Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 12
Capítulo 10 - Lágrimas sob o chão.




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—Rebeca, abra a porta. Eles chegaram, exigem sua presença. Por favor, venha.

A porta se abriu e o corpo da poetisa deslizou lentamente até a sala, seus olhos não olharam os do repórter. Olhos esses que não viram os olhos úmidos da poetisa:

...

``...e lá estava Flavius. Olhando para mim com aquele olhar de quem pede uma explicação. Olhar de quem se sente traído. Seu olhar ferido cruzou com o de Michel e suas dores se encontraram. Pode até ser que tenha sido um momento lindo, mas meus olhos queriam dormir e não estavam dispostos a averiguar a beleza do encontro dos olhares alheios.

            Sem querer dar muita atenção a Flavius, desci do carro e, com um sinal nos olhos, ordenei que ele entrasse.... entrou... entraram... entramos....... estávamos então reunidos, nós três, pela primeira vez... primeira entre as milhares de vezes que nos encontramos naquela sala antes de suas paredes ruírem.

           Os meninos não conversavam. O silêncio naquele pequeno amontoado de paredes estava deixando rarefeito... e tudo que eu podia ouvir era o tic-tac do relógio e a respiração quase ofegante de Michel.

            Olhei para Flavius e acenei para que ele fosse comigo até a cozinha e quando chegamos lá, disse a ele:

            -Por que está me olhando com essa cara?

            -O que ele está fazendo aqui, Fip?

            -Como assim o que ele está fazendo aqui? Eu o trouxe para você! -quis dar um tiro no meu próprio ouvido quando percebi o que tinha acabado de dizer - Ele está aí todinho pra ti! O que você acha que eu ia fazer? Ficar com o SEU amor? Que juízo você faz de mim?

            -...e como você sabia que eu estaria aqui?

            -E quem disse que eu sabia?

            -...

            -Flavius, por favor, eu estou cansado, com sono e com raiva. Por favor, vamos falar sobre isso amanhã. Eu mereço dormir. Aliás, o que você estava fazendo na porta da minha casa, hein?

            -Vi uns homens entrando com uma combe e fiquei preocupado.

            -Eles traziam algumas caixas que faltavam.

            -Foi o que me disseram.

            -Então...

            -Sei lá, quis te esperar! Por que? Não posso mais?!

            -Claro que pode, mas.... mas.... arf.... faça o que quiser! Ele está aí, agora faça sua parte. Aproveite enquanto ele está chorando e console-o. Eu vou dormir.

            -Espera ai , Fip! O que você fez com ele?

            -Nós conversamos. Fomos visitar a menina que foi atropelada. Só isso.

            -E o que ele está fazendo aqui?

            -Eu já disse que o trouxe pra você!

            -Como assim pra mim?! Você não sabia que eu estaria aqui!

             -E o que me impediria de ir até sua casa te chamar?!

            -...você não faria isso....

            -E o que você está querendo insinuar? Que eu quero roubar o seu precioso Michel?

            -Não é isso. Mas é muito estranho. Ele chegar junto com você, sei lá de onde, a essa hora!

            -São sete horas da noite, Flavius! E eu já te disse onde estávamos. Agora o menino está aí. Vai conhecer ele melhor...

           

Virei as costas e fui até o meu quarto, fechei a porta e deitei na minha cama....``

...

Natasha ficou deitada em sua nova cama procurando uma posição mais confortável para sua perna enquanto pesava sua vida e tentava entender sua nova situação. Já estava se cansando dessa sensação de desconhecer o futuro. Queria uma certa segurança em seu destino, queria poder dormir sem precisar pensar no que terá de fazer para sobreviver no outro dia. Um pouco de rotina, um pouco de comodidade, um lar.

...

Flavius voltou à sala onde encontrou Michel chorando. Tentou se aproximar dele mas suas pernas travaram. Michel, por sua vez, não percebera a presença do garoto, que pensava em mil formas diferentes de se aproximar. Não é que fosse da natureza de Michel ignorar pessoas, mas compreendamos que, no momento, sua cabeça não seria capaz de pensar em frivolidades e gentilezas. Flavius, por outro lado, conseguira dar um passo: ´´Qual é o problema de falar com ele? Ele está chorando. É natural que eu vá falar com ele. Eu posso chegar e dizer: ´imagino como você deve estar se sentindo`. E dou meu ombro para ele chorar, então ele ficará agradecido..... Mas eu vou parecer um idiota falando isso! Ele vai perceber que estou tentando me aproximar me aproveitando dessa situação, então pensará que eu sou um tolo... O que eu posso dizer? É melhor não dizer nada.... mas aí ele vai pensar que eu sou frio e que não me importo com ele...! O que é isso, Flavius? Você esperou tanto tempo por essa oportunidade! Vai deixar que ela te escape desse jeito? Nunca! Vá até ele, abrace-o e mostre o quanto se importa. É óbvio que ele irá gostar. Quem não gostaria? Vá, confie em você! Eu vou conseguir!``. Outro passo, e mais um, e vários seguidos até que seus pés alcançassem os pés de Michel:´´Ele nem olhou para mim, nem percebeu que estou aqui. E agora? O que eu falo?``. Sentou-se ao seu lado:´´Ele ainda não me viu. Será que está fingindo que não me viu para que eu desconfie e vá embora? Ele deve estar me odiando! Meu Deus! Como é que eu saio daqui agora? Se eu me levantar e sair vai parecer que eu não ligo, mas se eu ficar ele vai pensar que eu sou um imbecil! Calma, você já está aqui, agora só precisa pensar em alguma coisa para dizer.``... não pensou, apenas olhou para o garoto ao seu lado e elaborou algumas frases, mas nada saiu de sua boca. Imaginou milhares de situações, pensou em muitas coisas, mas não conseguiu fazer nada. Apenas ficou ali sentado durante horas a fio até que Michel se levantasse e saísse pela porta dos fundos em direção ao quintal, deixando-o ali sozinho e infeliz, odiando a si mesmo pela falta de coragem e pela oportunidade perdida.

Flavius quis chorar e quis morrer. Sentiu vergonha de si mesmo e desejou sumir...  desaparecer simplesmente, sem deixar vestígios... ir para um lugar que nem mesmo ele soubesse onde ficava, mas que, de lá, seja onde fosse, pudesse ver todos perguntando por ele e imaginando o que teria acontecido. Abaixou a cabeça e chorou. Chorou esperando que alguém lhe perguntasse o porquê de seu pranto... mesmo sabendo que jamais responderia a uma pergunta como essa.... ninguém veio... e ele chorou sozinho... e sozinho ficou por muito tempo...

...

´´ tentei, tentei, tentei dormir.... não consegui..... uma noite em claro, um dia cheio e uma noite sufocante... não sei onde vou parar desse jeito..... Flavius está chorando lá em baixo assim como Michel no jardim.... arrrffff onde eu estava com a cabeça quando trouxe esse povo pra cá? Eu preciso tirar esse povo da minha casa agora!!

Certo.... desci as escadas e lá estava o jovem Flavius encostado na parede. As pernas retorcidas, as mãos tampando o rosto numa tentativa desesperada de abafar seus gemidos.... merda, ele  me faz sentir pena! Meu pobre coraçãozinho se rebate todo no meu peito quando eu vejo esse menininho estirado no chão se retorcendo de dor! Sinto vontade de pegá-lo no colo e cuidar dele. Penso em tudo o que sei e tudo o que se passou e sinto pena... mas pensar que ele está chorando por causa de outro... aaa isso.... isso me dá ânsia.... ódio....

—Por que você está chorando?

...sem resposta....

—Ele se foi, não é? Está chorando por um outro e te deixou na mão. Isso acontece, não é culpa sua. Da um tempo pra ele engolir essa história e logo estará tudo bem.

...mais uma vez sem resposta

—Venha, vou fazer um leite quente pra você, vai te ajudar a se acalmar.

...você acredita que o patife chutou minha canela?... ele me xingou e chutou minha canela!!! Pode? Então eu o peguei pelo colarinho e fiz ele se levantar:

—Dá pra você ficar calmo?!? Acha que isso vai mudar alguma coisa?! Sabe quando ele vai olhar para você?NUNCA!! Acorda, Flavius!!! Ninguém gosta de gente sonsa! Ninguém gosta de gente que resmunga o tempo todo!!! Ele nunca vai gostar de você! Toma alguma atitude, sua anta sonsa! Ele ta lá chorando e você aqui perdendo seu tempo pensando em suas próprias limitações!! Mula!!!!

Soltei sua camisa e ele caiu novamente no chão. Ainda chorava, mas dessa vez não tapava o rosto com a mãos... dessa vez me encarava com ódio. Não dei muita atenção, apenas me virei e saí... ou pelo menos era essa a minha intenção... mas ele pulou nas minhas costas e me derrubou no chão enquanto dava socos nas minhas costelas. Bati com a cabeça e fiquei um pouco tonto... e ele continuava esmurrando minhas costas... deve ter sido uma cena cômica. Não sei por que, mas não consegui reagir. Minha mente girava e minha cabeça doía muito... a pancada deve ter sido muito forte... lembro de tentar me levantar e ser derrubado novamente... lembro-me que Flavius gritava algumas maldições ou xingamentos que eu não conseguia entender.... na verdade eu me lembro de pouca coisa.

Não sei exatamente quanto tempo isso durou, mas sei que, em certo momento, Flavius se cansou de bater, e eu já estava, há muito, cansado de apanhar. Ele saiu de cima de mim e se deitou no chão com as mãos na cabeça. Eu estava tonto demais para ter qualquer tipo de reação, apenas me virei de costas para o chão e então percebi que minha cabeça sangrava. Tentei me mover, mas não tinha forças, minhas costas e minha cabeça doíam... minha mente voou para longe e me lembrei dos tempos em que essa dor era constante, sufocante e permanente...

Flavius levou um susto quando viu que minha cabeça sangrava. Tentou me ajudar mas eu não permiti que ele se aproximasse:

—Saia daqui!!! - eu disse - Some da minha frente, seu desgraçado!!!

Tentei me levantar, mas cai umas duas ou três vezes antes de recuperar completamente o equilíbrio. Flavius desapareceu como um raio, tentei jogar alguma coisa nele, mas não acertei. Deve ter ido chorar em casa... e eu fui lavar o ferimento... recuperei o equilíbrio aos poucos e vi que também tinha machucado a boca, meus lábios estavam inchados, devo ter batido a boca nos dentes... merda!! `

....

Flavius deixou um leve sorriso escapar dos lábios, Rebeca, olhando para o garoto, disse sorrindo:

—Quer dizer que você surrou mesmo o Fip? Vocês costumavam fazer isso? Você não ouviu nada, Michel? Não ouviu a briga entre os dois?

—Ouvi os gritos, confesso que cheguei a ficar com medo, por isso não saí do jardim. Esperei até que as coisas parecessem mais calmas e então fui atrás de Fip.

—E como ele te recebeu?

—Quer que eu conte tudo em detalhes?

—Por favor.

—Ok, então...

...

´´Estava sentado no jardim dos fundos, a visão era magnífica, nunca tinha visto rosas tão belas quanto às rosas daquele lugar. Os muros do jardim, cobertos por trepadeiras, formavam um semicirculo com as paredes da casa. A porta da cozinha dava em uma área ampla que terminava em uma escada de pedras que descia até o jardim onde a plantação de rosas formava um contorno em volta do muro circular. Rosas vermelhas, brancas e amarelas se misturavam em uma harmonia perfeita, apesar de o número de rosas vermelhas ser consideravelmente superior às outras. No centro do jardim havia uma fonte abandonada coberta por plantas e folhas que caíam do pé de ipê plantado logo atrás da fonte, de modo que fizesse sombra a ela.

Um balanço na árvore e um caminho de pedras que levava até a fonte. No limite entre a grama e a plantação de rosas havia um pequeno desnível que deixava o canteiro levemente mais elevado que o resto do jardim. O cheiro de dama da noite podia ser sentido de dentro da casa.

Eu estava sentado na escada de pedra, de onde podia ver todo o jardim. Ele era iluminado por pequenos postes projetados para jardins. E eu estava me sentindo estranho. Sabe aqueles momentos em que sua mente parece não pensar em nada? Aqueles momentos em que você parece estar anestesiado e desligado do mundo? Eu estava assim.

Foi quando ouvi os gritos. Primeiro o Flavius gritando injúrias e maldições, depois a voz de Fip mandando ele se retirar. Depois de um tempo ouvi o barulho de coisas se quebrando e xingamentos sendo proferidos pelo jovem Francisco. Então comecei a me sentir mal. Senti que devia fazer alguma coisa a respeito. Não devia estar ali. Senti vontade de ir embora, mas não me senti à vontade o suficiente para dizer ao Fip que estava partindo. Então fiquei ali no jardim até que ele aparecesse.

O tempo foi passando, meu constrangimento aumentava. Cheguei ao ápice do desespero quando ouvi Fip chorando dentro da casa. Aquilo tudo estava me sufocando.

...

—Fip chorou naquela noite? - perguntou Flavius com um brilho nos olhos.

—Sim. - respondeu Michel – Chorou de um jeito que eu nunca vi igual.

—Continue, por favor.

...

´´ Decidi então ir atrás do Fip. Passei pela cozinha da casa, o chão era de madeira corrida, aliás, todo o chão da casa era coberto de madeira, ou tablado, não sei exatamente como se chama. A cozinha toda dava um aspecto muito antigo, cortinas de pano, mesas de madeira rústica azulejos clássicos formando desenhos simétricos, um fogão a lenha do lado de fora e janelas grandes de madeira. Havia dois alçapões: no teto um que levava até o telhado, o acesso a ele era feito através de uma escada simples que ficava encostada atrás de porta; no chão havia outro alçapão que levava até a dispensa onde Fip guardava galões de vinho e outros alimentos que não estragam fácil.

A sala era ampla, tinha um tapete vermelho vinho esticado no centro. No canto esquerdo, se é que podemos considerar que havia um canto, ficavam os sofás. Era um conjunto de três sofás marrons-avermelhados formando um semicírculo entre eles. Entre um sofá e outro havia um criado mudo onde Fip colocava vasos com rosas. O telefone ficava na parede, próximo aos sofás, assim como a televisão.No meio do semicirculo formado entre os sofás havia um tapete redondo vermelho. No outro extremo da sala ficava a escada, o piano e uma estátua próxima à janela. A estátua era de uma mulher vestindo uma toga e segurando um vaso, Fip dizia que era um aquário, mas, para mim, sempre pareceu mais um vaso. Ela ficava ao lado do piano preto de cauda que, por sua vez ficava em frente à escada. Tinha uma porção de quadros de diversas épocas diferentes que ficavam pendurados por fios que desciam do teto. No teto um lustre enorme de cristal e um desenho belíssimo de uma orquestra formada por anjos. As cortinas, todas vermelhas, tampavam as janelas de madeira. Embaixo da escada havia uma porta que levava ao porão. Na parede de onde saía a porta da cozinha havia também uma porta que levava ao escritório, esta ficava no centro, na mesma linha que a porta principal, e uma parede que levava ao banheiro, perto da escada e da porta que levava ao porão. Essa parede de portas não era redonda, era reta, e Fip pendurava longas tapeçarias nela. As paredes todas rabiscadas.

Fip estava no banheiro, chorando. A porta estava aberta, ele estava caído no chão junto a um monte de vidros de medicamentos e outras coisas quebradas que não consegui identificar. O banheiro não era grande, era todo coberto por uma cerâmica branca já muito desgastada e suja. Nunca entendi a lógica dessa cerâmica, Fip sempre disse que reformou toda a casa antes de se mudar, mas não entendo como umas casas recém reformadas pudessem apresentar cerâmicas desgastadas pelo tempo. A luz do banheiro era fraca, e dava um tom amarelado ao lugar, talvez por isso a cerâmica não parecesse tão branca. Fip estava caído ao pé da pia, que ficava muito próxima à porta e em frente aos ganchos onde se penduravam toalhas e roupas. Ao lado dos ganchos ficavam o vaso sanitário e o bidê e, em frente a eles a banheira branca.... ummm, minto ao dizer que toda a cerâmica do banheiro era branca, na verdade a cerâmica do chão era verde. Verde com flores brancas. Sim, sim, exatamente, verde com flores brancas.

...

—Nossa! Como você consegue se lembrar de tudo isso? - exclamou Natasha abismada.

—Michel sempre foi muito detalhista. - disse Flavius - Ele sempre prestou atenção em detalhes que todos nós deixávamos escapar.

—Érr, isso é do meu jeito. Mas como eu ia falando...

...

´´Fip estava caído no chão chorando...``

...

—Heheheh acho que essa foi a noite dos choros - interrompe Natasha – Eu também estava chorando igual uma louca na casa que o Fip me deu, ehehhe. Desculpa gente, pode continuar, Michel.

...

´´Como eu ia dizendo, Fip estava chorando no banheiro. Eu fiquei chocado com aquela cena. Toda aquela fragilidade não combinava com ele. Mas, de certo modo, não era tão impressionante assim, aquela casca rude devia mesmo carregar uma criança frágil. Agora eu podia ter certeza disso.

Aproximei-me e tentei ajudá-lo a se levantar. Fip se assustou quando percebeu minha presença. Foi quando reparei que sua boca e testa sangravam. Ele tentou tapar a face, eu disse:

—Ei, calma. Shhh não se preocupe, não precisa me dizer o que aconteceu nem me explicar nada. Eu só quero ajudar. Venha.

Senti muita pena dele. Deve ser difícil para uma pessoa como Fip, que edifica para si uma imagem endeusada e sobre humana, admitir que também possui suas próprias fraquezas. O jovem Francisco não me disse nada, apenas aceitou meu abraço. Quando o abracei percebi que ele gemeu de dor e levantei sua camisa. Foi quando vi os hematomas que Flavius deixou em seu corpo. Vergões, roxos e vermelhões. Senti que Fip estava extremamente envergonhado e tentava se esconder de mim. Então eu disse:

—Não se preocupe, ninguém vai saber que isso aconteceu. Agora vamos, tire essa camisa que eu vou fazer uma compressa com água quente e sal, vai ajudar a desinchar.

Fip apenas concordou com a cabeça e tirou a camisa. Subimos até seu quarto, depois eu desci até a cozinha e preparei as compressas. O quarto ficava logo depois da escada. Era o primeiro quarto do corredor, havia dois quartos e um banheiro. Fip me contou que, originalmente, havia três quartos, mas ele, durante a reforma, emendou dois quartos para ter mais espaço. Logo, não preciso dizer que o quarto era amplo. Como todo o resto da casa, o piso era de tablado, havia uma grande janela de madeira de onde se podia ver a praça principal. A cama de casal ficava no centro do quarto, era uma cama grande, com lençóis brancos e longas cortinas transparentes em volta dela. A cabeceira ia até o teto onde o cortinado se formava. Fip trocava as cortinas com muita freqüência. No canto oposto a porta ficava o enorme guarda-roupa. O quarto era dividido em dois ambientes. O primeiro era o quarto em si, onde ficava a cama, o guarda-roupa, a janela e a porta que levava até a varanda. O segundo ambiente também formava um semicírculo cujas paredes eram todas cobertas por espelhos e cujos espelhos eram cobertos por cortinas brancas transparentes. Dava um efeito muito bonito. No centro do segundo ambiente, que Fip chamava de ´salão de dança`, ficava pendurado um balanço. Apenas isso. Um longo tablado cercado por espelhos com um balanço no centro. Creio que Fip ensaiava ali, apesar de seu estúdio de dança ficar no porão. Havia um pequeno desnível que separava os ambientes. O ´salão de dança` ficava um pouco abaixo do quarto e uma escada de dois degraus fazia a divisão. O aparelho de som ficava na divisa, assim como a cama, de modo que um pequeno empurrão os derrubaria da escada. Havia também um cortinado branco que separava os dois salões, mas eu só o vi fechado uma vez.

Deixei Fip sentado na cama enquanto preparava as compressas. Quando voltei, ele estava na mesma posição. Fiz curativo em sua cabeça e na sua boca, depois passei as compressas em suas costas. Ele permaneceu calado quase o tempo todo. Estava quase terminando quando ele disse com uma voz quase neutra:

            -Você está parecendo minha mãe sabia?

            -Desculpe, não entendi. - ele havia falado muito baixo.

            Ele repetiu quase sorrindo:

            -Você está parecendo minha mãe.

            -Ah sim. Ela também passava curativos em você?

            -Sim. E vice versa.

            Dei um sorriso meio por não saber o que falar e continuei passando as compressas. Ele continuou:

            -Pensei que você fosse demorar mais tempo para parar de chorar. Como você está se sentindo?

            Respondi meio sem graça:

            -Estou meio estranho.

            -Sei como é.

            Sorri novamente por não saber o que dizer. Mas me senti bem com aquele sorriso, então ele me abraçou e disse:

            -Você vai superar isso. Você é forte, muito mais do que imagina.

            Fip não olhava para mim enquanto falava, olhava sempre pra frente. Seu rosto resplandecia tanto quando ele sorria! Foi a primeira vez que vi seu sorriso espontâneo. Fiquei encantado com sua beleza, com seu sorriso e com seu corpo ferido. Foi quando tive a mais absoluta certeza de que Fip era só um humano. Ele olhou para mim e disse:

            -Quer saber o que aconteceu?

            -Não. Eu posso imaginar e isso me basta.

            Seus olhos brilharam como se ele tivesse visto algo além de mim, e eu sei que viu. Então eu disse:

            -Pois então vejam que o grande Fip é só um humano. Um humano que foi surrado por um garoto.

            Ele riu alto, olhou para mim com um olhar malicioso e disse:

            -E o que você acha do garoto que surrou o grande fip?

            -Não sei.

            -Hahahhaa não pense que me engana Lorde Michel, eu sei que não há ser vivente dessa cidade que você não tenha dissecado psicologicamente.

            -Sabe é?

            -Conheço seu tipo. Sabe muito, deixa que saibam pouco e impede que saibam o que você sabe. Aliás, tem lindos olhos.

            Desviei o olhar rapidamente e disse:

            -Sinto pena dele. Sei que alguma coisa nele não se encaixa. Ele não se aceita e por isso espera que o aceitem.

            -Você desviou o olhar.

            -O que?

            -Quando elogiei teus olhos, você desviou o olhar.

            -E daí?

            -Nada, só comentei. Caramba, como isso ta doendo, meu Deus! Aquele menino tem punhos de aço.

            -Logo passa..``

...

—E depois?

—Fiquei lá até o dia amanhecer. Dormi na sala.

—E Fip?

—Ele só apareceu no outro dia de manhã.

...

            -Bom dia. -  Disse Fip

            Levantei-me, estava frio, ele jogou um cobertor para mim, sorriu virou as costas e saiu. Cobri-me com o cobertor e ali fiquei por alguns minutos sem entender o que estava se passando. Depois de um tempo em torpor mental decidi me levantar e sair, Fip estava na sala tocando piano:

            -Lua Branca, Chiquinha Gonzaga.- ele disse.

            -Eu conheço a música.

            -Obrigado pelos curativos, estou bem melhor.

            -Não seja por isso. Desculpe mas eu preciso voltar pra casa. Meus pais devem estar preocupados.

            Continuei caminhando em direção à porta:

            -É inútil pedir para que você não comente nada com seus pais?

            Virei-me para ele e pensei em responder: ´´Sim, é completamente inútil``, mas pensei em tudo o que precisaria enfrentar e no quanto estava fraco para fazê-lo:

            -Não tem muito o que dizer.

Ele sorriu e disse:

            -As portas da minha casa estarão sempre abertas para você.

           Cheguei em casa, passei reto pelos meus pais sem olhar para eles, minha mãe se levantou da mesa e me perguntou uma porção de coisas, ignorei-a por completo, entrei no quarto, tranquei a porta e ali fiquei até o fim do dia.

...

´´Assim que Michel saiu eu pude dormir e assim que acordei pude sentir o peso da casa vazia... escrevi alguma coisa a respeito disso, soava mais ou menos assim:

...as portas estão trancadas, os caminhos tortos e os sorrisos selados. A vida está parada, as pessoas estão sozinhas e não há razão para continuar. Chove lá fora ( na verdade não estava chovendo, mas achei que ficaria mais bonito se eu dissesse que chovia) e as poucas pessoas que passam tentam se proteger de sua própria natureza. A casa está vazia e o som do silencio ecoa pelos cômodos. Aumento o volume para disfarçar a solidão e não vejo resultados. Deixo as lágrimas rolarem em meu rosto e a mágoa congelar meu peito... Sinto-me cada vez mais distante, gelado, sozinho e morto.... O sangue, ou a falta dele, já não fazem mais diferença, e o dom de sentir e querer que sintam já está aos poucos sendo perdido.... Onde estão minhas rosas e cheiro delas?...``

...


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