Drania escrita por Capitain


Capítulo 1
Morte




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Eu morri antes de poder contar meu segredo à Alice. Essa é a parte mais decepcionante. Não a tragédia que se seguiu. Não o fim do mundo. Morrer. Morrer naquela noite, foi a coisa mais decepcionante da minha vida cheia de decepções. Eu vivi por quatorze anos, quatro meses e sete dias. Se pelo menos eu tivesse morrido um dia depois, quem sabe eu estivesse satisfeita. Mas claro, eu morri cedo demais. Talvez essa seja uma boa descrição para a minha vida: a minha vida aconteceu cedo demais.

Eu nasci cedo demais, meses antes da hora certa, o que, para minha raça, significava que eu mal nascera, e já havia me tornado uma assassina. Minha mãe morreu no parto. Meu pai, eu nunca conheci. E assim, cedo demais, eu já era órfã. E uma aberração. Ah, é. Esqueci que eu também era uma aberração. Uma troca-peles. Uma fluida. Um monstro.

Bem cedo, aprendi que eu não era como todo mundo. Alguém cuidou de mim até eu completar quatro anos, a idade em que a maioria das pessoas como eu, se ainda estivessem vivas, tinham que aprender a se virar. Não lembro do nome ou rosto dessa pessoa. Não lembro de quase nada antes de aprender a sobreviver. Quando eu aprendi que tipo de lixo era comestível, e com que tipo de gente não se mexe.

Não que muita gente quisesse chegar perto de mim. Eu era uma transmofa. Destinada a estar abaixo dos ladrões e das prostitutas. A raça mais baixa de Vralgongard, talvez do mundo. Transmorfos não tem identidade. Não temos corpo, não temos gênero, não temos alma. Pelo menos era o que todo mundo dizia. Agora que eu morri, descobri que eu tenho uma. E que, para a surpresa de ninguém, minha alma também era uma aberração.

Quando dei por mim, eu estava voando. Não, eu estava caindo. Entrei em pânico. Como eu tinha ido parar ali? Eu estava caindo do alto das muralhas imensas de Vralgongard, a cidade do Lago. E tinha só mais uns instantes de vida. Eu me debati, com o vento gelado cortando através do meu corpo como um punhal. A minha visão estava embaçada, e meu rosto doía. Eu não tinha certeza de porquê meu rosto doía.

Tentei me lembrar de como havia ido parar ali, mas a única coisa na minha mente era Alice. Eu estava indo até a janela da Alice. E eu ia contar pra ela quem eu era. E então... Nada. No momento seguinte, eu estava caindo da muralha para a minha morte. Eu tentei abrir os braços, aumentar o meu arrasto, diminuir a minha velocidade. Mas o chão chegou cedo demais. As muralhas de Vralgongard tinham centenas de metros de altura, daquele lado. Abaixo delas, haviam rochedos cinzentos, e o lago. Eu pude ver a lua refletida nas águas do lago por um segundo. Depois, só conseguia ver pedra. O som do vento parou. A dor no meu rosto parou. Eu ouvi um estalo, e eu estava morta.

Morrer não é como as pessoas imaginam. O chamado da morte não é gentil nem caloroso, como os poetas o descrevem. A última coisa que eu vi foi pedra. A última coisa que senti foi dor. Não tive sequer tempo para ver meu próprio sangue. Como o bater de asas de um beija-flor, um minúsculo intervalo de tempo em que eu fui eu mesma antes da minha morte.

A sensação de morrer é horrível. Todo o seu interior se torce, e você perde tudo. É difícil explicar isso para alguém que ainda não morreu, mas de uma hora para outra, você não consegue mais sentir nada, ouvir nada, tocar em nada. Depois de um tempo, até a dor some. Você não consegue ver nada, e deixa de ter membros. Você quase consegue lembrar de como era segurar coisas e sentir o ar entrando nos seus pulmões. Por um segundo, você esquece que está morto, e não existe sensação pior do que entrar em pânico sem ter um coração.

Enquanto você estiver vivo, todas as vezes que você sentir medo, ou angústia, ou raiva, você pode sentir o seu coração bater mais forte, sua garganta se fechar, o frio na boca do seu estômago. Você pode não gostar dessa sensação, mas ela sempre está lá, te acompanhando. O fogo nas suas veias. A tensão nos seus músculos.

Você perde a sensação de peso, tempo, espaço, tudo desaparece. Tudo que faz de você você. E a única coisa que sobra é lembrar. A única prova de que você sequer existiu. E então, até disso você começa a duvidar. E o desespero real se prende aos restos da sua consciência, dissolvendo suas lembranças, apagando sua identidade.

Eu nasci cedo demais.

Como você sabe?

Eu sentia raiva do mundo, por ser injusto.

Aquele mundo sequer existia?

Eu tive um amigo de infância.

E se ele for uma ilusão?

Ele morreu quando eu tinha sete anos.

E onde ele está agora?

Eu aprendi com ele a esconder minha raça, mudar o meu rosto, parecer humana.

Isso foi real?

Eu não tinha nome, então ele me deu um.

Qual é o seu nome?

Não sei.

Quem é você?

Esqueci.

Como você pode provar que já esteve viva?

Não posso.

As perguntas pararam quando eu respondi que não podia. Era isso que elas queriam. Eu não tinha nada que pudesse provar que eu existia. Eu não tinha emoção, não tinha corpo, não tinha voz, não tinha nome, nem opinião. É assim que é morrer. E é assim que a maior parte das pessoas termina. Mas não eu. Eu nunca tive nada. Mas eu era alguma coisa. Eu era um monstro. Uma transmofa. Uma mendiga. Uma mentirosa. E eu ia contar algo para alguém.

Alice. Sim, esse era o nome dela. Minha amiga. Eu não lembrava de onde eu a conhecia. Ou lembrava? Sim, eu lembrava. Ela era importante para mim. Ela era gentil. E ela estava me esperando na janela, sem saber por que eu não apareci. Meu corpo talvez nunca seja encontrado. Mesmo que fosse, meu rosto não seria aquele que ela conhecia. Ninguém além de nos duas sabia que nos encontrávamos.

Era tão... frustrante.

Então eu decidi. Eu não ia ficar ali. Eu não ia desaparecer. Eu era. Eu lembrava. Eu tinha uma identidade. Eu tinha um nome. Eu tinha um segredo. Ninguém podia tirar isso de mim. Eu tinha um novo propósito. Recolhi de volta todas as lembranças que pude encontrar, e me agarrei a elas tão profundamente que fundi passado, presente e futuro em um só.

Eu encontraria uma forma de voltar. Eu iria derrotar a morte.

Meu nome é Drania, e eu tenho uma promessa a cumprir.


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