Chuva de Prata escrita por Kori Hime


Capítulo 2
Chuva de Prata II




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A chuva de prata ao qual a rainha cigana mencionou realmente aconteceu. Entretanto, não foi tão mágico como ela descreveu. A tempestade iniciou logo depois que o casal dançou sua primeira música. As fogueiras espalhadas pelo acampamento se apagaram e todo mundo correu de um lado para o outro para se abrigarem.

Geralt entrou em sua tenda, após ajudar a acolher os animais em cercados para eles não fugirem ou se perderem no meio da tempestade intensa.

A tenda segurava bem a chuva, sua lona protegia todo o interior e era reforçado com madeiras, para que não fosse levada pelo vento. Embora os tapetes no chão estivessem encharcados, mas nada era perfeito. Um fogaréu aquecia o lugar e o bruxo acendeu algumas velas disponíveis. Ele tirou o colete de couro e a camisa, pendurando-as em uma corda improvisada que esticou de um lado ao outro da tenda. Achou que nada mais aconteceria naquela noite, até a voz de Jaskier se misturar ao uivo do vento ao lado de fora ao clamar por abrigo.

— Ninguém te ofereceu a cama para dividir essa noite? — Geralt o atiçou, quando abriu a cortina, deparando-se com um bardo todo molhado e de queixo trêmulo.

— Você vai agir como um sem coração nesse momento? — O bardo abraçava o próprio corpo embaixo da chuva, seus cabelos estavam colados em sua testa e a expressão era de puro lamento. O bruxo até teria pena dele, se tivesse tal coração.

                Geralt queria fechar a lona na cara dele, mas, quando deu por si, havia permitido o bardo entrar, consumir uma bebida quente e compartilhar o fogaréu com ele. As coisas aconteciam num piscar de olhos quando Jaskier estava por perto e nem mesmo o bruxo de Rívia se dava conta disso até acontecer.

Estava pronto para dizer ao bardo que, daquela vez, eles não iriam dividir a mesma cama. Só que não foi necessário ressaltar em palavras. O bardo ajeitou-se no canto da tenda, próximo de uma vela, onde observava a chama com atenção e em silêncio e reflexivo. Algo incomum vindo dele.

— Você acha que é possível uma pessoa se entregar para outra mesmo que ela não seja desejada? — O bardo perguntou, com um longo suspiro.

Geralt preferia ficar em silêncio e passar a noite ouvindo apenas o barulho da chuva. Mas não seria tão fácil mantê-lo calado. Contudo, a pergunta pareceu curiosa.

— Não me diga que você está achando que aquela conversa da rainha era sério? — O bruxo foi até a cama e se deitou. Não era muito grande e nem muito confortável, mas era a melhor coisa para se chamar de cama em um raio de milhares de quilômetros.

— Eu sei que as lendas têm um fundo de verdade. Até porque, casamentos sempre causam um rebuliço nas pessoas. Parece que todos ao redor ficam excitados com o clima de romance no ar. Não acha?

— Casamentos são iguais a qualquer um, em qualquer lugar.

— Não me diga que os bruxos não possuem uma tradição para enlace matrimonial?

— Não precisamos nos casar.

— Bem, parece que é um problema a menos para se preocupar. — O bardo suspirou, novamente, encolhendo os ombros. — Talvez a chuva de prata não alcance você.

— Talvez eu não deseje que ela me alcance. — Geralt abriu os olhos quando ouviu uma movimentação. Jaskier estava em pé, próximo do fogaréu, com as mãos esticadas. O bruxo levantou-se da cama e pegou o pano que havia se secado anteriormente. — Tome, seque-se ou vai ficar doente.

O que havia de diferente em Jaskier era uma incógnita. Geralt, a princípio, preferia ignorar a maioria das coisas que ele falava, suas histórias e ideias muitas vezes confusas e pouco convincentes. Mas aquelas últimas palavras pareceram demonstrar uma personalidade diferente do bardo. Havia preocupação em suas palavras?

— Uma vez, fui a um casamento nas montanhas. — Jaskier comentou, passando o tecido nos cabelos. O bruxo observou como as mãos dele se moviam lentamente pelos fios, até jogar a cabeça para os lados, fazendo o cabelo balançar. — A noiva não era acostumada com o ar rarefeito das montanhas e desmaiou algumas vezes. O rei já estava cansado, mandou providenciar uma cama e ela se casou deitada.

Ele riu, direcionando o olhar para o chão. Geralt notou as maçãs do rosto dele ressaltadas, assim como as marquinhas em suas bochechas ficaram mais salientes. Ele era mais baixo, é verdade. Não possuía um corpo musculoso, havia ali um rastro de muita farra com comida e bebida. O trabalho braçal não era de seu feitio, mas isso não significava que ele não era atraente ao seu modo.

Gealt piscou e espantou tais pensamentos no mesmo instante.

— Você diz, meu amigo, que casamentos são todos iguais, mas eu vi alguns bem diferentes. — Ele completou.

— Todos tem a mesma finalidade. — O bruxo falou sério.

Jaskier suspirou e passou o pano em seu pescoço, não havia muito o que fazer quanto suas roupas de baixo molhada, a calça grudava em sua pele enquanto ele havia se livrado da camisa manchada de vinho.

— Houve um casamento em um fiorde ao norte. Dois homens foram abençoados em uma cerimônia romântica no jardim do palácio à beira do mar.

— Parece romântico até demais. — Geralt inclinou a cabeça e seus cabelos, ainda molhados, escorregaram pelos ombros. Estava maior do que o normal.

— Devo dizer que o casamento me surpreendeu porque o noivo alegava que estava esperando um filho do príncipe. Ninguém acreditou, mas alguns meses depois uma criança nasceu.

— E você estava lá para ver?

— Vamos dizer que as músicas compostas não caíram na graça das pessoas. Mas, você pode imaginar que o mundo está cheio de pessoas diferentes e vivendo suas vidas complexas. Embora as tradições pareçam piegas, há algo especial na atmosfera de um matrimônio.

Geralt deu de ombros, virando-se para pegar mais lenha para o fogaréu.

— A chuva realmente causou algum efeito em você. — Ele comentou.

— Seria o amor percorrendo agora nas minhas veias? — Jaskier aproximou-se e esticou novamente as mãos na frente do fogo. Seu tom de voz era de um verdadeiro bardo em seu ápice de inspiração.

— Se continuar nessa vida, talvez nem sangue mais corra.

— Você é deveras engraçado... — O bardo soltou o ar pela boca, cansado. — Perigoso, grosso e bruto, mas quando quer, é engraçado e gentil comigo.

Geralt voltou à cama, olhando para o amontoado de panos e almofadas. No chão, a água da chuva escorria por baixo da proteção da tenda. Jaskier ainda tremia de frio, agora sem a camisa, deixando a mostra a pele branca. Ele notou uma cicatriz nas costas do bardo e quando perguntou o que havia causado aquilo, Jaskier virou-se, dando alguma desculpa sobre cair do segundo andar de uma casa em Monte Claro.

— Me parece uma marca de açoite. — Geralt sentou-se na cama e apoiou os cotovelos nas pernas, entrelaçando os dedos das mãos, enquanto analisava a postura do corpo do bardo na defensiva.

— Essa não é uma história assim tão boa para contar. — A voz dele não parecia mais tão animada. — Eu não quero abusar da hospitalidade, por isso vou deixá-lo dormir em paz e sem perturbá-lo com meu falatório.

Geralt soltou um longo gemido de irritação, ele poderia apenas ignorar a situação, não era?

— Se lembra da hospedaria em Figueira? — O bruxo perguntou, havia se prometido não fazer aquilo, mas era como já havia percebido desde o começo. As coisas apenas aconteciam quando Jaskier estava por perto.

— Como me esquecer? Ótima torta, pessoas animadas, você estava lá, não se lembra?

— Eu me refiro... deixa para lá. — Ele se deitou na cama e fechou os olhos, as mãos pousavam sobre o peito, enquanto tentava relaxar a mente. Era a parte mais difícil, sua mente nunca descansava.

Contudo, aos poucos sentiu o seu corpo amolecer e os olhos pesarem, estava relaxado o bastante para não se incomodar com o cantarolar do bardo ao lado. Foi despertado unicamente com o som de um raio próximo que causou a queda de uma árvore.

Depois disso, não conseguiu mais relaxar e dormir.

O bruxo olhou para o lado, vendo Jaskier sentado no chão molhado ao lado do fogaréu. Ele cochilava, pendendo a cabeça para os lados, endireitando o corpo quando despertava assustado. Geralt sentou-se novamente na cama e esfregou as mãos no rosto.

A cama era pequena, verdade, a da hospedaria em Figueira também, e os dois conseguiram compartilhar. Não foi diferente dessa vez, e lá estavam os dois novamente repetindo aquela mesma cena. Contudo, essa noite estava fria e Jaskier tremia deitado ao lado de Geralt. Ao levar a mão até a testa do bardo, sentiu como ele havia ficado quente, não levou muito tempo para o suor empapar os cabelos dele, que foram jogados para trás pela mão do bruxo ao passar uma toalha molhada em sua testa.

— Vamos, uma febre não vai matar você, não é? — Geralt esquentou o restante de água limpa que tinha e fez uma mistura com ervas guardadas em sua bolsa de couro. Quando a bebida ficou morna, sentou Jaskier na cama e o segurou para que ele bebesse o conteúdo.

A noite parecia ainda mais longe de acabar, Jaskier havia delirado e até mesmo falado palavras desconectas. Quando amanheceu, o bruxo buscou ajuda do curandeiro, que avaliou o bardo.

— O coração está normal, assim como seu pulmão, não ouço nada diferente. — Dizia o homem com a cabeça apoiada no peito de Jaskier.

— Não é possível, ele teve febre e tremeu a noite inteira, obviamente estava com algum tipo de doença. — Geralt ordenou que o curandeiro o avaliasse novamente, mas não havia nada que ele pudesse fazer.

Felizmente, Jaskier estava melhor, mas a sua mudança havia causado estranheza no bruxo, ele não poderia estar delirando junto com o bardo. Era impossível, havia visto com seus próprios olhos e cuidado dele ao longo da noite. Protegido do frio ao qual ele tremia.

— Minha cabeça parece que vai explodir, mas eu acho que já posso ir embora. — O bardo lamuriou-se, enquanto sentava-se na cama.

— Vai com calma. — Geralt abaixou-se, ajudando-o. — Trouxe comida.

— Estou sem fome.

— Vai comer.

— Está bem. — Jaskier riu. — Parece que o mundo dá voltas, eu te ajudei uma vez e você me ajudou agora.

— Espero que fiquemos quites hoje. — O bruxo disse sério.

— Você odeia tanto assim minha companhia? — A pergunta não veio carregada de sarcasmo ou aquele tom espertinho que ele costumava usar. Jaskier olhava deprimido para o prato em seu colo. Havia uma fatia de pão, uma maçã e pequenos tomates cereja. Ele ergueu a cabeça e seus olhos azuis brilharam. Algo novo naquela expressão fez Geralt emudecer, sem dar a resposta, fazendo com que o bardo acreditasse que fora uma confirmação.

— Eu não o odeio. — Geralt falou, enquanto Jaskier levava o pão à boca.

— Obrigado por confortar meu coração. — Ele riu, sem muita graça. — O pão está incrível, deveria experimentar.

— Qual é o seu problema? — O bruxo perguntou. — Desvia dos assuntos e faz piadas com tudo, nunca leva a sério uma conversa.

— Estou apenas elogiando o cozinheiro da rainha cigana. — Jaskier piscou, os azuis intensos na direção de Geralt e ele não sabia por que aquilo o incomodava tanto. — O que você precisa? Um diálogo sério sobre como esse mundo é uma merda? Eu tento levar alegria e diversão com minha música, não preciso passar horas discutindo sobre política.

— Há outras coisas sérias a se falar.

— Como qual?

Geralt pensou.

— Você disse ontem sobre se entregar para alguém que não o deseja, de quem falava?

— Ninguém em especial, era apenas uma dúvida passageira. — Jaskier jogou alguns tomates cerejas dentro da boca, mastigando devagar e falando de boca cheia em seguida. — O que aconteceu para ficar tão interessado em mim desse jeito? — Geralt levantou-se, não estava interessado nele. Jaskier saiu da cama e deixou o prato ao lado. — É estranho quando você passa sua vida temendo uma entidade que acha que é mística, mas quando conhece, fica pensando, será que esse bruxo está querendo me matar ou fazer amizade? Eu acho que você tem péssima habilidades sociais.

— Eu sou um bruxo.

— Então essa é a sua desculpa para tudo? — A voz do bardo aumentou o tom, o que desagradou Geralt. — Não dorme porque é um bruxo traumatizado, não gosta de casamentos e pessoas, porque é um bruxo mal-humorado. Não se diverte porque tem que matar um monstro novo. Que vida mais tediosa a de um bruxo.

— Quer falar de vida tediosa? Você vive às custas dos outros, tira vantagem das pessoas e acha que é talentoso. Sua música é patética.

— Retire o que disse. — Jaskier apontou o dedo na direção dele, ofendido. — Eu não admito que você fale mal da minha música.

— É horrível. — Geralt cruzou os braços musculosos, olhando para o bardo que o encarava ainda bravo.

— Ah! É? E você é um bruxo mal-amado, solitário e ninguém te quer por perto.

— Sorte a minha. — Geralt ainda estava com os braços cruzados, enquanto Jaskier listava seus defeitos, inventando a maioria deles já que não havia como saber certos detalhes que nunca foram ditos de sua vida pessoal.

Mas o acúmulo daquelas palavras pesaram, principalmente quando Jaskier ria, debochando dele. Geralt estava a um passo de sua espada, mas não havia nele o desejo de cortar o bardo ao meio. Pelo menos não com uma espada.

O falatório de Jaskier só findou quando o bruxo o surpreendeu com um beijo. O silêncio se fez dentro da tenda, enquanto suas bocas compartilhavam aquele contato quente. O gosto de tomate foi sentido por Geralt, principalmente quando abriu mais a boca e sua língua envolveu a do brado em uma troca de carícias. Uma das mãos segurava Jaskier pelos cabelos, enquanto a outra estava firme no punho dele, impedindo que o batesse no peito. O bardo foi perdendo a reação aos poucos. Apesar do bruxo ser mais alto, não houve dificuldade ao aproximar os corpos e manter os lábios unidos. O som que se fazia das bocas movimentando era a única melodia, não havia nenhuma canção de bravura no ar, apenas o estalo dos lábios se afastando, mas retornando ao contato anterior, fazendo a cabeça de ambos mudar de um lado para o outro, enquanto as línguas manifestavam o desejo reprimido até aquele momento.

O beijo findou com um suspiro leve do bardo, e um chiado do bruxo. Parados, um de frente para o outro, eles não sabiam o que falar. Era constrangedor.

Geralt virou-se de costas, pegou suas espadas e saiu da tenda.

Em um encontro com a rainha, o bruxo contou o que houve, omitindo alguns fatos recentes, sendo endossado pelo curandeiro, a quem deu mais detalhes.

— Você já ouviu falar no desejo febril? — Ela perguntou, estava sentada sobre almofadas vermelhas, usando um vestido verde e pulseiras douradas. Seus cabelos longos e ondulados caíam sobre as almofadas e eram penteados com a ajuda de uma dama.

— Não, majestade. — Geralt respondeu, naquele momento pensava se Jaskier estava bem, havia deixado ele aos cuidados de uma cigana.

— Quando desejamos algo ardentemente e não conseguimos, nosso corpo se manifesta com alguns sinais. Dores, paralisias ou a febre.

O bruxo inclinou levemente a cabeça, olhando para os membros da tenda da rainha.

— Perdão, majestade, mas há crendices que não há como eu levar a sério.

Ela gargalhou, não se sentindo ofendida. Levou à boca uma fatia de torta de abóbora e depois passou a lamber os dedos sujos pelo doce. Suas unhas eram cumpridas e pintadas de vermelho.

— Nosso corpo não reage quando estamos com fome? — A rainha passou a língua no dedo indicador. — Não reage quando estamos com tesão? — Ela se espreguiçou sobre as almofadas. — Nosso corpo não reage quando estamos cansados? Então, por que não reagiria quando queremos muito alguma coisa?

— Então, se é assim, posso resolver o mistério perguntando o que o bardo anseia.

Novamente ela riu.

— Acho que a resposta não virá tão fácil.

Ao terminar o encontro, Geralt agradeceu a hospitalidade do povo e decidiu partir, levando com ele Jaskier, que se dizia muito melhor naquele momento.

— Eu já disse, não sei do que a rainha pode estar falando. — Respondeu o bardo.

— Alguma coisa aconteceu essa noite, e você estava delirando. Depois melhorou.

— Espero que não tenha tentado tirar vantagens de mim enquanto eu estava sob seus cuidados. Não depois daquele ataque de fúria dessa manhã em forma de beijo.

O bruxo parou e encarou o bardo.

— Você estava doente, que tipo de vantagem eu conseguiria?

Jaskier voltou a andar mais na frente, desviando o olhar. Geralt encarou suas costas, ele andava mais devagar, ainda assim se esforçava para ir na frente. Quando passaram as montanhas, encontraram um caminho largo onde cada um poderia seguir para seu próximo destino.

— Então, aqui nos separamos mais uma vez. — Jaskier ajeitou a alça da bolsa que carregava seu instrumento. — Nos encontraremos num próximo casamento?

— Eu espero que demore bastante tempo. — Geralt respondeu, mas uma voz em sua mente dizia o contrário. Que eles se encontrariam em breve, num casamento, numa hospedaria... mas, principalmente, aquela voz dizia que não seria por coincidência que eles se encontrariam. — Você sabe como me achar.

Jaskier riu, os cabelos foram jogados para trás, enquanto seu rosto era iluminado pelo sol.

— É só seguir um rastro de sangue e monstros. — Assim que falou, Jaskier virou-se e pegou seu instrumento musical, iniciando uma nova canção.


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Notas finais do capítulo

É isso, acabou hehee
Agora podem comentar weeee
beijos e até uma próxima.



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