Bravado escrita por Camélia Bardon


Capítulo 7
Coração entredentes




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No 15.º dia em ordem decrescente até a volta nem tão triunfante assim até Londres, Adele saiu da hibernação que fazia em seu quarto para dar as caras com o humor reposto. Quem a observasse jamais diria que ela esteve em um estado crítico, portanto foi isso que fizemos: todos nós agimos como se tivesse sido apenas uma gripe, e não um coração esmigalhado entre os dentes de outra pessoa.

Com a experiência que adquiri dos livros que li sobre o amor ⎼ eu jamais passaria disso, afinal de contas ⎼, a dor de ter o coração quebrado por uma decepção poderia chegar a doer literalmente, a ponto de contrair o peito e passar a sensação de sufoco dentro de si. Para mim, parecia poético, até enxergar os efeitos em outrem. Era desgastante e, se permitida ficar por mais tempo do que o aceitável no coração, deprimente.

Foi exatamente por este motivo que, quando Adele se sentou junto comigo e Gabrielle no salão de jogos, ambos erguemos uma sobrancelha duvidosamente quando afirmou:

― Estou lhes dizendo: eu o esqueci. Não há sequer qualquer resquício deste homem dentro de mim. É oficial. Não penso em Thomas nem por um minuto apenas. Foi-se embora, enfim!

Gabrielle suspirou audivelmente, circulando a borda da xícara de chá com um dedo.

― Permita-me indagar, irmãzinha, mas… se o esqueceu tanto assim, por que ainda está falando nele?

Adele desviou o olhar, corada até a raiz dos cabelos. Eu e Gabrielle permanecemos observando, até que ela tenha que olhar fixamente para mim para que eu entenda que está falando comigo.

― O que?

― Alex, agora é a hora da citação/lição de moral filosófica, eu não consigo fazer isso sozinha.

Procurei não revirar os olhos, porém não evitei o riso que escapou por entre os lábios. O modo como Elle falava tornava quase impossível manter qualquer pose séria que fosse.

― Não conheço nenhuma citação pertinente. Mas o que tenho a dizer é de cunho pessoal, apenas uma opinião ― eu disse pausadamente, pensando em quais palavras usar e que tom empregar para não parecer ofensivo. ― Eu… acredito que o oposto do amor seja a indiferença, e não o ódio. 

― C-como assim? ― Adele ergueu o olhar para mim.

― Bem… querendo ou não, amor e ódio são sentimentos intensos por uma pessoa, apenas… pesam em lados diferentes da mesma balança. Mas a indiferença é como se não houvesse peso nenhum para diferenciar a pesagem.

― Quer dizer que concorda com Elle? Que não o esqueci?

Gabrielle olhou para nós como se assistisse a uma partida de badminton. Meu plano foi fingir que ela não estava ali e, pior, que não estava me constrangendo com o que estava falando. Afinal, minhas ocorrências de falar pouco e ainda assim falar asneiras eram frequentes e inquietantes. Portanto, engoli em seco e apenas assenti com a cabeça.

― Bem, no caso… o que recomendam para o esquecimento definitivo?

Gabrielle tomou o chá, se divertindo com a aflição da irmã. Pelo visto, com o meu também. 

― Há um caminho, mas ele é fatal ― Gabrielle começou, em um tom sério em demasia. ― Mas, para isso, vai precisar liberar sua mente e corpo e embarcar numa jornada de autoconhecimento e… 

― Elle… ― Adele advertiu, apenas com uma simples palavra. 

― Não está mais aqui quem falou. Serei direta: a senhorita, Adele Bretonne, precisa de outra pessoa para preencher os seus pensamentos.

Ah. Não. 

Não, Gabrielle… 

― Está sugerindo que eu… tape o buraco de uma pessoa com outra? ― Adele contraiu a face em uma expressão incrédula. ― Não é um tanto cruel?

― Não se estiver disposta a conhecê-lo. Se iniciar um novo relacionamento disposta a tapar um buraco ao invés de conhecer novas pessoas, então… aí sim, será cruel. Mas isso é uma decisão que cabe apenas a vosmecê. 

Adele olhou-a de soslaio, não querendo dar o braço a torcer de estar ouvindo conselhos da irmã mais nova.

― Não precisa fazer de seu coração um palco para os outros atuarem. O palco e a performance são suas. O que você escolhe são os números e os convidados ― Gabrielle sorriu com gentileza, tomando as mãos da irmã. Daí, ela soltou a frase que foi fatal para que meu ar fugisse de supetão de meus pulmões: ― Além disso, a pessoa certa pode estar bem perto de vosmecê, enquanto está aí perdendo tempo com quem não está nem aí para os seus sentimentos. Não é, Alex?

Senti minhas bochechas pegando fogo. Por obrigação, assenti com a cabeça efusivamente, me refugiando atrás de minha xícara de chá. Adele me analisou insistentemente antes de desistir de tentar ser a psicóloga do dia. No entanto, quando o fez, cometi o erro de olhar em seus olhos.

O universo me impediu de desviá-los. Brincamos silenciosamente por um segundo de quem ficaria sem-graça primeiro e, pela primeira vez, esse alguém não foi eu.

― Ou podes ficar sozinha, o que também não é uma má opção ― Gabrielle continuou a divagar, dispersando o que quer que tenha surgido nesse meio-tempo. ― Ou então beijar todos os pretendentes solteiros de Paris e no final não acabar com nenhum e registrar as lembranças em sua cabeça… 

― Santo Deus, por quem me toma? ― sua irmã riu de nervoso, revirando os olhos de brincadeira. ― Sou extrovertida e amigável, e não uma oferecida!

Gabrielle gargalhou, jogando os cabelos negros para trás. Deixando a xícara de lado, ergueu as mãos em defensiva.

― Veja bem, é a senhorita quem está dizendo, eu não disse nada que ofendesse… 

― Mas pensou!

― E agora tens poder de telepatia, querida irmãzinha?

― Eu não jogarei meu chá em você porque Alex está aqui, senão esses seus belos cabelos teriam sido substituídos por um couro queimado. Esteja avisada.

Ri sozinho com a troca de farpas entre as duas. Adele e Gabrielle sempre tinham essas pequenas pseudo discussões, porém quando se convivia muito com as duas, aprendia-se que era o jeito de uma dizer à outra que se importavam uma com a outra. Isso me fez pensar sobre a tia Sienna e o tio Thierry ⎼ apesar de irmãos, por não terem mais proximidade dava a impressão de não terem afeto um pelo outro, para quem os visse sem conhecê-los a fundo. Humanos tinham uma noção curiosa de demonstração de amor. Um padrão que nem sempre seguia em linhas retas. Amor não se tratava de lógica, e era exatamente isso que o tornava tão interessante de se observar.

― Alex? ― a voz de Adele me desperta de meus devaneios. Pisco algumas vezes para recobrar a consciência, ao passo que ela ri com delicadeza. ― Já estávamos pensando que tinha dado adeus ao planeta Terra.

― Estava pensando. Desculpem.

― Bem, compartilhe a sabedoria conosco! ― Gabrielle sorriu, não me provocando pela primeira vez no dia. 

― Eu… estava pensando… que iremos embora em breve ― menti, mas não por completo, me ajeitando na cadeira. ― E que sentirei falta das duas sendo tão amigáveis até o ano que vem…

Ambas emitiram um "ah" um tanto tristonhas, aparentemente relembrando que eu entraria em Cambridge e feriados limitados para visitas. Para descontrair, recostei-me na cadeira e abri um sorriso que pensei ser reconfortante.

― Ora, mas podem tratar já de tirar essas caras de enterro do rosto. Se quiserem velar pelo meu corpo morto, sugiro de três a quatro dias após a morte para não feder. Do contrário, os rostos piedosos se tornarão expressões de asco.

Adele engasgou-se com o chá, ao passo que Gabrielle riu até o rosto ficar vermelho. Quanto a mim, nada pude fazer a não ser observar e abrir um sorriso de lado. 

― Me questiono se ele fica tão em silêncio apenas para soltar esses comentários quando estamos desprevenidas! ― Gabrielle exclamou, após tomar uma enorme lufada de ar.

― Creio que sim, Elle. É por isso que temos que desconfiar desse tipinho aí. Sabe lá Deus o que ele fará quando for um universitário.

― Vai voltar com psicologia para defuntos.

Dei de ombros, sorrindo. De expressões tristes, apesar de com poucas palavras, consegui reverter a situação.

Meu trabalho ali estava feito. 

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Os encontros ocasionais com Alice deixaram de ser ocasionais quando ela sugeriu que estes se tornassem frequentes. Daí, de dois em dois dias, caminhávamos juntos pelo pátio verde do Panteão. Nossas conversas sempre giravam em torno de Thomas ⎼ que, inclusive, vez ou outra nos acompanhava para buscar a namorada na universidade ⎼, críticas ferrenhas literárias e um bom punhado considerável de francos que me servisse de desculpa para ter motivos plausíveis para ir tantas vezes ao Quartier Latin. Por sorte, os sebos eram baratos. Por outro lado, se eu investisse naqueles pães doces, estaria falido em minhas economias.

― Sabe, há seus benefícios e malefícios de se estudar visando um diploma, quando todos torcem para que fracasse ― Alice confessou, num desses dias. ― É encorajador, desafiador e… empolgante. O frio na barriga de nadar contra a maré, o… perigo de ser pega, mesmo sem fazer nada de errado.

Aquilo eu compreendia.

― E os malefícios?

Ela suspirou, cutucando as cutículas.

― É extenuante chegar após um dia cansativo, com pesquisas falhas e inconclusivas ou então com uma pilha imensa de material de estudo e, ao invés de querer sentir o gosto do perigo na ponta da língua… ansiar por um carinho ou consolo. Alguém que te diga "vai ficar tudo bem, é apenas uma fase ruim" ou quaisquer das frases clichês que te digam quando está desanimado. Quando se está nadando contra a maré, esse consolo é inexistente. Substituído por comentários de zombaria. Estes dias… estes são particularmente exaustivos.

Assenti com a cabeça, mordendo os lábios para conter a vontade de tagarelar desnecessariamente.

― Entendo…

Alice desviou o olhar do meu, dando de ombros. Não queria parecer ofensivo, mas não pude deixar de perguntar:

― E quanto a Thomas? Não o vê como… local seguro para dias exaustivos?

Daí, ela riu. Riso? Eu não esperava por essa. Para piorar a situação, foi um riso de total descrença.

― O que foi?

― Thomas? Santo Deus, Thomas é… ― ela se interrompeu, pigarreando. ― Thomas não ficará aqui para sempre. Além disso, eu… me apaixono com uma rapidez e uma facilidade absurda. Thomas não. É palpável que não está apaixonado por mim. E… tenho a ciência de que posso estar apenas me deixando guiar pela vontade de não estar sozinha. Para ele, sou apenas uma diversão. E… para quem não tem ninguém, isso é mais do que suficiente.

Arqueei as sobrancelhas ante à afirmação dela. Quer dizer que ela sabia estar sendo usada e ainda assim se contentava com isso? O que as pessoas andavam aceitando, migalhas de sentimentos?

― Por exemplo ― continuou ela, baixando o tom da voz. ― Ultimamente tenho me sentido atraída por outro homem. Se bem quiser, posso terminar meu relacionamento ou não para demonstrar meus sentimentos por ele. Sei que Thomas sequer liga para o que eu faço ou deixo de fazer, no entanto ainda assim é divertido estar com ele.

Não pude evitar de rir também. Quanto mais eu repetia isso em minha cabeça, mais absurdo parecia.

― Outro homem?

― Sim, e… creio eu que ele também se atraia por mim.

Olhei para ela, franzindo a testa. Sei que, do banco onde estávamos, foi bem fácil para que Alice se virasse para mim a ponto de conseguir encarar seus olhos azul céu de mais perto do que gostaria. Perigosamente perto. 

Já não estava entendendo nada, mas entendi menos ainda quando ela se inclinou para frente me puxando pela gola da camisa. Permaneci de olhos abertos enquanto ela se entregava a um beijo o qual eu jamais poderia corresponder.

Um dos prováveis eventos mais aguardados de minha vida estava acontecendo do pior modo possível: a namorada de meu irmão com mãos como garras em meu peito, seguido de um ataque de pânico. Como chegamos a esse ponto?


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Notas finais do capítulo

1. O título desse capítulo é inspirado por "Between my Teeth", da Orla Gartland: https://www.youtube.com/watch?v=dPSmWFGkCw4

2. Deixei para vir aqui embaixo comentar sobre as tretas, porque... meu Deus, que que tá acontecendo? Cês tem algum palpite do que essa Alice quer da vida? Porque eu mesma não sei xD

Até mais!



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