Bravado escrita por Camélia Bardon


Capítulo 9
Carinho de tia, conselho de amiga




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Já ouviu falar que, quando precisa de um conselho, os melhores sempre vêm das pessoas mais inusitadas? Algo parecido aconteceu comigo e a tia Sienna. Não que eu não a considerasse inteligente, ou digna de um bom conselho – estava mais para eu não saber que ela e o tio Thierry terem sido rivais algum dia. Certo, havia certa antipatia na atmosfera sempre que eles estavam juntos, mas chegar ao ponto de rivalidade anteriormente? Essa era uma história que eu jamais ouviria em versão integral, no entanto valia a pena a tentativa.

— Tenha um pouco de paciência com Thomas, meu amor... — ela tentava me consolar... Ou incentivar... Ou talvez eu não tivesse entendido muito bem o que ela estava tentando fazer, afinal de contas. — Apesar de desavenças, os dois ainda são irmãos. E irmãos são para a vida inteira. A diferença é que... Pode deixar as coisas do jeito que estão e passar um inferno pela vida ou... Melhorar as coisas para os dois lados.

— Espere um pouco. Não fui eu quem o acusou de ser um mentiroso de...

— Ei, olhe lá o que vai falar. Ainda sou sua tia.

— Desculpe — gaguejei, rindo de nervoso. — A senhora entendeu o que eu quis dizer.

— Entendi. E o que vou lhe ensinar hoje é que às vezes temos de ceder quando estamos certos ao invés de tentar debater nosso ponto. Entende-me, querido?

Assenti com a cabeça, para negar logo depois. Como alguém poderia só... Deixar algo de lado ao invés de tentar resolver o problema?  Notando minha confusão, tia Sienna riu com suavidade.

— Veja bem... Vale mais a pena ter um amigo ao seu lado do que estar certo e perder o amigo que tem. A cada vez que tenta estar certo, vai perdendo amigos... E quando vir, já não terá mais nenhum.

— Isso é profundamente... Deprimente, e agora que explicou, faz todo sentido. Tenho direito a perguntas pessoais?

— Nenhuma que me faça regurgitar, por obséquio? Já faço isso com esse monstrinho na minha barriga.

Gargalhei, me recostando na cadeira. Nos últimos tempos, descobri que a sensação de acompanhar uma gravidez ao vivo era algo cheio de emoções conturbadas. Pergunto-me como meu pai conseguiu quatro delas de uma vez... De qualquer maneira, enquanto tia Sienna saboreava um chá de frutas com olhar desgostoso para meu gole de whiskey do marido, eu me encarregava de encará-la de volta com piedade.

— A senhora e o tio Thierry... Tinham muitos problemas como esse, quando mais novos?

Foi como se eu tivesse cutucado sua ferida de guerra. Seu rosto se contorceu numa expressão agridoce – algo entre lembranças ruins mescladas que boas reconciliações. Tomando um gole do chá, tia Sienna suspirou. Toda essa sequência durou apenas alguns segundos, porém a mim pareceram anos intrínsecos. Não foi à toa que papai me recomendou que conversasse com ela, afinal de contas...

— Como esse, não. Mas tínhamos nossas diferenças. A única coisa é que nos estranhávamos por conta de nossos pais.

É verdade. Do lado de lá da família, apenas Matthieu se envolvia conosco. Apesar de também ser nosso tio de consideração, por ser irmão mais novo de tia Sienna e o tio Thierry, todos nós tínhamos entrado num acordo silencioso de que chamá-lo de tio era no mínimo estranho.

— Mesmo? Como assim?

— Bem, eu sempre me sentia inferior a Thierry... Porque meus pais sempre faziam com que eu precisasse ser melhor do que ele. Thierry sabia tocar piano, era amado por todos, tinha inclinação científica para certos assuntos, era bom com matemática, literatura... E eu só era um rostinho bonito.

— Uau, parece horrível — falei sinceramente, me inclinando para frente para ouvir melhor. — É como estar no segundo lugar para sempre...

Ela concordou com a cabeça, afagando o próprio braço com cuidado.

— Sim. Era essa a sensação.

— Entendo... — apesar de não querer e de não ser a intenção do pai e da mãe, entendo... — E então? Como mudaram isso?

— Ah, ele precisou se casar e se mudar para cá e eu precisei ser cortejada por um imbecil e quase perder Émille para seu tio se tocar de que tínhamos um ao outro — ela riu baixo, sorrindo de lado pela lembrança. — Não tínhamos a plateia de nossos pais, então... Ambos reparamos que sempre nos amamos, mesmo que em silêncio. Deu para entender?

Ri baixo, assentindo com a cabeça. 

— O amor supera as diferenças…?

— Viu só? Já está aprendendo!

Dei de ombros, optando por terminar de tomar o líquido – e este obviamente desceu rasgando pela garganta. Acho que eu mereci. Papai sempre dizia que a bebida era o castigo dos amargurados, e talvez agora eu entenda o que ele quis dizer com isso. Fiz um compêndio de todas as novas informações das quais precisava fazer uma balança, e reparei que precisava urgentemente estudar comportamentos humanos. Se eu mal conhecia o modo como eu mesmo funcionava, que dirá das pessoas que eu achava que conhecia e apresentavam novas facetas conforme o tempo?

— Então, a conclusão é…? — deixei a frase no ar, esperando que ela completasse.

— Peça desculpas. Não importa quantas vezes for necessário. E não importa se elas nunca forem aceitas. Deixar morrer na praia vai ser sua pior escolha, porque… além de ser seu irmão, ele vai ser sua companhia em Cambridge.

Ah, céus, ela tem razão… seremos colegas de quarto! Diabos, com todo o problema com Thomas e Alice e Adele, eu me esqueci por completo de Cambridge! Partiríamos em alguns dias, isso é insano… onde foi parar minha vida? 

— Certo… farei isso, tia. Obrigado.

— Não há de que, meu amor — tia Sienna sorriu, se inclinando para me abraçar de lado. — Sentirei sua falta quando tiver se mandado para aquela Inglaterra fedida.

— Ah, não é tanto assim, só em dia de venda de peixe — gargalhei, retribuindo o abraço. — Também sentirei a falta de vosmecês. Jamais trocaria qualquer experiência universitária pelo carinho de todos… 

— É isso que mais amo em você, meu menino.

Seu comentário tocou meu coração sobremaneira. É verdade que brigávamos certas vezes, desde antes de a segunda geração de nós aparecer por estas bandas, mas com um pouco de amor tudo se ajeitava. Ao menos, em teoria. A prática, ainda deixamos para quebrar a cara posteriormente.

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— Tudo pronto com as malas ou terei que arrastá-los pelas orelhas para serem mais ágeis, seus pestinhas? 

Mamãe caçoava de nós, ao passo que meu pai olhava em direção à voz com tensão. Apesar de saber que ela estava brincando, quase podia ler as expressões no olhar dele: o navio parte em três horas, e a madame está nos apressando… sendo que é ela quem se demora nas despedidas. Enfim, a hipocrisia. Ri sozinho com a atuação em minha cabeça, fechando a mala com os livros. Recebi um olhar de reproche de Elena, que se ocupava de dobrar os vestidos que tinham sido repassados de Adele.

— O que foi? — provoquei, apenas pelo prazer de ser o irmão mais velho alguma vez.

— Credo, trouxe uma mala inteira para livros? O que é vosmecê, um monge eremita?

— Tenho muito cabelo para ser um monge, querida Elena. E a senhorita também trouxe uma mala inteira para roupas usadas, és o que, uma freira recolhendo doações? 

Evan gargalhou, como imaginei que faria. Temos alguma espécie de satisfação em caçoar de Elena, por mais que minhas brincadeiras sejam bem mais inocentes que as dele. Por sua vez, Elena deu a língua para nós dois, junto a um revirar de olhos. 

— Conseguiu resgatar algo daqui? — ela indagou para o gêmeo, em tom baixo.

Resgatar? Oh, sim. Eu ganhei uma garrafa de Armagnac num jogo de cartas com o pessoal do Laurent, semana passada — Evan deu de ombros, como se estivesse falando de um punhado de bombons.

Me interrompi na tarefa com a mala para olhá-lo com um olhar de reprovação.

— Como é que é? O Laurent te levou para apostar? — procurei não elevar tanto o tom da voz, mas era completamente inaceitável que durante as férias de família o filho de tia Lilian e Thierry perverta meu irmão dessa maneira… não que ele seja inocente, no entanto ainda é menor de idade. — Não tem idade para beber desacompanhado, Evan.

— Ei, seu puritano, fale baixo ou o pai vai ouvir! 

— Vai ouvir e vai te dar uma surra, tinha de estar agradecendo por eu estar avisando de antemão. Não tem vergonha, Evan? 

— Fique com os seus livros e eu fico com o meu negócio, senhor eremita — ele desdenhou, embalando a bebida em meio às roupas. Suspirei de completa frustração, porém não havia mais nada que poderia dizer que o fizesse mudar de ideia. — Isso aqui vale a maior grana nos submundos de Londres.

Voltei meu olhar para Elena, esperando que ela interviesse, no entanto ela também limitou-se a um dar de ombros indiferente. Maélie, no canto do quarto, é a única de nós que ainda tinha os parafusos no lugar, portanto é ela quem me lança um olhar compadecido; este, entretanto, recheado de uma aura de "não é problema seu, Alex". Resolvi deixar como estava, e percebi ter feito bem quando mamãe apareceu à porta do quarto com um olhar não muito contente. Sejá lá o que fosse, creio que poderíamos esperar até Bloomsbury, certo…? 

— Tudo pronto por aqui? Vamos tomar café lá embaixo antes de partir. Cinco minutos. Vamos!

Tratamos em sair em fila indiana, e até consegui me sentir o patinho feio no meio deles. Não, pensando melhor, nem um ganso eu consigo ser porque gansos são raivosos e eu não passo de um covarde barato. Papai caminhou ao seu lado com uma pose respeitosa, segurando a ponta de seus dados com gentileza. Uma das coisas que mais admirava em vê-los era o carinho infinito que sentiam um pelo outro. Chegava a ser palpável e ainda me fazia acreditar um tanto no sentimentalismo real e sem espera de retribuições… 

— Vai falar com ela hoje? — Elena indagou, como quem não quer nada.

— Ela quem? Sobre o que? São muitas mulheres nesta casa, Lena.

— O senhor é um bobo. Deixe óbvio que a ama, Alex… pode não ter outra oportunidade como essa. Só se verão no final do ano, agora… uma sementinha regada com carinho floresce forte se for bem cuidada, sabe?

Franzi a testa para ela. Elena estava me dando conselhos carinhosos? Ah, céus, o mundo desabaria em um dilúvio novamente. Não, Alexander, esse tipo de comentário não é adequado… Lena estava crescendo, apesar de se esgueirar pelas beiradas do que era correto junto ao irmão, mas afinal… estávamos em 1912, e não 1812, não é?

— Eu não sei, Lena… pode não ser uma boa ideia. Sabe do talento que eu tenho para estragar as coisas.

— É vosmecê quem sabe. Mas não vá dizer que foi por falta de aviso.

Se palavras doessem, essa sentença seria como uma facada cravada bem fundo no coração e torcida para uma morte rápida e dolorosa. Assenti com a cabeça, e continuamos nosso trajeto até a mesa do café da manhã. Enquanto todos aproveitavam os últimos momentos para relembrar os momentos marcantes do verão, eu não conseguia tirar os olhos de Adele. Ela parecia tão… perdida. Olhava para o prato de ovos mexidos como se fosse comida de prisão. Por este motivo, me limitei a responder perguntas que não eram feitas diretamente a mim com sorrisos.

Quando juntei coragem de me despedir dela à parte, o fiz na esquina do corredor entre o salão de refeições e a escada para os quartos. Apesar de surpresa com a abordagem inusitada, Adele não se opôs quanto ao contato. Seu olhar encontrou o meu e então pude ver a chateação pintada e bordada em seus olhos castanhos. Se eu me encontrava com qualquer fala na ponta da língua, a danada da língua se fez em areia para travar bem na garganta.

— Sentirei sua falta… desculpe fazê-lo perder nosso tempo com Thomas — Adele sussurrou, enfiando-se num abraço.

Ao vê-la assim tão indefesa, desejei mais do que nunca ficar ao seu lado. No entanto, tudo que fiz foi abraçá-la de volta.


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Notas finais do capítulo

Titia é a melhor, sim ou claro?
Tem tanta coisa acontecendo por aqui que chega a ser difícil perguntar para vocês opiniões específicas, então deixo apenas um "e aí, garela?" xD
Até mais!



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