Bravado escrita por Camélia Bardon


Capítulo 15
Sob o luar de seu coração




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Permaneci em silêncio, contemplando o abismo entre o que não era dito e o que tinha sido dito até demais. Tive vontade de dobrar minha língua, apesar de Adele continuar olhando no fundo de meus olhos como se estivesse vendo minha alma. Então era essa a situação...?

— Sempre pensou assim? — Adele sussurrou. — Sobre mim?

— Os olhos brilhantes ou...?

— Sobre me considerar útil e importante... Sempre pensou assim?

Sorri para ela, me aventurando a colocar uma mecha de seu cabelo volumoso atrás da orelha. Senti seus pelos da bochecha se eriçando ao mínimo contato. Foi difícil não recuar e manter meu plano. Como diria Evan – meu Deus, eu estava escutando ditados de Evan? —, quem não arrisca, não petisca.

Tudo sob controle, Alexander. Agora é uma péssima hora para surtar. Respirar e contar até dez funciona?

— Desde que me entendo por gente. Só nunca pensei que fosse ter dúvidas, então nunca disse.

— Por quê...?

Foi só com aquela pergunta que entendi a extensão de sua baixa autoestima. Se eu havia negado para mim mesmo os meus sentimentos, todos os muros que construí ao redor do coração caíram todos ao mesmo tempo. Como eu poderia guardá-los para mim quando havia alguém que urgentemente precisava deles?

— Pelo mesmo motivo que nem todas as flores têm fragrâncias chamativas... Não é porque o odor é mais suave que ela deixa de ser perfumada. Significa que será apenas mais difícil de senti-lo em meio às outras flores. No entanto, há pessoas que detestam fragrâncias fortes e buscam justamente por um cheiro sutil...

Adele apoiou a bochecha na palma de minha mão. Automaticamente, meu polegar fez o caminho para acariciar o pedaço de pele restante, sem arrependimentos.

— Em conclusão, eu acho um sacrilégio uma flor com odor tão suave querer ser igual às outras flores... Ou achar que vale menos do que elas. É exatamente o contrário, Adele. Flores assim são raras e poucos têm o privilégio de se dar conta disso... Ou poucos têm conhecimento sobre flores para identificar uma rara...

— E o senhor? — ainda encostada em minha mão, sua sentença saiu num tom um tanto amassado. — Em que categoria se encaixa?

— Ah, eu não entendo nada de flores.

Adele riu de uma maneira adorável, jogando a cabeça para o lado. Por sorte, havia minha mão para sustentá-la, do contrário era bem capaz de ela se inclinar demais para o piano. Não pude deixar de sorrir conjuntamente.

— Mas, talvez... — completei, sentindo uma nova onda de coragem transpassar por entre meus ossos. — Talvez eu seja um profundo admirador de uma raridade humana.

— Oh, é mesmo? — senti que ela sorria pela mudança na expressão facial. — Trata-se de algo que aprendeu em seu curso de Psicologia, sr. Banks?

— Não... É algo do qual não é necessário conhecimento universitário. Só é necessário um coração e alguém que o faça bater. Primeiro, ele o faz sozinho. Depois, se assim for permitido, o coração pode bater também fora do peito.

— E como funciona isso...?

Sorri de lado. Tarde demais para voltar atrás.

— Sabe que eu prefiro demonstrar a dizer, srta. Bretonne?

Ela assentiu com a cabeça, desviando o olhar para baixo. Reparei em minhas mãos suando sutilmente, mas avaliei que, se eu retirasse as mãos de onde elas estavam agora talvez perdesse minha chance de ter controle sobre alguma coisa uma vez na vida. Então, pela primeira vez, escolhi não recuar. Pelo contrário, aproximei-me mais.

Como todo bom observador, fiquei de olhos abertos por mais uma fração de segundos para ver Adele fechar os olhos com suavidade. Seus cílios bateram como asas de beija-flor, rápido e inconstantemente. Quis beijá-los também, porém me concentrei em seus lábios – já que não estávamos com intimidade suficiente para mais do que...

Mais do que é que fosse que estivesse acontecendo agora.

Por sorte, se Adele notou minha hesitação, não tomou como pessoal. Ao invés disso, ela aproveitou a própria brecha de hesitação para encerrar a distância entre nós de uma vez por todas. Tive de reprimir um primeiro impulso de suspirar. Entretanto, quanto senti seus lábios nos meus, tudo que consegui pensar era que tudo finalmente começava a encaixar-se no grande emaranhado de fios que era minha cabeça.

Apesar de nenhum dos dois ter muita certeza do que estava fazendo, nos esforçamos para ser algo agradável. Aparentemente, se aprendia na prática. Sei que, de alguma forma, ao me aventurar a escorregar a mão da bochecha para a nuca, Adele arquejou de uma maneira que achei que fosse morrer ali mesmo. Então, entendi ser a oportunidade para me aprofundar no beijo.

Não foi o que eu chamaria de beijo majestoso, mas eu considerava este como meu primeiro beijo. Aquele... Negócio com Alice foi, sim, um fiasco. Numa sala, com a neve castigando o tempo lá fora e com uma coberta ao redor de nossos ombros, esse era o momento para ser eternizado. Por falar em coberta, apenas nos apartamos por uns instantes porque a dita-cuja caiu no chão, provocando uma ausência de calor inevitável. Abaixei-me com um sorriso bobo estampado no rosto, ao passo que Adele gargalhava quase inaudivelmente.

— Ah, meu Deus — em seguida, ela levou uma mão aos lábios, um tanto quanto incrédula. — Ah, meu...

Olhei-a de soslaio, sentindo o rubor preencher minhas bochechas.

— Não está me achando indecente, está? — Adele sussurrou, com um brilho divertido nos olhos.

— Estou achando-a maravilhosa.

Adele abriu um sorriso que parecia querer atravessar suas bochechas. Nesse momento, tive certeza de que seu coração seria o que faria um eclipse junto ao meu.

— E não vai me achar indecente se eu fizer isso de novo, vai?

— De modo algum. Aliás, está frio, não concorda?

Adele assentiu com a cabeça. Rindo, nós repetimos a dose.

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No café da manhã, fingimos que nada havia acontecido. Um porque ainda não tínhamos um nome para aquilo, e dois porque nenhum de nós dois queria causar uma comoção na manhã de Natal. Gigi já fazia isso por nós, afinal. Apesar de prestarmos atenção ao que cada um dizia à mesa de refeições, isso não nos impedia de olharmos um para o outro de canto de olho. Deus, eu amava reuniões de família a partir daquele dia.

O restante do dia correu como os de praxe: Laurent, Evan e Thomas retiraram-se para aproveitar seus afazeres masculinos — experimente dizer isso em voz alta! Soa ainda mais ridículo! –, papai e o tio Émille foram atacar os cachimbos e os estoques de sidra, Gabrielle voltou para o quarto para dormir, e a mãe e a tia retornaram para o Salão das Mulheres com Elena e Maélie. Agora que havia passado dos dezesseis, Elena estava se tornando mais caseira. Então, eu e Adele nos dispersamos de volta para nosso banco sob a varanda.

— Não há uma beleza mágica no inverno? — Adele sorriu para mim. — É tão poético saber que a primavera logo se aproximará e varrerá para longe o frio... Mas, enquanto está aqui, o frio é tão reconfortante... Ao menos, para mim, é uma época feliz, pois sei que trará as pessoas que amo para perto. Chego a considerar a primavera triste...

Permaneci observando-a de escanteio, enquanto ela discorria sobre o assunto.

— Quer dizer... Eu não sou dada a poesias com tanta facilidade, no entanto... Há casos e casos, não concorda?

— É impossível ignorar a poesia quando ela é carregada pelo vento.

— Ah, meu Deus, mas era necessário tanto vento assim? — Adele riu enquanto enrolava mais a coberta ao redor dos ombros. Não pude evitar rir junto. — Então... Sobre aquela conversa... Precisamos terminá-la. Antes que nos... Distraiamos novamente.

Desviei o olhar para que Adele não visse meu sorriso insolente. Não que eu fosse experiente, mas confesso que a ideia da distração parecia bem mais atraente. Apenas de recordar as sensações, sentia uma crescente ansiedade brotando da boca do estômago. Certas características continuam sendo predominantes, não...?

— Sei que ainda preciso da opinião de meus pais. E... E eu sei que eles iriam preferir que eu me tornasse uma esposa caseira ao invés de uma mulher com uma carreira voluntária. Mas... Sei que eles levarão minha opinião em conta. Se não for o caso, eu... Vou entender e obedecer, pois eu os amo acima da minha vontade de ser alguém.

Concordei, estendendo uma mão para poder segurar a sua. Adele não recuou, então agradeci por isso em silêncio.

— Eu... Consigo me colocar no seu lugar — sorri de escanteio. — Sei que não é o mesmo caso, mas hesitei muito antes de escolher a Psicologia. Não vou mentir dizendo que só obtive apoio. O que mais me apareceram foram comentários desmotivadores... “Sugerindo” para que eu escolhesse uma carreira mais digna.

— Psicologia é uma carreira digna!

— Não aos olhos do senso comum. Medicina é. Psicologia ainda não é considerada uma ciência... É um tratamento experimental para loucos.

— Quero ver experimentar dar um murro em quem diz isso — Adele bufou de seu modo selvagem e delicado simultaneamente. Será que ela tinha noção disso? — De qualquer modo... Obrigada, Alex. Eu... Nunca pensei que fosse ser compreendida. Nessa área da vida, eu digo.

Havia algo na sua escolha de palavras que me deixava simplesmente sem chão. É curioso pensar que mesmo as pessoas que julgamos conhecer como a palma de nossa mão podem nos surpreender com uma cartada na manga. Suponho isso apesar de não ter talento algum para jogos de cartas – ou de tabuleiro – e confiar piamente na força de expressão.  Por isso, apenas aquiesci.

— Queria que houvesse um jeito de ter ambos ao mesmo tempo... Um casamento e uma carreira. Mas eu duvido que alguém leve essa cruz.

Subitamente, uma ideia se instalou nas paredes do meu subconsciente. Permaneci observando-a de escanteio, cogitando dizer em voz alta. Certo, demandava uma dose maior de coragem para fazê-lo. Mas, se eu ficasse quieto, Adele poderia continuar achando que não tinha opções...  E eu ficaria para sempre à mercê daquela timidez que de nada me servira pela vida inteira. Então, num primeiro e último momento de impulso, sugeri pausadamente:

— Pode haver... Digo, se pensar em alguém que concorde com seu ponto de vista...

Adele compreendeu o que eu disse em alguns instantes. Daí, quando achei que tivesse estragado tudo, ela sussurrou:

— Eu... Pode dar certo... Mas não quero que se sinta na obrigação de estar comigo apenas para que eu possa ter um capricho na vida.

— Depois de hoje, tem dúvidas de que a enxergo como mais do que mera obrigação, Adele...? É mais fácil pensar em mim como seu empecilho do que o contrário. Eu...

O restante das palavras permaneceu preso no nó da minha garganta. Infelizmente, o limite de coragem diária havia estourado. Talvez não fosse o momento, afinal de contas. Apesar disso, era algo de se orgulhar por ora. Enquanto divagava, Adele apertou suavemente a mão que eu ainda segurava.

— A perspectiva de casar com meu melhor amigo é bem melhor do que a perspectiva de ficar para sempre esperando alguém que pode nunca aparecer... Não é exatamente um casamento por conveniência, certo?

— Ninguém se supera nessa arte sem ser o tio Thierry e a tia Lilian — ri baixo, erguendo sua mão para deixar ali um beijo. Aproveitando a oportunidade, apoiei o queixo nas costas de sua mão, fazendo com que Adele apoiasse o cotovelo no braço de minha cadeira para poder aguentar o peso de nós dois. — Acha que pode vir a me amar algum dia, Deli?

Talvez tenha sido crueldade de minha parte apelar para o apelido de infância. No entanto, precisava de alguma ligação mais íntima para firmar aquele “acordo” entre nós. Adele não pensou por muito tempo antes de me fornecer uma resposta, por sorte.

— Não seria um sacrifício... Nem uma surpresa — ela sorriu, com as bochechas coradas. — E o senhor? Acha que pode vir a me amar algum dia?

Mal sabia ela... Ah, às vezes a ignorância era mesmo uma bênção.

— Sem sombra de dúvidas, Deli.

— Ah, Madame Thenard ficará escandalizada... E eu vou amar narrar por cartas cada detalhe!

Foi impossível não gargalhar. A menina dos meus olhos havia finalmente eclipsado meu coração. Eu, a pobre lua de encontro ao sol...


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Notas finais do capítulo

Nem quis falar muito no começo pra não estragar a parte final... mas acho que esse foi um eita atrás de eita, né?
Bom, beijar é fácil, qualquer pessoa carente pode fazer. Agora quero ver casar e não amar u.u
Até o próximo, xuxus ♥



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