Quando o efeito da magia passou, formou-se um silêncio desconfortável. Eu não podia acreditar que tinha simplesmente derramado meu passado e minhas emoções ali, sem mais nem menos. Era uma sensação estranha demais, saber que aquelas duas pessoas sabiam sobre Zhar. Nem Alice sabia muito sobre ele. Ela. Às vezes era mais fácil só lembrar de Zhar, o garoto que eu via com irmão mais velho.

— Eu... - Aurora esboçou um começo de frese, mas se interrompeu quando Goroth levantou.

Sem dizer uma palavra, o orc virou-se e se afastou, indo na direção de um dos túneis que levavam para fora da caverna. Eu teria suspirado, se pudesse. Ele perecia um pouco abalado, até um pouco envergonhado. Aurora tentou de novo.

— Eu sinto muito - ela falou - eu escolhi essa pergunta porque achei que seria simples. Pela sua reação, lá na minha clareira, eu achei que...

— Está tudo bem - eu respondi. E estava mesmo. - Eu concordei em responder. qual a segunda pergunta?

— Calma lá - Aurora disse - vamos deixar as outras duas perguntas para depois. você pode não ter sentido ainda, mas responder perguntas feitas na Língua Absoluta é bem cansativo. Vai precisar de um boa noite de sono antes de estar pronta para mais uma.

— Ah.

Houve mais um silêncio um tanto incômodo.

— Não precisa responder, se não quiser... - ela perguntou de maneira cautelosa - mas eu não entendi a parte sobre as marcas.

Demorei um instante para entender a pergunta.

— Ah, essas coisas aqui? - eu ergui meus braços - os transmorfos são praticamente idênticos aos humanos, talvez um pouco mais fortes fisicamente, mas é só. As marcas são como sinais, eu acho. Nós podemos esconde-las, mas é preciso bastante concentração. A maior parte dos transmorfos aprende a esconde-las o dia todo, mesmo dormindo. - Eu escondi minhas marcas para demonstrar - Mas, às vezes, no pânico...  

— Você perde a concentração.

— Isso acontece com qualquer transformação - eu disse - se eu levar um susto, e estiver transformada em alguém, talvez o susto me transforme de volta. o mesmo vale para raiva e alegria.

— Alegria?

— Quando você se sente despreocupada, ou satisfeita - eu pensei um pouco - eu acho que a transformação seja tipo uma forma de defesa. Como um camaleão. Se você não está se sentindo ameaçado, não tem motivos para se defender. Claro que você pode treinar para se manter transformado por mais tempo.

— Faz sentido - Aurora disse - mas e a cor? É diferente para cada pessoa?

Pessoa. Ela disse pessoa.

— A gente consegue esconder as marcas, mas não mudar a cor delas. - Eu expliquei, me concentrando. Fazia tempo que eu não alterava muito minha aparência, mas eu tentei imitar o rosto de aurora, transformando minhas feições. Eu não tinha um espelho, mas a expressão da bruxa me disse que eu tinha conseguido. As marcas em meus braços mudaram para um magenta escuro. - Quando estamos em nossa forma natural, as marcas são azuis. Quando estamos usando outra aparência elas ficam vermelhas. - Eu olhei para o magenta em meus braços - Nos vivos, pelo menos.

Eu quebrei a concentração e voltei ao normal.

— Obrigada por responder - Aurora disse, depois de um momento em silêncio - eu sei como é difícil se expor desse jeito. Goroth não é uma pessoa ruim, sabe? É só um pouco desconfiado. E um pouco grosso. E um pouco debochado.

— Vocês tiveram problemas com um fantasma - eu falei.

— Quase morremos por causa de um fantasma - Aurora me corrigiu - mas isso é uma história para outro dia.

Houve mais uma pausa desconfortável na conversa.

— Mas enfim, acho que agora Goroth confia em você, pelo menos parcialmente.

Eu duvidava.  

— Espere aí, só ouvir sobre meu passado trágico não quer dizer nada - eu disse - você devia ter perguntado se pode confiar em mim.

— Essa é a segunda pergunta, que eu vou fazer só se necessário. - Aurora disse - não se apresse. Falar sobre algo tão subjetivo é perigoso, pra dizer o mínimo. Por hoje, eu só quero saber o que você aprendeu com tudo isso.

O que eu aprendi?

— Acho que descobri que me importo mais com o passado do que eu achava - eu disse, simplesmente.

— Quis dizer sobre a língua absoluta - Aurora corrigiu-me de forma suave - o que você ouviu? Como se sentiu? Quais foram as palavras que eu disse?

— Eu não consegui entender o que você disse, na verdade. - Eu respondi - talvez uma ou duas sílabas, mas estava bem abafado, como se você estivesse falando para dentro. Mas eu entendi qual era a pergunta. Não exatamente com palavras, mas tipo, eu entendi o que você queria. É difícil de explicar.

— Desculpe por falar baixinho - ela sorriu - é um hábito dos magos. Deixe me explicar: a língua Absoluta não é uma língua falada. As runas não são como letras em uma frase, elas são apenas descritores. Junções de runas não são feitas seguindo um alfabeto, mas sim por associação: cada runa representa um conceito único, em sua totalidade. - Aurora desenhou um círculo no chão - essa é a forma básica para todas as runas que descrevem propriedades ou fenômenos físicos.

— Um círculo? - eu perguntei, lembrando das intrincadas runas que vi quando a garota misteriosa desapareceu - algo tão simples?

— Nem um pouco - Aurora respondeu - cada nova propriedade ou aspecto a ser descrito adiciona uma inscrição à runa, seguindo um padrão fractal, derivado de um ângulo a ser calculado pelo Escriba através de uma equação, que utiliza uma estimativa do número final de inscrições, a área interna e externa do círculo, a circunferência, raio, e... - Ela notou minha expressão assustada - basta dizer que não é simples. Para cada inscrição, o escriba tem que imbuir, preencher o símbolo com o significado, adicionando mais um nível de complexidade ao poder descritivo da runa.

Aurora rabiscou linhas anguladas, atravessando as bordas do círculo deixando o resultado final parecido com uma aranha. O símbolo parecia...

— Parece o símbolo do culto de Kraaz. - Eu disse - que runa é essa?

Aurora fez uma expressão surpresa, seguida por uma leve confusão.

— Isso nem chega a ser uma runa - ela disse - é a forma básica que a maior parte das runas fundamentais. Eu nunca tinha percebido isso antes, mas faz sentido. O símbolo de Kraaz é derivado da runa Caos, que é uma das leis universais. Como eu nunca vi isso? Eu achei que fosse só uma referência às espadas do caos, ou o espírito do dragão...

— Aurora - eu disse - foco.

— Ah, claro. Onde eu estava? - ela sacudiu a cabeça - ah, sim, as runas. Embora leve vida inteiras para completar o processo de inscrição de uma runa, aprendê-las é bem mais rápido. Estudando uma runa a fundo, por alguns meses, lhe dará conhecimentos básicos sobre o assunto, e os níveis de complexidade aumentam com a quantidade de vezes que você usa, ou tempo que você passa estudando.

— Entendi.

— Porém, a maior vantagem desse sistema é a razão pela qual você não entendeu nada do que eu disse: as runas não tem sons associados a elas. Elas são uma forma de escrita, sem nenhuma palavra falada. - A bruxa sorriu - então você pode associar qualquer som que você quiser á qualquer runa, desde um estalar de dedos a uma palavra inteira, e criar o seu próprio sistema. Isso é uma vantagem tática imensa para magos de batalha, porque podemos esconder nossos ataques enquanto o mago inimigo não consiga associar o que dizemos com uma runa específica.

— Então quando você lança um feitiço, na verdade está falando baboseira. - Eu disse - só uma língua inventada.

— Só a parte oral - Aurora disse - mas sim, é uma língua inventada.

— Parece simples. - eu disse - mas provavelmente não é.

— Bem, por hoje é só - Aurora bateu a poeira das roupas - você preciosa de descanso, e eu preciso de tempo para falar com o cabeça dura lá.

Ela levantou e começou a ir embora, mas parou depois de dar um passo. Virou-se na minha direção como se quisesse acrescentar algo, mas então desistiu e seguiu em direção ao túnel que Goroth tinha entrado mais cedo. Eu não tive muito tempo para pensar sobre isso, porque assim que ela se afastou, eu senti um imenso cansaço. Eu fechei os olhos por um segundo, planejando reabri-los logo depois, mas infelizmente, meu corpo tinha outros planos.