso, havia algo mais. Seu sistema nervoso era estranhamente denso, de uma forma diferente dos transmorfos. Seu cérebro era bem mais desenvolvido do que o de um humano normal. Mas não era isso o que estava me incomodando. Quanto mais eu me aprofundava nas informações que meu toque havia revelado, mais eu tinha aquela sensação de familiaridade, de que eu já tinha sentido partes dessas mesmas informações antes.

Várias vezes.

Em Alice.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

sim, eu planejava ter revelado isso uns dez capítulos atrás, em outro sonho.
mas talvez assim fique melhor para a parte que todo mundo está esperando:
a junção de todos os misterinhos no misterião, e sua subsequente resolução.
É estranho escrever sobre os poderes de um transmorfo na perspectiva de Drania, já que o próprio conceito da raça é baseado na medicina e bilogia moderna com um pouco de alguma magia não especificada para explicar as partes impossíveis. é muito mais fácil explicar o que acontece em termos modernos, como "Drania é capaz de ler o DNA das pessoas com sua habilidade de ~sentir~", mas como a história se passa em um mundo que nem sequer ouviu falar de DNA, e mesmo que houvesse, Drania não teria acesso à essa informação (sim, existem cientistas nesse mundo, e sim, eles estão todos em Risandal) talvez eu precise reescrever uma boa parte dessas descrições, para encaixa-las melhor na personagem, simplificando os termos e deixando a coisa toda mais "coisas que Drania aprendeu por tentativa e erro e portanto ela não faz ideia dos mecanismos por trás delas" mais ou menos como Vin no início de "o império final". ou não. o que gerar menos confusão ao leitor, provavelmente.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Drania" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.