Drania escrita por Capitain


Capítulo 3
Bruxa




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O interior da cabana era muito maior do que eu imaginei. Era uma única sala circular, de seis ou sete metros de diâmetro, com paredes de madeira e piso de pedra. No centro da sala havia uma grossa viga de madeira suportando o teto, na qual estavam penduradas, em ganchos de ferro fundido, uma centena de diferentes plantas, amuletos e poções. O resto da mobília era composta por prateleiras, armários e mesas, abarrotadas de pergaminhos, livros, ervas, poções e objetos estranhos, sem uma organização aparente.

Haviam também várias luzes mágicas como a que Aurora segurava, flutuando próximas ao teto baixo. Percebi, ao examinar as luzes com mais atenção, que até as vigas do teto possuíam coisas penduradas. Aurora soltou a luz que carregava, e ela ficou ali, parada no exato lugar em que a bruxa a deixou.

— Você não sabe se mover por aí ainda, não é? – Aurora começou, em um tom suave, enquanto andava ao redor da sala, recolhendo o que pareciam ser ingredientes e misturando-os em uma xicara de porcelana – é comum em fantasmas jovens. Geralmente leva alguns anos para se acostumar com o corpo novo.

Anos? eu não tinha anos. Eu tinha que voltar até Alice antes do fim da semana

— Eu... – minha voz quebrou, mesmo que eu não tivesse mais uma garganta – eu preciso voltar a Vralgongard nessa semana. Hoje, se possível.

Aurora parou de procurar entre as prateleiras e virou-se para mim.

— Você tem compromissos, então. – Ela sorriu – foi por isso que voltou?

— Sim, eu... – eu voltara porquê... eu tinha que encontrar Alice, e dizer a ela...

Algo captou a atenção de aurora por alguns segundos, com se ela tivesse ouvido um som estranho e estivesse tentando entender de onde vinha. Depois de alguns instantes, ela rolou os olhos, e voltou a olhar para mim.

— Tudo bem. – Aurora disse – vamos nos sentar e eu vou lhe fazer uma proposta. – Ela olhou para minhas pernas inexistentes – hum, eu vou me sentar, então.

Senti o mesmo puxão de antes, me direcionando a uma das paredes, aonde havia uma lareira apagada e duas poltronas. A bruxa estalou os dedos, e a lareira acendeu. Ela então se sentou em uma das poltronas, ainda segurando a xícara, e me puxou até a outra poltrona. Com um olhar confiante, ela me estendeu a xícara em sua mão.

— Chá? – ela perguntou.

Eu olhei para as minhas mãos de novo.

— Eu não acho que... – comecei.

— Está tudo bem – Aurora disse – só tente segurar a xícara. Você consegue.

Eu estendi a mão devagar, tentando furiosamente imaginar que minha mão era sólida, e que eu ia segurar a xícara, e que ela não ia cair, nem se espatifar, nem derramar o chá... até que minha mão atravessou a porcelana, e saiu vazia do outro lado. Aurora fitou meus olhos, com uma confiança exagerada no olhar, e inclinou a cabeça, me encorajando.

— Tente de novo – ela disse.

Eu hesitei, e tentei de novo, atravessando a xícara pela segunda vez. Talvez eu não fosse capaz de tocar nada mesmo. quem sabe eu fosse um fantasma quebrado.

— De novo. – A bruxa sorria.

Eu estiquei minha mão de novo, e no meio do meu movimento, Aurora soltou a xícara. Instintivamente, eu mergulhei com as duas mãos, tentando segurar a delicada peça de porcelana. Mas ela ainda assim se espatifou no chão.

— Você conseguiu – Aurora disse. Eu não entendi exatamente o que ela quis dizer.

— Mas a xícara... – eu disse, encarando a bruxa com um olhar confuso. Ela fez um gesto com a cabeça, apontando para a minhas mãos. Entre elas, repousando em minhas palmas, estava uma réplica perfeita da xícara que Aurora me oferecera, feita do mesmo material translúcido, e brilhando com a mesma cor que eu. Uma xicara fantasma.

— A princípio – Aurora disse – Fantasmas são incapazes de tocar qualquer coisa no mundo mortal. Isso pode ser uma vantagem, mas geralmente causa mais problemas do que soluções. Existe, é claro, um meio de contornar o problema, e você acabou de descobri-lo: usando magia.

Magia? Eu não era uma bruxa, nem uma elfa. Pelo que eu sabia, Transmorfos não podiam usar magia, mesmo que copiassem um mago poderoso. Como, exatamente, eu havia usado magia? Eu estava segurando uma xícara, mas não a original. Uma cópia, um fantasma da xícara que agora estava no chão em pedaços.

— Para te explicar como você vai poder se mover, ou como você conseguiu segurar a xícara, eu vou precisar te explicar como a magia funciona – Aurora abaixou-se e começou a juntar os cacos de porcelana, colocando-os sobre a palma da mão direita, um por um. Quando ela terminou, voltou a olhar para mim – e em troca, você vai me ajudar em uma coisa.

— Que coisa? – eu imaginei-me engolindo em seco, enquanto encarava os pedacinhos de porcelana empilhados delicadamente sobre apalma da mão da bruxa – em que você quer minha ajuda?

— Eu explicarei mais tarde, quando Goroth chegar – ela desconversou – até lá, teremos tempo de ouvir a sua história, e quem sabe, te ensinar alguns conceitos básicos da magia.

Quem era Goroth? o que a bruxa queria de mim? Eu estava aceitando uma barganha sem saber o que eu teria que fazer em troca. Uma das primeiras coisas que você aprende nas ruas: reconhecer quando alguém está tentando te passar a perna. Beleza, eu posso trabalhar com isso.

— Com a condição de que eu estarei livre para ir a Vralgongard antes – eu disse – se estiver tudo bem assim.

Aurora ergueu a sobrancelha um pouco mais.

— Você não precisará dessa condição – ela disse – já que o favor que tenho para lhe pedir exige que você vá comigo até Vralgongard depois de amanhã.

Aquilo aguçou um pouco mais minha curiosidade para saber o que realmente era o meu lado do acordo. Mas eu precisava aprender a me mover, ou não seria capaz de chegar até Alice.

— Tudo bem. – Eu concordei – Eu aceito.

— ótimo – ela murmurou algumas palavras inteligíveis e os cacos da xícara juntaram-se novamente, sem deixar nenhuma evidência d que ela sequer havia se quebrado. E então atirou-a através da sala para a prateleira da qual ela viera. Não houve som de louça quebrada dessa vez. – Tome o seu chá antes que ele esfrie.

Eu tomei um gole do chá. Era delicioso. Levemente doce, com uma mistura sutil de várias ervas. Por alguma razão, ele me fez sentir-se em casa, mesmo que eu nunca tenha tido uma. E que o chá que eu tomava talvez sequer existisse.

— O chá é real, se estiver se perguntando – Aurora interrompeu meus pensamentos – assim como você, ele existe. Ele é só um pouco diferente.

— Como assim?

Aurora reclinou-se na poltrona, e respirou fundo.

— O quanto você sabe sobre as ciências acadêmicas?

Nunca tinha ouvido falar de nada parecido.

— Perdão? – eu indaguei.

— Nada, então. – Aurora concluiu – isso vai levar um bom tempo para explicar. Mas antes, eu gostaria que você me respondesse três perguntas, da maneira mais sincera e objetiva que você puder. Essas serão as condições do nosso contrato.

Espere, contrato? A bruxa notou a minha confusão e puxou um pergaminho de algum bolso em seu vestido.

— Um pacto selado com magia – ela explicou – eu me comprometo a ajudar você na sua busca, ensinando a você como usar magia, e você se compromete a responder essas Três perguntas, e a me ajudar na minha pequena empreitada.

— Mas eu não sei o que é a sua “pequena empreitada” – eu disse.

— E nem eu a sua, mas ainda assim, eu estou me oferecendo a te ensinar conhecimentos arcanos de alto nível, que eu levei um século estudando.

Em retrospecto, eu não devia ter aceitado o contrato. Mas, naquele momento, eu tinha acabado ressuscitar. Eu nem sabia porquê eu tinha morrido, nem como eu fora parar no meio de uma floresta, ou sequer como andar por aí sem afundar no chão e ficar presa por anos embaixo da terra. Então eu fiz a grande burrada. Eu concordei em fazer o pacto.

— Você sabe ler? – ela perguntou, de repente.

— Sim – eu respondi – eu sei ler comum.

Então a bruxa escreveu o contrato, em comum, para que eu pudesse ler. “Eu, Aurora, me comprometo a ensinar Drania a Necromancia, e a ajuda-la em sua busca, e em troca, Drania se compromete a participar da minha missão, e responder-me três perguntas com sinceridade absoluta.”

— Agora, para firmarmos o pacto, basta que ambas digamos “eu aceito”. – Aurora afirmou – Como em um casamento. – Ela acrescentou, um segundo depois, com um sorriso irônico.

Eu hesitei por um instante. Estava selando o meu destino com duas simples palavras, me entregando nas mãos de uma desconhecida. Qual o pior que pode acontecer? Eu estava prestes a descobrir.

— Eu aceito – eu disse.

— Eu aceito – Aurora repetiu. As palavras recém escritas brilharam por um segundo, e o pergaminho se desintegrou em frente aos meus olhos.

— Nossos destinos estão selados – Aurora disse – espero que eu tenha acertado em escolher você.

— Me escolher? -eu perguntei – me escolher para quê?

— Eu senti algo em você... – A bruxa parou no meio da frase, e se levantou num salto, o rosto tenso. Ela levantou uma das mãos, pedindo silêncio com um gesto, e eu calei a pergunta que estava prestes a fazer. Menos de um segundo depois, uma flecha entrou por uma das janelas, apontada diretamente para Aurora. A flecha parou a centímetros do rosto da bruxa, cujas mãos brilhavam fortemente em verde.

Ela olhou nos meus olhos, e eu percebi que havia algo muito, muito errado naquele olhar.

— Drania, fique... – Antes que ela conseguisse terminar a frase, a flecha brilhou em vermelho, e a cabana foi pelos ares em uma enorme explosão.


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