Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 10
Capítulo 8 - a dor que rasga os sentidos...




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´´Já eram oito horas da manhã quando Michel apareceu sem qualquer aviso:

—Desculpe vir sem avisar. Mas estive pensando no que você disse. Talvez eu queira sim conversar.

—Entra.

Ele entrou. Ficou me olhando nos olhos e perguntou:

—Até onde você sabe sobre essa história?

 - A história me pareceu muito simples: há dois anos o digníssimo patriarca dos Angoti descobriu que seu filho, Michel, mantinha um ´´sórdido`` relacionamento amoroso com um jovem chamado Cláudio. O caso se espalhou pela cidade causando um escândalo que arruinou a carreira política do clã, fazendo com que seu patriarca perdesse as eleições e que seu filho fosse praticamente proibido de sair de casa... então seu pai, o grande patriarca ofereceu um dinheiro pro menino pra ele sumir. E ele, cuzão que era, aceitou.

  -Então você ouviu a versão leve.

—Tem como ficar mais pesado que isso?

—Você soube o que aconteceu com o Claudio depois que ele partiu?

—Não.

—Ele morreu. Meses depois, num acidente de carro.

—Nossa, que tenso.

—E eu tenho minhas desconfianças de que meu pai forjou esse acidente.

Dito isso o menino começou a chorar. Eu odeio quando as pessoas começam a chorar. Acho de uma falta de compostura chorar na frente dos outros! Toda a situação fica muito constrangedora! Qual a dificuldade das pessoas de segurar seus sentimentos pra chorar sozinhas nos seus quartos?

—Por que você acha isso? Aliás, por que você está me contando isso?

—Sua família é muito parecida com a minha. – ele disse – Você duvida que eles sejam capazes?

—Não, eu não duvido.

—Você acha que conseguiríamos descobrir?

—Se a sua família for realmente parecida com a minha, eu duvido que consigamos encontrar qualquer vestígio de qualquer coisa.

Michel ficou parado por algum tempo me fitando com  um olhar perplexo, como se tentasse encaixar as coisas na sua cabeça.- É ... é muito triste... pensar... que ele está... morto, não é? É um golpe forte e profundo. Quando eu soube da sua morte eu perdi parte do meu mundo. Você já perdeu alguém que ama? É uma dor capaz de rasgar todos seus sentidos e destruir sua alma... é a dor da morte, a dor da perda irremediável... a dor da humilhação, do preconceito, do desrespeito... saber que não há um lugar para si no mundo... dor que apenas os excluídos podem sentir... dor da minoria... do ódio sem porquê... Eu não consigo entender. Eu não consigo aceitar... você entende o que eu estou falando? 

Fiz um sinal afirmativo com a cabeça. Michel chorou de um jeito que deu pena. Se debateu, se arranhou, gritou... me arrependi de tê-lo chamado até minha casa... odeio essas situações.. nunca sei como agir... não conseguia pensar em nada para lhe dizer... e ele ali chorando... chorava pela dor, pela perda, pelo desrespeito, pela impotência diante da vida e sua crueldade irremediável... por alguns segundos eu quis chorar também... quis largar tudo e me debater como ele... não posso dizer que sabia o que ele estava sentindo porque cada ser humano possui sua própria dor e seu próprio jeito de lidar com ela... mas posso dizer que sei como é estar passando por isso... ainda tenho em minha pele as marcas da hipocrisia e do desrespeito humano... já tive meus próprios traumas por tentar, simplesmente, ser o que sou... mas a humanidade não aceita a verdade, não aceita o diferente, não aceita o que não pode admitir que também possui... imaginei o tamanho do ódio que Michel estava sentindo nesse momento...  Mas consigo dimensionar o meu...

... humanos patéticos, pensam que seus pecados são mais puros que os meus? Pensam que devem ser respeitados pelo fato de se esconderem por trás das suas hipocrisias baratas? Acham que não vão para o inferno porquê ninguém vê seus pecados? Pensam que o fato de esconderem suas monstruosidades às faz deixar de existir? Não sejam tolos! 

Podem me expulsar quantas vezes quiserem de suas casas... podem me torturar com seus risos e me julgar com seus olhares mesquinhos... podem tentar calar minha boca e me impedir de mostrar o que sou, mas isso não vai me fazer deixar de existir.... sociedade patética, sempre tentando evitar que as coisas aconteçam... sempre fechando os olhos... evitem a vida, deixem-na passar... matem o mundo aos poucos... é assim que sempre foi não é?...

...evitar um problema não vai fazer com que ele se resolva... Não tentem me julgar, todos tem os mesmos pecados que eu! Vocês não são melhores por estarem encaixados em um padrão estúpido que nem vocês sabem por que existe....

 

...mas essas palavras, simplesmente, não mudaram nada, e o Mundo continuou sendo a mesma coisa que era antes delas serem escritas... simples assim...``

 

...

 

—Eu não imaginava que Fip fosse tão mesquinho e frio. - Disse Pierre.

—É estranho receber as lembranças pelo ponto de vista dele - disse Michel enquanto limpava suas lágrimas - Eu me lembro desse dia, mas tinha uma perspectiva diferente sobre como Fip se lembraria dele. Você diz que ele era frio, Pierre? Pois eu estou completamente convencido do contrário! Jamais imaginei que Fip poderia ser capaz de sentir as coisas dessa maneira! Agora eu tenho certeza do que dizia: Fip não era frio, só não sabia lidar com seus sentimentos, por isso os mantinha escondidos em um lugar em que só ele teria acesso. - deslizou os dedos sobre o diário - Mas, de alguma forma, ele precisava mostrar que esses sentimentos existiam. - sorriu saudosamente - Agora sim, agora eu posso entender o sentido de tudo isso. Posso, finalmente, compreender o porquê de estarmos aqui. Para descobrir que Fip tinha sentimentos. - olhou para Flavius e Natasha - E, talvez, decifrá-los.

            As palavras de Michel pareceram fazer algum sentido para Flavius, que distanciou seu olhar e pareceu se perder em seus próprios pensamentos, como se, agora, ele fosse obrigado a enxergar as coisas de uma forma diferente. Natasha se conteve em olhar para o diário e ali deixar perdido seu olhar enquanto dizia:

            -Eu não fiz parte de nada disso, mas é estranho ouvir você ler esse diário, Pierre, parece que posso ouvir o próprio Fip falando. É estranho pensar que ele está morto. Ainda não me acostumei com a idéia de que nunca mais poderei vê-lo. - seus olhos encheram-se de dor - Sabe? Para mim parece que a qualquer momento ele entrará por essa porta, sorrindo daquele jeito que só ele sabia sorrir, e dirá: Olha só, todo mundo lamentando minha morte! Como vocês são bobos! Acreditaram mesmo que tinha morrido? Fip parecia ser grande demais para morrer...- abaixou a cabeça sem conseguir fazer com que sua voz saisse.

            Um silêncio tenso e desconfortável se instalou, novamente, no recinto. Pierre e Rebeca se entreolharam. Michel abraçou a amiga e murmurou algumas palavras em seu ouvido.

 

...

—Onde estou?

—Não se preoculpe. - respondeu a enfermeira - Você está segura aqui. Seu irmão pagou sua internação. Encontraram você na praça principal de Alvinópolis e te trouxeram para cá. Você não se lembra de nada?

—Não... não me lembro...

—Então durma. Durma enquanto ligamos para seu irmão.

...

            -Adianta alguma coisa eu dizer que me importo? – Fip perguntou enquanto o garoto chorava.

            -Não sei.

            -Então por quê veio até aqui? Se não era pra alguém se importar?

—Eu não sei!

            -Então vamos. Pode chorar o quanto quiser. Juro que não vou interrompê-lo novamente. Só peço para que não o faça na frente dos seus pais, isso pode trazer problemas. Vou te dar as chaves da minha casa. Assim quando a dor for grande demais para que você contenha o choro, poderá ir até lá e chorar o quanto quiser.

            -Por que está fazendo isso?

            -Por que já passei por essa situação. Digo, não exatamente ESSA situação, mas por coisas parecidas. E gostaria que alguém fizesse algo parecido por mim

            -Conte-me a sua história, Fip. Conte-me o que aconteceu. Às vezes ajuda ter alguém para dividir a dor.

            -Não. Estamos aqui para resolver o seu problema, e não o meu.

Michel se manteve calado pelo resto do dia.

...

—´´Por que já passei por essa situação. E gostaria que alguém fizesse algo parecido por mim.`` Essas palavras de Fip me trouxeram lembranças do dia em que conheci Cláudio. Era o primeiro dia de aula depois das férias de julho, ele tinha acabado de ser transferido e, por isso, não conhecia ninguém. Era hora do recreio e eu, como sempre, estava sozinho em um canto do pátio. Ele se aproximou, sentou-se ao meu lado e tivemos uma conversa mais ou menos assim:

—Sózinho?-ele perguntou

—Sim.

—Você não se encaixa, não é? - ele falava com calma e doçura, seus lábios pareciam jorrar mel e suas palavras pareciam música.

Olhei para ele com olhar de dúvida, não tinha entendido o que ele queria dizer. Ele compreendeu minha dúvida e disse:

            -Não se sente compatível a nenhum deles. - apontou para os garotos da minha sala, que brincavam de se esmurrar no canto do pátio. - Ninguém se aproxima de você, mas, se acontecesse, você simplesmente não teria assunto para conversar com eles, porque nenhum deles seria capaz de compreender o que se passa contigo. Da mesma forma que você não saberia dizer o que se passa com eles.

            -É, acho que sim.

            -Pode até não parecer, mas eu sei exatamente como você se sente. Já passei por isso. Achei engraçado te ver aqui. – sorriu - Exatamente da mesma forma que eu ficava, com a mesma cara de poucos amigos e a mesma esperança de que alguém se sente ao seu lado e , simplesmente, tente te compreender.

            -É verdade.

            -Infelizmente, para mim essa pessoa nunca chegou. Mas você terá essa oportunidade.

            Eu sorri, ele continuou:

            -Quer conversar? Não se preocupe com a falta de assunto, é só forçarmos um pouquinho e ele surge.

            Conversamos todos os dias do ano por todo o tempo que podíamos. Não demorou para que nos apaixonássemos e não demorou para que descobrissem.

O resto da história vocês já sabem...

...

´´Depois que o Michel se acalmou de todo seu drama, eu o levei comigo até a capital para que visitássemos Natasha. Deixei o menino na sala de espera enquanto fui conversar com o médico responsável pela garota. Era um médico de família, cuidava de mim e da minha mãe quando meu pai decidia nos espancar. Ele sabia manter sua boca calada ( fazia isso até  bem demais):

            -Como ela está? - perguntei

            -Muito bem, só está com um braço e uma perna quebrados. Precisamos fazer uma transfusão pela quantidade de sangue perdido. Além dos exames de rotina. Deu um certo trabalho descobrir o tipo sanguíneo dela mas...

            -Você será pago por isso. -era bom interromper o velho logo no começo, caso contrário ele colocaria uma série de empecilhos no caminho a fim de conseguir mais dinheiro. - Onde ela está?

            -No quarto 07.?

—Agora, se o senhor me permite, eu vou conversar com ela.

            -Claro.

Porco! Passou a vida inteira curando meus ferimentos sem fazer uma denúncia sequer! Aliás, ninguém jamais se manifestou. Todos se mantinham calados! Todos fingiam que nada estava acontecendo. Em casos como esse é o que as pessoas fazem; mas em casos como o de Michel todos decidem interferir. Covardes! Só lutam contra quem não pode se defender... são todos uns porcos imundos, isso sim!

            Entrei no quarto da garota. Ela estava sozinha, olhos abertos fitando o infinito, cabelos desgrenhados, roupa de hospital (arg, ninguém fica bonito assim) e mais pálida que o normal (mesmo que eu não saiba qual é o normal dela). Sentei-me ao seu lado, ela me olhou com dúvida, eu perguntei:

            -Como é seu nome?

            -Natasha.

Seu olhar não mudou. Ela continuava a me olhar com aqueles olhos sem expressão, aqueles olhos magníficos e distantes. Eu continuei falando:

            -Quantos anos você tem?

            -Vinte.

            -Me disseram que meu irmão viria me buscar. Onde ele está?

            -Seu irmão sou eu. Pelo menos é isso o que eles acharam, sei lá por que. Eu te encontrei toda estropiada e quebrada na frente da minha casa e mandei você para cá.

            -Mas isso não me interessa. Não precisa perder seu tempo me explicando essas coisas. Eu só quero ir embora dessa merda de hospital e decapitar o cretino que fez isso comigo!

            -Também não me interessa o que você pretende fazer. Eu só acho que você é uma vaca mal agradecida! Eu salvei sua vida sua pirralha! Acho que merecia, no mínimo, um ´´obrigado``.

            -Ah! Vai a merda! Quem te garante que eu queria viver?! Eu não queria nem... peraí! Você é o cara da janela! É o cara que eu vi na janela!

            -E daí?

            -Olha pra mim.

Olhei bem no fundo dos olhos dela. Os mesmos olhos que salvaram sua vida. Os mesmos olhos que me impediram de deixa-la morrer. Alguma coisa mudou em seu olhar. Alguma coisa mudou dentro dela. Depois disso ela me disse:

            -Me desculpe.. esse hospital está me dando nos nervos. Não sei por que você me salvou... eu nem tenho para onde ir.

—Tem sim. Eu arrumei uma casa na cidade para você.           

—A troco de quê? Eu nem te conheço! Não posso confiar em você!

Aproximei-me de seu rosto e sussurrei em seu ouvido:

            -Acorda, minha filha, você não pode confiar em ninguém! Será que até hoje você não aprendeu isso? Você não pode confiar em nada que respire, pense ou, ao menos, sonhe. Você quer sair daqui, não quer? Muito bem, eu vou te tirar daqui. Vou te levar até sua nova casa e depois te levo para onde quiser.

            -Eu não tenho casa.

            -Então larga de ser burra e aceita a que estou te dando! Eu imagino que deva ser difícil para você. Imagino que tudo está sendo difícil. Mas acredite, não é fácil para ninguém.

            -E como eu vou saber se posso confiar em você?

            -Você não pode, mas sua vida já ta toda fudida mesmo. Você não tem nada a perder.

Badeca mais irritante! Estava quase me arrependendo de ter salvado essa vida medíocre. Que coisa chata! Arf! Já estava decidido a ir embora quando ela disse:

            -Você tem a marca.

            -Que marca?

            -A marca no olhar.

            -Do que você está falando? - essa conversa enigmática estava começando a me agradar.

            -A falta de brilho nos olhos. A marca de quem já perdeu as esperanças de viver. A marca de quem não acredita mais no mundo e na bondade que dizem ter nele. A marca da dor.

Ela não precisava ter dito ´´A marca`` tantas vezes! Isso ficou um pouco irritante. Mas, mesmo assim, gostei do que ela disse, apesar dos termos clichês. Tive vontade de continuar a conversa:

            -Marca essa que só pode ser percebida por alguém que também a possui.

            -É verdade.- sorriu.

Sorri também, olhei para ela e disse:

            -Vamos embora dessa merda de hospital. Vou levá-la até Alvinópolis. Não tem roupas para você lá, mas eu posso costurar alguma coisa que você goste. Quando você tirar o gesso da perna e do braço, talvez, poderá decapitar a pessoa que te atropelou. Mas antes disso você vai ficar quieta no seu canto.

            -E eu devo agradecer?

            -Não. Não estou fazendo isso por você. Essa é a primeira lei da máfia: faça com que te devam um favor, assim você o terá em suas mãos quando precisar.

            -Certo senhor mafioso, você pode me levar agora?

            -É certo que sim. Vou providenciar tudo.

E assim, no final do dia, Natasha estava hospedada em Alvinópolis. Arrumei uma casa em frente à minha. Apenas a praça nos separava. Flavius estava esperando na porta quando chegamos”


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