Drania escrita por Capitain


Capítulo 10
Aula


Notas iniciais do capítulo

aaargh!
desculpa mesmo pelo atraso.
boa leitura.



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Eu tinha esperanças de que resto da manhã transcorresse sem maiores incidentes. Mas aula que a bruxa me deu era o suficiente para deixar qualquer um deprimido. Eu “acordei” alguns minutos depois de voltar ao acampamento, e fui falar com Aurora. Ela parecia bastante animada quando eu me aproximei, quase como se não estivesse vasculhando os destroços da própria casa, recém recuperada de um ferimento mortal. Assim que ela me viu, A bruxa animou-se e acenou.

— Ei, Drania! – ela disse – dormiu bem?

Logo que levantou o braço, Aurora se encolheu em um espasmo, rangendo os dentes. Eu me apressei e flutuei até ela.

— Você está bem?

— Sim, sim, estou ótima – ela voltou a sorrir imediatamente – só não posso erguer muito os braços, e continuo esquecendo disso. De qualquer forma, parabéns pelo flutuar. É um tanto inusitado, mas definitivamente uma solução bem mais elegante do que o que eu tinha em mente.

— Goroth disse que vou deixar um rastro – olhei de esguelha para o orc, que parecia ocupado em arrastar restos de madeira carbonizada – talvez isso seja um problema.

— Não ligue para o Goroth, ele é assim às vezes. – Aurora riu. – Ele não é muito de confiar nas pessoas, como eu tenho certeza de que descobriu hoje mais cedo.

Eu gelei.

— Eu... hã... – eu não sabia o que dizer.

— Não se preocupe, Goroth não sabe, ele não é capaz de “sentir coisas” – ela fez aspas com os dedos, claramente debochando do orc no tom de voz – mas tome cuidado ao espiar pessoas assim. Eu e ele somos amigos a muito tempo, você podia ter visto coisas, sabe.

Não sei se um fantasma é capaz de corar. Mas se é possível, eu com certeza corei.

— Desculpe. – Eu murmurei.

— Sem problemas – ela piscou para mim – dessa vez passa. Enfim, vamos ao que interessa: antes de partirmos, tem uma coisa que é preciso que você faça. Porém eu vou precisar explicar alguns conceitos antes, e posso ter dificuldade de manter a minha linha de raciocínio. Acontece comigo frequentemente, eu amo sair em tangentes aleatórias, portanto, quando isso acontecer, você talvez pule alguns parágrafos de explicação chata para voltar até a parte legal. Eu faço isso o tempo todo e... o que foi?

Eu já estava perdida, e ela nem tinha começado a explicar.

— Pular parágrafos?

— Você não leu muitos livros na vida, leu?

Eu vivi por quinze anos, mais da metade delas na rua. Livros eram extremamente caros, porque geralmente eram escritos e copiados à mão, e francamente, eu não tinha muito interesse neles. Não dava para comer livros. Aurora deve ter notado a minha expressão, porque ela imediatamente proveu uma explicação. Só que a explicação não ajudou muito.

— Quando você lê um monte de histórias, como eu, você começa a entender as estruturas narrativas por trás da história em si, e isso geralmente acaba fazendo as histórias mais chatas. Mas se você é que nem eu, e não consegue parar de lê-las, mesmo sabendo o que vai acontecer no final, você talvez acabe desenvolvendo um hábito um tanto petulante de pular alguns parágrafos ou páginas de uma parte mais lenta da história e depois tentar adivinhar as informações que você perdeu baseando-se no contexto geral da história. Eu faço muito isso, ao ponto de às vezes tratar pessoas como personagens em uma história e ignorar as linhas mais chatas do diálogo deles, o que de vez em quando é um problema, porque se de repente eu “pular” parte da história de um nobre sobre a sua última caçada, e ao invés disso usar esse tempo para imaginar os efeitos da combinação de certas ervas em um determinado tipo de chá, eu talvez acabe em uma enrascada mais tarde, na minha tentativa de seduzir tal nobre e conseguir acesso à sua biblioteca particular, a única biblioteca em toda Döteron que possui um exemplar de um livro que eu poderia ter usado para aprender um feitiço que por acaso talvez me ajudasse a proteger a mim, a você e à minha cabana de um ataque de um culto do caos hipotético.

— E com isso, você quer dizer...? – eu não podia estar mais confusa. Aurora falara todo aquele testamento em uma única respiração, e eu tinha entendido talvez dez palavras das duzentas que ela tinha dito. É, ótimo. Imagine quando ela começasse a explicar magia.

— O que eu quis dizer é que eu sou uma péssima professora. E que talvez você precise ignorar parte do que eu digo, ou ler nas entrelinhas, ou descobrir sozinha com tentativa e erro. Eu vou tentar, é claro, mas não é fácil explicar os porquês de uma coisa tão complicada como a magia. Dito isso, vamos começar! – Aurora esqueceu-se dos ferimentos nas costas e bateu palmas, depois encolheu-se com um gemido. – Talvez eu devesse sentar um pouco.

A bruxa encontrou um banco improvisado, uma das vigas que antes sustentavam a sua cabana e agora estavam espalhadas em um grande círculo. Ela sentou-se e deu um grande suspiro, ficando em silêncio por um tempo. Dava pra ver que ela pensava furiosamente durante aquele longo silêncio, pois seus olhos se moviam encarando o espaço vazio, como se vissem coisas que não estavam lá. por fim, ela respirou fundo e recomeçou.

— Talvez a melhor forma de explicar a magia seja comparando-a a ciência, prendendo as divergências entre as duas. Por exemplo, química é uma ciência, a alquimia é uma magia. Existem várias ciências, e várias magias, e elas divergem em muitos pontos. Eu entendo de alquimia, portanto eu misturo materiais com diferentes atributos mágicos em busca de um resultado mágico satisfatório, como uma poção que te transforme num gato.

Eu confirmei com a cabeça para indicar que estava entendendo. Mesmo que não muito.

— Já Goroth, ele gosta da química: a poção que ele fez para mim tomar não é uma poção de cura, e sim uma mistura de diferentes ervas, com substâncias chamadas “enzimas” e “princípios ativos”, seja lá o que isso signifique.  A química é toda sobre fórmulas, propriedades físicas, "estruturas moleculares" e uma quantidade irritante de matemática. – Ela fez uma expressão de desgosto – eu até tentei aprender, mas prefiro não ter que lidar com tanta matemática.

Aurora abaixou-se e arrancou um ramo de uma pequena planta no chão, sussurrou algumas palavras, e o pequeno galho flutuou no ar.

— Das magias e ciências, talvez a mais fascinante seja a necromancia: o estudo da morte. – Aurora estalou os dedos, e o galho secou e morreu, se transformando em pó. Ela respirou fundo e continuou – Segundo a ciência, o universo possui regras inquebráveis, leis fundamentais, como a gravidade, por exemplo: coisas atraem-se entre si. Nós somos atraídos pela massa da terra, e a terra é atraída pela nossa massa, portanto não saímos voando por aí.

Concordei com a cabeça novamente. As coisas tinham substância, por isso, elas caíam. Entendido. O peso das coisas era chamado de massa. Entendido. O que isso tinha a ver com a morte? Não sei.

— Assim como as ciências, as magias também possuem leis fundamentais, que geralmente são diferentes ente as diferentes magias, e às vezes divergem fortemente das leis da física. Porém existem duas leis que são comuns a todas as magias e todas as ciências, e essas são as que você vai aprender hoje. – Aurora arrancou outro galho da mesma planta, e repetiu o feitiço que o fazia virar pó. – Elas são conhecidas como As leis da morte.

A poeira que restara dos dois galhos não havia se espalhado, e sim concentrando-se em uma pequena esfera flutuante. Com um comando de Aurora, a poeira se reorganizou, formando um risco vertical, a runa humana par o número um.

— Lei número 1: Todas as coisas devem morrer. – Aurora recitou – não se pode escapar da morte, e ninguém é imortal. Tudo no nosso universo tem ou terá um fim. As pessoas, os deuses, o próprio tempo. Tudo irá morrer um dia.

A poeira moveu-se para formar a runa do número 2.

— Lei número 2: A morte é definitiva. Não existe nenhuma forma de ressuscitar os mortos, por qualquer meio que seja.

— Espere um pouco – eu intervi – mas a existência de fantasmas como eu não é uma violação dessa lei? eu estive morta, mas eu voltei.

Aurora riu.

— Eu estava esperando você perguntar isso. – Ela disse – a resposta é não. Você não está morta. Você, e todos os fantasmas, estão morrendo. Veja bem, deixar o seu corpo físico é só a primeira etapa da morte. Existem três etapas: a morte física, quando você se separa de seu corpo mortal, a morte metafísica, quando você se dissolve no limbo e deixa de existir de fato, e a morte definitiva, quando nenhuma pessoa viva lembra de você, e seu nome deixa de existir, como se você nunca tivesse existido em primeiro lugar.

Aquilo fazia sentido. Então eu tinha só começado a morrer quando me espatifei nas pedras à beira do lago Asalor. A morte física acontecia quando o seu corpo não consegue mais sustentar a vida. Beleza.

— As leis da morte se aplicam aos três estágios separadamente: quando você cruza cada um deles, é impossível retornar ao estágio anterior. Cada estágio tem características próprias, e nem todas as criaturas vivas passam por todos os estágios. A grande maior parte das criaturas vai direto da morte física para a definitiva: os animais, as plantas, os insetos. – Aurora desfez a magia que segurava a poeira no formato das runas, e ela de dissipou no ar – as criaturas capazes de pensar, no entanto, tendem a ter opiniões, e com elas, vontade.

Ela fez uma curta pausa, como se estivesse saboreando as informações que estava prestes a me dizer.

— A vontade, ou intenção, é o que permite as almas, ou consciências, controlar a matéria escura por um curto período de tempo após a sua morte. Quando a sua vontade de viver some, o fantasma passa para o próximo estágio, e sua consciência deixa de existir.

Eu me lembrei do tempo que eu passei morta, na escuridão completa, duvidando se eu sequer existia. Eu só consegui me desfazer do vazio porque tinha algo a fazer aqui. Mesmo que eu tivesse esquecido o quê.

— Todos os fantasmas são apenas pessoas com muita força de vontade, ou uma forte vontade de viver, mas o tipo mais comum de fantasmas são pessoas arrogantes que se acham no direito de continuar vivas. – Aurora repensou um pouco – sem ofensas.

— Mas mesmo assim, isso não é uma contradição da primeira lei? – eu perguntei – se a pessoa tiver vontade o suficiente, ela poderia “viver” para sempre, não é?

— Não! – Aurora exclamou – existe um problema, que eu tenho certeza que você já percebeu: fantasmas ficam cansados. Mentalmente cansados. por instinto, precisam comer e dormir como qualquer criatura viva. Porém são incapazes e interagir com o mundo físico, o que significa que não podem só comprar pão ou caçar um coelho.

— Mas nesse caso, não dá só para transformar...?

— Acho que você está falhando em entender o ponto. – Aurora me interrompeu – lembra o que eu disse sobre força de vontade? O problema real é que seu corpo não existe. Sua consciência pode transcender a morte, porém a mente é feita para operar em circunstâncias pré-estabelecidas: um cérebro, ossos, músculos, etc. O que você tem agora não é um corpo de verdade, mas uma sombra, a imagem que você tinha dele quando viva: uma cópia criada de matéria escura, assim como a xicara que você copiou ontem. Você não respira. Seu coração não bate. Embora sua cabeça  continue fazendo algumas coisas por costume, você enstá morta. Comer não vai mudar esse fato.

— Então como... – eu não completei a frase.

 Lembrei do que havia aprendido nos meus primeiros agonizantes momentos afundando sob a terra. Eu não respirava, meu coração não batia. Mesmo tendo a pele transparente, eu não conseguia enxergar de olhos fechados. Eu estava imaginando tudo aquilo, inconscientemente adaptando meu corpo de fantasma ao jeito que eu achava que ele devia funcionar. Quando eu pensava em mexer meu braço, ele mexia. Quando eu pedia para minha pele mudar de cor, ela obedecia. Mas nada era real.

— A sua mente consome energia para sobreviver, e dar forma à matéria escura desse jeito consome ainda mais energia. Sem essa energia, em algumas semanas, sua mente vai começar a se deteriorar. – A bruxa levantou-se devagar, bateu a poeira do vestido e me fitou profundamente nos olhos. –  Você vai perder toda a sua memória aos poucos, enlouquecer, e por fim, desaparecer. Pode não parecer ainda, mas o processo já começou.

Eu me lembrei das partes escuras que tinha descoberto na minha memória. Sim, já havia começado. Eu perdi um mês da minha vida. Eu esqueci o que ia falar para Alice. Eu estava destinada a morrer de qualquer forma. Não, eu já estava morta. Será que vale a pena continuar seguindo em frente?

Porém no fundo do meu coração parado, eu já sabia a resposta. Eu precisava encontrar Alice. Talvez, quando eu a encontrasse, eu saberia o que dizer. Mesmo que não soubesse, eu poderia pelo menos dizer adeus.

Aurora me observou por um longo momento enquanto eu pensava. Havia algo intrigante na sua expressão, algo entre dúvida e pena. Me perguntei se aurora e Goroth já haviam encontrado muitos fantasmas antes. E, se encontraram, o que havia acontecido com eles.

— Só existe uma maneira de conseguir a energia necessária para manter a sua mente funcionando. - Aurora apontou para a clareira salpicada de corpos – Matar outras criaturas, e absorver a energia delas.

 

 


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Notas finais do capítulo

eu reescrevi esse capítulo umas cinco vezes, e ainda não estou 100% feliz com ele, mas decidi que a história tem que seguir, e eu posso consertá-lo depois nas revisões. agora que eu descobri como eu quero que as leis da morte funcionem, acho que os próximos capítulos podem andar mais depressa. se bem que a quarentena vai acabar logo.
anyway, não esqueça de comentar o que você achou do capítulo!
até o próximo!