O Mágico e os Ladrões de Som escrita por André Tornado


Capítulo 28
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O Doutor e Missy entreolhavam-se. Atrás deles, compondo um cenário de catástrofe, caos e destruição, a invasão da Terra prosseguia, potenciada pela infeção dos humanos pelo estranho fungo que lhes controlava os corpos e, em última análise, todas as suas funções vitais. A multidão, que se predispunha a assistir a um espetáculo divertido proporcionado por um festival de verão, era agora uma massa lamentadora de pessoas anestesiadas e brutificadas. Havia ainda pilhas dispersas de cadáveres, os infelizes que tinham sido assassinados pelos daleks furibundos que continuavam a invocar o extermínio da raça humana no seu sobejamente conhecido grito de guerra.

— O que fazes aqui? Pensava que tinhas sido desintegrada durante aquela loucura com o levantamento do novo exército de Cybermen – comentou o Doutor, ríspido, desdenhoso, acintoso. E quando o disse esboçou uma careta que lhe arrepanhou um dos cantos da boca. A mulher teria visto o seu olhar implacável, não fosse por causa dos óculos escuros que eram agora sónicos.

— Oh, querido! – exclamou ela com aquela graça vitoriana que a adornava, agora, disfarçando a sua natureza perigosa entre rendas, sedas e botões. – Julgo que estás bem ciente de que estamos numa dimensão paralela. Tudo o que aqui acontece não se vai refletir no nosso universo. – Apontou a palma da mão para cima, indicando o que se desenrolava depois do palco. – Olha só para toda esta trapalhada… Enerva-me o descalabro e o desleixo. Odeio coisas mal feitas e esta invasão dalek é, seguramente, uma coisa muito mal feita. Não me ofendas querendo associar-me a isto.

O Doutor encolheu os ombros.

— Pouco me importa o que pensas ou o que deixas de pensar, minha querida.

Lembrou-se da Clara e foi ter com ela. Agachou-se e descobriu-a sem sentidos, junto à caixa onde tinha batido com a cabeça. Chamou-a, esfregando-lhe a mão fria.

Missy espreitou-o.

— Oh… manténs o teu bichinho de estimação. Continua a ser essa mulherzinha insignificante. Porque te apegas a esses seres inferiores e insistes em viajar com eles? São tão frágeis, tão… descartáveis.

Não lhe respondeu, porque se o fizesse estaria a alimentar as suas provocações e tudo o que ele menos queria, naquele momento ensurdecedor e confuso, era iniciar uma discussão com a mulher.

Como a Clara não dava sinal de que acordaria em breve, o Doutor carregou-a nos seus braços. Pôs-se de pé. A música histriónica que os Linkin Park insistiam em tocar calou-se, abruptamente. Alguém tinha desligado o sistema de som, puxado o cabo principal que ligava as colunas à eletricidade, qualquer coisa. O certo é que a música já não era vomitada, insana, pelo sistema de altifalantes e amplificadores. Os músicos, contudo, continuavam a tocar, alheados ao facto de estarem a ser escutados ou não. Os seus olhos verdes refletiam, fantasmagoricamente, os raios de morte despejados pelos daleks.

— Vais já deixar a festa?

— Missy, esta é uma dimensão alternativa e já vi tudo o que tinha para ver. E não pretendo alongar-me… na tua companhia. Regressa… para onde tens de regressar.

— Oh! Vais deixar-me no meio desta guerra.

— Não terás problemas, Missy! Tu gostas… de conflitos.

— O que vais fazer?

— Vou-me embora.

— Isso sei eu, querido – disse ela, impaciente. – O que vais fazer com o que viste aqui, nesta dimensão alternativa? Oh!, gostei desse termo rebuscado. Dimensão alternativa. Tão… chique. Tão… misterioso. Estás a fazer um mistério de tudo isto. Tem que ver com os fungos avaza dos Azkura. Quer parecer-me, hum… – Fingiu-se pensativa, colocando um dedo sobre o queixo e revirando os olhos – Quer parecer-me que na dimensão correta estás a braços com uma praga semelhante e quiseste vir ver o resultado final se deixares tudo acontecer. Com falta de soluções, Doutor? Isso é tão divertido! – Riu-se com esta exclamação.

O Doutor suspirou.

— Estás muito bem informada, Missy. Não careces dos meus esclarecimentos. Eu é que devia perguntar-te o que fazes aqui… e como escapaste à desintegração do Cyberman.

— Segredos meus! Não pretenderás desvendar os segredos de uma senhora… isso é tão indelicado. – Fez um trejeito afetado. – Oh!, só estava de passagem e reconheci a presença da tua querida TARDIS. Um dia vou ficar com a tua nave. Já to disse?

— Um dia, vais estar comigo, na minha TARDIS e viajaremos juntos. Para que nunca te perca de vista, Missy.

A mulher tornou a rir-se.

— Mas sem essas companheiras horrivelmente frágeis! Não me misturo com a ralé. Gosto dos óculos escuros, querido.

— Adeus, Missy. Toma cuidado contigo.

A destruição prosseguia. O horror do extermínio, o fogo das explosões, a contaminação imparável, as pessoas que tombavam nesse enorme campo de batalha, o mundo a ser devastado a partir de um acontecimento mínimo que haveria de se alastrar selvaticamente, até cobrir toda a Terra com os mesmos sons e cheiros de uma tragédia inominável. A Clara tinha razão. Era muito difícil assistir àquilo, ainda que fosse numa outra dimensão.

Missy percebeu que ele se afastava. Deteve-o, colocando-se à sua frente. Estava, agora, séria e ameaçadora.

— Posso recolher uma amostra de um fungo avaza e fazer chantagem contigo, mais tarde. É uma criatura interessante que gosta bastante de som, especialmente de música. E tu também gostas de música. Digamos que me parece um excelente inimigo para o Doutor. Um fungo que devora o que mais amas. Encontraste tanto disso através do imenso universo…

— Não vai resultar, Missy. Poupa os teus esforços.

— Ah! Tu sabes como derrotar o fungo!

— Adeus, Missy – repetiu o Doutor.

— Conta-me! – pediu ela com mais alegria do que aquela que seria adequada para aquela situação. – Conta-me o que descobriste sobre os avaza.

— Os fungos também são capazes de parasitar um senhor do tempo. Cuidado onde vais mexer, Missy.

— Oh… não te vou dar essa alegria… Doutor. De ficar contaminada por um fungo idiota e teres de vir em meu auxílio – contrapôs ela, fingindo-se de ofendida. – Mas! Mas… mas…

— Continua.

— Mas não irei acatar o teu conselho de ter cuidado onde mexo. Adoro experimentar os meus limites e de tocar em coisas com o aviso de que não lhes devo tocar. É tão excitante! E poderei querer saber, por experiência própria, como funciona um fungo avaza. São apenas uma lenda. Vê-los a atuar é uma oportunidade única.

— Os daleks são outro dos perigos que deverás evitar nesta dimensão. Se ainda pretenderes fazer turismo científico por aqui.

— Turismo científico… Curioso.

— Desejo-te boa sorte.

— Oh, partes-me ambos os corações.

— Qual a razão?

— Vais despedir-te de mim… pela terceira vez hoje.

— Efetivamente. – E o Doutor disse-o novamente: – Adeus, Missy.

Sem prolongar mais aquela conversa que, no fundo, não teve qualquer propósito, o Doutor saiu apressado do palco. Os seis membros dos Linkin Park prosseguiam na sua atuação fantasma, os braços moles, as cabeças a balançar, as pernas bambas. Davam pena, mas o Doutor não se quis demorar nessa avaliação.

Desceu as escadas que o levavam ao nível do solo, carregando a Clara. A barafunda estendia-se também aos bastidores, com gente a correr desvairada por entre explosões e disparos quentes. Ele desviou-se de pessoas e de relâmpagos, de corpos inertes e de destroços, protegendo a Clara e pensando com uma certa intransigência que lhe era característica de que não iria tolerar a repetição destes acontecimentos no seu universo.

A Missy não o seguiu e ele entrou na TARDIS sabendo que o futuro iria ser reescrito, mais uma vez, com a sua assinatura vencedora. 


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
O tempo que passa devagar.