Drania escrita por Capitain


Capítulo 12
Jardim


Notas iniciais do capítulo

mais um capítulo no prazo, aleluia.



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O guarda não parecia estar disposto a se mover. Talvez a gente devesse repensar nossa estratégia. Alice segurou na minha manga com força e espirrou. Lhe direcionei um olhar inquisidor.

— Eu não me dou bem com poeira – ela comentou. Ela não se dava bem com muitas coisas.

Estávamos em um beco estreito, próximo ao portão que dava acesso à um dos círculos mais seguros de Vralgongard, bem no meio da zona sul. A casa de Alice ficava em algum lugar dentro daquele portão, mas não havia nenhuma forma de entrar no bairro vestidas da maneira que estávamos, sem levantar suspeitas. Eu dei uma olhada rápida para Alice, que estava quase irreconhecível nas roupas marrons que eu a havia emprestado.

Depois de nos esconder no cemitério por pelo menos uma hora, eu havia levado Alice até a taverna do Greg, aonde eu mantinha sempre uma muda de roupa extra. Eu fui à taverna, ao invés do porão em que eu morava, porque a chance de reencontrar os atormentados era menor, e também porque Alice com certeza causaria problemas com o dono. O Greg tinha um espaço para os funcionários, no fundo, onde podíamos descansar entre os turnos e de vez em quando era usado para estoque extra.

 Assim que chegamos, procurei ter certeza de que não tinha ninguém usando o espaço antes de entrar. Greg era um patrão legal, e um homem decente, mas era melhor não forçar a barra. Lá, eu vesti Alice em roupas mais simples, e também escondi o cabelo dela com um boné um tanto ridículo que eu usava para me proteger do sol quando trabalhava no porto.

Eu também a fiz se livrar das luvas, do vestido, e das botas. Troquei-os por uma calça e sapatos de segunda mão, que eram bem maiores que os pés dela, mas não chamavam tanta atenção quanto as botas delicadas de cano alto. As botas foram as únicas coisas que Alice quis levar com ela, insistindo que o resto estava estragado além do reparo. Eu perguntei se ninguém daria pela falta do vestido quando ela chegasse em casa, mas ela não parecia tão preocupada com essa questão.

De lá, nós saímos em direção ao sul, até o grande centro da cidade, e conseguimos passar despercebidas até chegar à divisa da Zona Sul, mesmo com Alice reclamando de ter que caminhar o percurso todo e que teria calos nos pés por causa dos sapatos grandes. Ela parou de reclamar quando quase fomos assaltadas pela segunda vez, e eu consegui segurar o ladrãozinho em uma chave de braço.

Mas aquele guarda em armadura completa, logo em frente ao portão que precisávamos atravessar, estava sendo um desafio inesperado. A ideia de vestir Alice em roupas plebeias fora ótima para trazê-la até aqui, mas a partir daquele portão, nossas roupas chamariam mais atenção do que o vestido colorido de Alice.

— Alguma ideia? – perguntei a Alice, que espiava sobre o meu ombro – é você que conhece esse bairro, eu nunca passei desse portão.

— Eu só passei por aí uma vez – ela respondeu – e foi hoje mais cedo. O guarda até me cumprimentou.

Eu rolei os olhos. Claro que uma menina rica não teria ideia do que fazer. Ela nunca precisou fugir dos guardas antes. Contemplei minhas opções. Eu podia só a deixar ali em frente ao portão, e esperar que tudo se resolvesse sozinho, mas aquilo seria cruel demais. E eu já tinha me esforçado tanto para trazê-la até ali, o que custava tentar mais um pouco?

Eu também podia tentar usar meus poderes... eu olhei de novo para Alice. Melhor não. Quem sabe o que ela faria se soubesse que eu era uma transmorfa. Sairia correndo e chamaria o guarda, no mínimo. Talvez isso até causasse uma distração grande o suficiente para ela entrar sem ser percebida, mas eu acabaria presa ou pior. Melhor manter segredo sobre meus poderes.

Enquanto eu pensava, uma carruagem veio subindo a avenida devagar, e parou em frente ao portão. O guarda marchou até o cocheiro, provavelmente para pedir uma autorização ou similar. Era nossa chance. Puxei Alice pela manga e rapidamente nos pusemos a andar rápido até o portão, de cabeça abaixada. Com sorte, ninguém nos notaria.

— O segredo é andar como se você tivesse algo para fazer aqui – eu sussurrei para ela – mas manter a cabeça abaixada.

— Eu tenho uma coisa para fazer aqui – ela cochichou de volta – eu moro aqui!

Pouco depois de passarmos pelo portão, a carruagem recebeu permissão, e passou ao nosso lado velozmente. Ninguém pareceu se incomodar conosco. A rua depois do portão era curva, com uma das muralhas internas de um lado, e várias lojas de produtos variados do outro. Vendiam livros, monóculos, louças e outras coisas caras. Nos apressamos para passar daquele trecho, onde haviam poucas pessoas e estávamos expostas a sermos paradas a qualquer momento.

Alice fez um sinal com a cabeça, e percebi que estávamos em frente a um pequeno portal em arco aberto na muralha, que levava à uma área densamente arborizada, quase uma floresta, demarcada por dois pilares de rocha cinza com lanternas no topo.

— Que lugar é esse? – eu perguntei.

— É a entrada de um dos jardins do Supremo-Sumo-Sacerdote – ela respondeu – está quase sempre vazio, e dá pra se esconder caso alguém apareça.

— Ótimo – eu disse a ela – e aonde essa trilha vai dar?

— Na praça das sacerdotisas – ela respondeu, já entrando na passagem – mas só serventes do templo da ordem podem circular por lá, então vamos ter que achar um atalho.

— “Vamos”? – eu perguntei – não pode ir sozinha daqui em diante?

Ela parou no meio do caminho.

— Mas... eu achei que... – Alice gaguejou – mas as suas roupas... e...

— Não tem problema, é sério – eu respondi – só não se perca de novo, e você vai ficar bem.

— E como você vai voltar? – ela perguntou – não tem nenhum lugar para se esconder na volta, e se o guarda... espera, eu tive uma ideia.

— Uma ideia? – eu estava cética.

— Se você vier comigo até a minha casa, eu posso te dar um vestido – ela disse – e assim você vai poder passar pelo guarda sem problemas.

Eu cocei a cabeça. Não era uma ideia tão ruim, mas...

— É o mínimo que eu posso fazer! – ela insistiu – e você me salvou, e...

Eu ergui as mãos, sinalizando derrota.

— Tudo bem. – Eu disse – se você insiste tanto...

Alice virou-se e começou a andar bem mais depressa, com um sorriso bobo no rosto. Para alguém que quase tinha morrido, ela esqueceu bem rápido. A postura dela mudou completamente daquilo que eu tinha visto antes. Ela agora tinha o caminhar relaxado de quem conhece a vizinhança e se sente seguro. Um tipo de caminhar que eu nunca teria.

— Eu ando por aqui sempre que tenho um tempo livre – ela disse – é um jardim público, mas ninguém visita, porque é muito frio e mal cuidado.

Eu não via como aquele lugar era malcuidado. O caminho por onde andávamos era de paralelepípedos de pedra cinzenta, tão bem encaixados que não havia nenhum mato entre eles. As árvores estavam verdes, e o caminho era todo cercado de flores. Era frio, mas não o gelado cruel da vila da penumbra, e sim o frescor vivo e relaxante da sombra das árvores e proximidade da água corrente. Passamos por dois lagos artificiais, com a água dez vezes mais limpa do que a que eu costumava beber, povoados com peixes coloridos alegremente nadando próximos da superfície, sem nem se importar com o barulho que estávamos fazendo.

— O que foi? – Alice me perguntou, parecendo ridícula com o meu boné de marinheiro – não gostou do jardim?

— É o jardim mais incrível que já vi na minha vida – eu respondi com sinceridade – tem certeza que é só um jardim, mesmo? acho que chamar isso de bosque não seria um exagero.

Alice parecia feliz com minha resposta, mas sacudia a cabeça.

— Esse não é nem de longe o jardim mais bonito daqui – você tem que ver os jardins da entrada do templo, esses sim são um espetáculo.

Nós continuamos caminhando até chegar a uma ponte sobre um riacho cristalino. Ela apontou para além da ponte, aonde a trilha fazia uma curva e terminava em uma abertura para algum lugar.

— Aquela passagem leva até a praça das sacerdotisas – ela disse – mas lá é muito movimentado, e não dá pra ir até lá desse jeito – os olhos dela relancearam nas minhas roupas.

— Então para onde vamos? – perguntei.

— Por aqui – ela deixou a trilha, caminhando devagar até as árvores – cuidado para não estragar as flores.

Eu atravessei o arranjo de flores com cautela, tentando medir onde pisava, e enfim cheguei até Alice estava. Ela tinha o mesmo sorriso bobo de antes no rosto, e era evidente que ela estava se divertindo muito com aquilo. Ao perceber meu olhar indagador, ela encolheu os ombros e se justificou.

— Eu sempre quis fazer isso – ela começou a caminhar entre as árvores, dando a volta no pequeno riacho – mas nunca tive coragem.

— Como assim?

— Ninguém pode andar fora da trilha nos jardins do Supremo-Sumo-Sacerdote, é considerado uma ofensa aos deuses – ela explicou – mas eu não acho que vai ter problema se ninguém descobrir.

Uma tarde comigo e Alice já estava cometendo heresias. Eu devia ser uma ótima influência mesmo.

— A minha casa fica por aqui, eu acho – ela apontou vagamente par a frente – vamos ter que pular um muro, e entrar pelo quintal. Eu espero que nenhum dos servos esteja lavando roupa.

Ela tinha servos. É claro que ela tinha servos. Eu imaginei como seria ter um criado que fizesse tudo para mim. Era um pouco difícil de imaginar, já que eu não tinha uma casa. Ainda mais uma casa tão grande que precisasse não de um, mas múltiplos servos. Depois de andar por quase meia hora, fomos interrompidas subitamente por um muro de pedra, de tinha uns dois metros e meio de altura, que serpenteava entre as árvores. Alice olhou rapidamente para os dois lados e ajeitou o boné de marinheiro na cabeça.

— Me ajuda a subir? – Alice perguntou

— É um muro e tanto só pra cercar um jardim – eu comentei – porque não usa uma árvore?

Eu apontei para uma árvore próxima, cujos galhos estendiam-se sobre o muro, perfeitos para escalar até o outro lado.

— Minha mãe disse que eu não devia subir em árvores – ela murmurou – porque eu sou uma garota.

— Você está vestindo calça – eu pontuei. – E eu sou uma garota também.

— Ah é. – ela corou.

Eu ajudei Alice a subir na árvore, e ela quase teve um ataque de pânico.

— Eu esqueci que você tinha medo de altura – eu me desculpei – mas de qualquer jeito, a árvore á mais segura. Tem mais lugares para se segurar.

Demorou um pouco, mas finalmente chegamos até o muro. Alice estava trêmula, mas parecia determinada.

— A minha casa é um pouco para lá – ela apontou para a esquerda. – Umas cinco casas naquela direção.

Do outro lado do muro, haviam algumas árvores também, embora menores e mais ralas. E, perpendiculares ao muro, a uma distância de mais ou menos cinquenta metros, haviam casas. As casas eram enormes, cada uma tinha pelo menos dois andares, e não havia cerca ou muro entre elas. Quase todas tinham imensos gramados verdes de todos os lados, e varais com belas roupas penduradas.

Eu ajudei Alice a descer, dessa vez segurando-a pela mão até que ela chegasse ao chão, e pulei o muro logo em seguida. Nós atravessamos os quintais das cinco casas rapidamente, procurando ao máximo não sermos notadas pelos seus ocupantes, até que chegamos á casa de Alice, uma mansão de três andares feita com madeira de pinheiro, e pintada de branco.

Nos esgueiramos até a entrada do porão, e de lá, Alice me guiou através dos corredores da sua imensa casa. O lado de dentro era extremamente limpo, a madeira do chão encerada até refletir como um espelho. A casa era também incrivelmente silenciosa, e cada passo parecia alto demais. A uma certa altura, o chão rangeu sob meus pés, e eu e Alice congelamos no lugar por uns bons dez segundos antes de continuar. Quando enfim chegamos ao quarto de Alice, nós duas deixamos escapar um suspiro de alívio. Não havíamos topado com nenhum servo, nem ninguém nas casas vizinhas parecia ter nos visto.

 O quarto de Alice era enorme, facilmente maior do que o primeiro andar inteiro da casa em cujo porão eu morava. Era todo pintado de rosa-chá por dentro, e tinha duas imensas janelas que naquele momento estavam bem abertas, deixando o sol da tarde entrar. As cortinas eram impecavelmente brancas, e a cama era tão grande que com certeza teria espaço para três pessoas deitarem confortavelmente. Em frente a uma das janelas havia uma penteadeira do mesmo rosa que as paredes, repleta de todo o tipo de escovas, pentes, perfumes e acessórios de maquiagem.

Um imenso guarda roupa tomava toda a parede direita, e ao lado da penteadeira havia um enorme espelho oval, daqueles de corpo inteiro. Assim que entramos, Alice trancou a porta, e em seguida despiu-se completamente, se jogando sobre a cama com um suspiro de alívio. 

— Ah, assim é melhor – ela murmurou – eu não sei como você aguenta, essas roupas pinicam demais.

Eu fiquei ali, plantada ao lado da porta, nervosa demais para dizer qualquer coisa. Depois de um sólido minuto, a outra garota percebeu minha hesitação.

— Não fique aí com essa cara de boba – ela pulou para fora da cama e abriu as portas do enorme guarda-roupa, revelando uma miríade de diferentes vestidos, sapatos, bolsas e chapéus – temos que achar algo que combine com você.

Eu engoli em seco.

— Qualquer coisa está bom – eu disse – eu nem deveria estar aqui.

Alice discordava.

— Nada disso. - Ela objetou – vamos provar vários e você vai escolher o que mais gostar. Vai ser divertido!

— Mas... – eu comecei a objetar.

— Vraal grandioso, o que significa isso?!? – subitamente, havia uma mulher no quarto, vinda sabe-se lá de onde.

Alice e eu demos um pulo de susto, e eu congelei no lugar.

— Opa - Alice disse. – Eu esqueci de trancar a porta dos criados.

— Aonde estão as suas roupas? – a mulher ralhou – e o que está fazendo com esse menino no seu quarto?

Espere, menino?

— Eu não... – comecei a dizer, com a cabeça a mil.

— Frieda, espere! - Alice exclamou – não é o que parece!

— Jovem senhorita Alice... – a serva estava lívida – é melhor você ter uma explicação muito boa, ou irei chamar seus pais agora mesmo!


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Notas finais do capítulo

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