Reino em Cinzas escrita por Julia A R da Cunha


Capítulo 19
Merida


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoal.
Sei que se foi quase um mês desde o último capítulo, maasssssss aqui estou. Tanta coisa aconteceu nesse tempo: minhas aulas na faculdade voltaram, minha avó morreu pela covid-19, meu Word resolveu dar problema e tive que reinstalar tudo, enfim... Agora, está tudo bem! (quanto a tudo) Seguimos em frente, então.

O capítulo é longo (como podem ver) e meio parado, porém, com diálogos bem necessários e que tenho esperado há um bom tempo para escrever. Espero que gostem!

AVISO: Tentei deixar tudo o mais leve e distante possível de palavras mais diretas, mas a conversa entre Merida e Bodicca pode ser um gatilho para algumas pessoas. Se for o caso, pode pular para o próximo salto de cena, começando em "Ao entardecer [...]".



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/785766/chapter/19

O mundo ficou tão quieto quanto uma tumba assim que a maioria das pessoas partiu em batalha. Sem dragões, sem guerreiros e sem treinos, o próprio tempo pareceu ter parado, como se prendesse o fôlego igual a ela.

Merida ficou no mesmo lugar de antes, à frente do salão, parada rígida como uma árvore, apesar de não conseguir pensar bem por quanto tempo ficou ali – da mesma forma, não soube se isso se dava por sua ansiedade ou pelo contato constante com o feitiço de Seiliegh.

Em algum momento, percebeu que Sean estava de pé à sua direita, não muito distante. Se ele parou ali há muito tempo, porém, não o tinha notado. Merida virou a cabeça para ele, e ele, para ela. Uma das sobrancelhas ruivas do rapaz se ergueu, em um questionamento silencioso. A princesa não soube bem por que aquilo atingiu seus nervos.

— Você não me respondeu quando nos conhecemos porque está ajudando os nórdicos, exatamente — disparou. Sua voz saiu tão áspera que até sua garganta sentiu o efeito.

Sean respirou fundo, mas seu fôlego se projetou obviamente intercortado, vacilante. Ele engoliu em seco e seus olhos se agitaram, saltando perdidos de um ponto ao outro ao seu redor.

— Bom, acho que te perguntei isso — Merida continuou, um pouco menos ríspida. O jovem homem deu outro salto, voltando à realidade. — Não me lembro direito.

Ele assentiu, calado. Agora, foi ela quem engoliu em seco e mexeu os dedos nervosos um contra o outro.

— Sim, eu sei que eu também virei aliada deles, quer dizer, dos berkianos, apenas. Mas você veio de outro assentamento antes desse, não é? Não está aqui por essa tribo específica.

— É, foi isso. — Ele respondeu, sua voz dura e vazia. Mais uma vez, Sean tomou fôlego e fitou as casas adiante com o cenho franzido. — Eu contei que meu pai era de Dunbroch e minha mãe nórdica.

Merida assentiu, mesmo que aquilo não tenha sido uma pergunta.

— Ela veio para cá em outro saque também quando era bem mais nova. E aí... ela ficou. Nenhum dos dois nunca me contou bem os detalhes de como, por qual motivo nem nada. Só sei que cresci em uma casinha com os meus pais e que... tudo era tão... calado.

Sean parou e suspirou. Merida reparou que as mãos dele tremiam, mesmo que ele as tentasse esconder. Ela não tinha mais certeza de que queria saber da história nem de que queria forçá-lo a continuar, mas já tinham ambos ido longe demais para recuar.

— Meu pai não era ruim, só que sempre foi muito sério, fechado. E... me lembro que ele não gostava muito quando eu e minha mãe conversávamos em nórdico. Se nos pegasse, ele pigarreava e nos encarava com os olhos arregalados, pareciam que iam cair do rosto. Então, minha mãe só falava assim comigo quando estávamos sozinhos. Ele também não queria que ela me contasse muito sobre a vida antiga dela, nem sobre sua cultura, seus costumes, nada. Quando ela deixava algo escapar, ele falava “grande é o Senhor” e era o fim da conversa.

Sean sorriu pela primeira vez. Um sorriso perdido, mergulhado nas memórias antigas.

— De noite, algumas vezes, minha mãe vinha no meu quarto e nós nos deitávamos abraçados, e me contava todas as histórias que guardou durante o dia na língua nativa dela. No escuro, era como se eu pudesse ver, ali, na minha frente, tudo o que ela dizia. Eram histórias da sua vila, da família, de heróis ancestrais, dos deuses e gigantes e criaturas. Nós íamos juntos à igreja aos domingos, nós três, mas minha mãe sempre pareceu tão distante lá dentro, como se só o seu corpo estivesse lá. Nada daquilo nunca a tocou de verdade, não importava se ia lá toda semana, se a tinham batizado e dado um nome cristão, ou se carregava um colar com uma cruz. E um dia... meu pai morreu. — Sean ergueu as mãos, gesticulando. — Assim. Caiu no campo de repente. Ficamos tristes, é claro. Era o meu pai e era o marido dela. Mas tudo ficou tão mais... leve depois que ele se foi. Me senti culpado por muito tempo por me sentir assim, mas é a verdade. Parecia que estive prendendo a respiração por anos e então a soltei.

Merida o ouvia com atenção, apesar de não conseguir encará-lo diretamente. Enquanto falava, as imagens se formaram em sua imaginação, criando uma casinha de madeira no meio de campos esverdeados, um Sean pequenino parecido com seus irmãozinhos correndo por aí, se segurando quando o pai aparecia, como ele próprio só que mais velho e feio. Na sua cabeça, visualizou a mãe dele como uma mulher linda, alta e forte, com longos cabelos loiros atrás das costas enfeitados com tranças ao redor da cabeça, do mesmo jeito que viu as mulheres de Berk por ali ou as que estavam no salão no dia em que foi capturada.

— Depois que ele morreu, nós nos mudamos para o oeste. Fomos viver no meio da cidade. Minha mãe passou a tecer tapeçarias para vender. Ali era um pouco mais fácil sumir e nos distrair. Como ninguém nos conhecia, também não tínhamos nenhuma obrigação com ninguém. De parecer isso ou aquilo, digo, agir assim ou daquele jeito para nos encaixar. — Sean soltou uma risada triste. — Mas é claro que chamamos atenção indesejada. A mulher nórdica e seu filho mestiço. Quase todos a olhavam feio, ou da cabeça aos pés, mas ela nunca se abalou por ninguém. É uma mulher muito forte. Sempre de cabeça erguida. Só uma vez a atacaram de forma mais física, mas — ele riu de novo, agora de forma genuína — não é sensato querer atacar uma antiga viking, mesmo depois de anos sem lutar.

Merida não segurou o sorriso, imaginando a cena.

— Não o matou nem nada grave! Mas deu uma boa lição no cara e em todos que viram a cena. Nunca mais mexeram com ela. Quanto a mim... — Sean balançou a cabeça para o lado. — Não digo que foram violentos, mas ninguém nunca me deixou esquecer que não era totalmente escocês. Sei lá, pareciam sempre... desconfiados. Como se um menino que tivesse o sangue misturado, falasse as duas línguas e entendesse das duas culturas estivesse tramando alguma coisa traiçoeira.

Um gosto amargo impregnou sua boca. Ela soube desde pequena que os nórdicos eram malvistos, afinal, atacaram suas terras, roubaram, tantas vezes que os clãs inimigos decidiram se unir sob o comando de seu pai. Ela mesma sempre ouviu e repetiu coisas ruins sobre eles. Mas a verdade dura era que em nenhum instante que fosse parou para pensar naqueles que passaram a viver em suas terras, em como viviam ou como eram tratados.

Merida não sabia se admitiria isso em voz alta – ao menos não na frente de Sean –, porém se envergonhou por jamais ter considerado isso.

— Quando cresci, me mudei para suas terras e comecei a trabalhar em tantas coisas que nem sei bem — ele continuou, com a postura e a fala bem mais leves do que antes. A parte mais dura tinha sido dita, afinal. — Eu não... odeio um povo ou o outro. Não quero que ninguém sofra ou seja... punido, ou sei lá o quê. Os dois povos são os meus. Acho que por isso mesmo quando vi uma chance de ajudar, de facilitar a comunicação... eu peguei.

— Entendi — murmurou com um suspiro. — Bom... Acho que já está conseguindo o que queria.

Os dois trocaram sorrisos genuínos e continuaram em silêncio, mas dessa vez, numa quietude muito mais pacífica do que antes.

— Eu admito que não gostava da língua deles antes — Merida refletiu em voz alta após alguns momentos. — Sempre achei meio feia, violenta, não sei dizer. Depois que você começou a me ensinar, parece que os sons mudaram ou talvez o jeito que eu os entendia. Agora é como se as palavras... rolassem. Deslizassem, igual água num rio.

Sean riu.

— Isso porque você ainda não os ouviu cantar.

Merida sorriu e não disse mais nada. Contudo, não demorou muito para que a ansiedade por acontecimentos dominasse Merida mais uma vez.

Ela tentou caminhar, dormir, comer, ela fiscalizou os frascos com água lunar que tinha armazenado, repetiu os exercícios de direcionamento de energia que Seiliegh lhe ensinou, mas nada parecia fazer o tempo passar mais rápido – apesar de os feitiços a acalmarem um pouco.

O melhor local para treinar, quando não estava com Seiliegh, era atrás do salão, onde não havia outras casas ou pessoas circulando. Após semanas treinando com regularidade e por horas, Merida podia sentir a energia sobre sua pele sem dificuldades e aprendeu a perceber se o seu objeto alvo tinha sido afetado ou não pela sua intenção. Gostava de visualizar como se esferas luminosas flutuassem sobre suas palmas quando se concentrava, mesmo que ainda não pudesse ver nada de verdade com seus olhos.

Tudo que precisava era respirar fundo, se concentrar e deixar que as ondas de calor fluíssem para onde desejasse com a intenção que bem escolhesse. Suas aulas ainda incluíram apenas cura e proteção, mas a princesa já sabia que caso direcionasse qualquer outra intenção além dessas talvez conseguiria algum resultado.

Merida riu por dentro, imaginando-se usando a magia nos seus treinamentos físicos ou em uma batalha contra inimigos. Mesmo assim, engoliu em seco e acalmou os sentimentos. Se Seiliegh disse que ainda não era a hora, tentaria obedecer. A bruxa com certeza sabia mais sobre o assunto do que ela.

Não tinha nenhuma intenção clara em mente agora. Queria apenas sentir a mudança de temperatura na pele e a sensação de formigamento elétrico correndo pelo seu corpo. Ainda era um treinamento, já que assim ficaria cada vez melhor em direcionar energias para onde ou quem quisesse.

Merida ouviu passos à sua esquerda e voltou à realidade.

Bodicca estava parada a alguns metros, as mãos segurando o tecido da roupa sobre suas coxas com nervosismo. O peito dela subia e descia com força, como se tivesse se deparado com um animal selvagem e precisasse pensar em um plano.

— Não sabia que ‘tava aqui. Não quero atrapalhar — Bodicca balbuciou como se as palavras estivessem perdidas por sua boca e a mente bem longe dali.

— Pode ficar! Não tem problema nenhum!

Bodicca apertou os lábios no que poderia ser um sorriso tímido e se aproximou, ainda com movimentos hesitantes. A moça se sentou ao seu lado com um suspiro pesado e fitou a floresta à frente. Merida tentou disfarçar que seu próprio estômago dava diversos nós sobre si mesmo no silêncio pesado que reinou sobre ambas.

Discretamente, ela colocou uma das palmas contra a barriga e sentiu a energia emanando da mão para o torso, com ondas deslizantes que desfizeram um nó, então outro, então outro, até poder respirar novamente. Mas por que ficar assim? Não era Bodicca a culpada de nada, e sim os homens do outro assentamento.

— Já tem quase um mês que estamos aqui. Me desculpe não ter me aproximado de você antes — Merida só percebeu que as palavras saíram quando já tinham sido ditas. Bodicca a observou de canto de olho, virando a cabeça devagar até encará-la. — Não é nada com você, é só... Aconteceu tanta coisa em tão pouco tempo. E...

— Eu sei — Bodicca divagou. — Ninguém nunca sabe como reagir mesmo. O que dizer, o que fazer.

Merida engoliu em seco.

— Sim... Mas você não me atrapalha. Nem a ninguém. Por que pensou nisso?

Bodicca torceu o nariz, pensativa. Por fim, deu de ombros.

— Parece que todo mundo prende o ar quando eu passo perto. Param de rir, de conversar. Sei lá. Eu sei que não é nada comigo, mas é... complicado. Às vez’ eu só... só queria falar de qualquer coisa que me fizesse pensar em algo mais do que naquela noite. Outras vez’ me incomoda quando parece qu'esqueceram, também. Não sei explicar direito.

Merida fitou a grama sob seus dedos enquanto lembranças de Dunbroch invadiam sua mente. Nunca passou por nada que chegasse perto do que Bodicca passou, mas ainda assim... uma parte de si entendia a estranheza das pessoas depois de coisas alarmantes acontecerem. Todo o seu castelo estava dividido entre pessoas que só viam a menina que enfeitiçou a mãe e pessoas que tentavam fugir do assunto a qualquer oportunidade quando foi atrás do padre Áed por orientação e para fazer seu espetáculo público de princesa arrependida – mesmo que, de fato, se arrependesse.

— Eu não quero só ser a menina que foi... invadida, sabe? Mas também não quero fingir que não aconteceu. Eu falo mais com a Deirdriu sobre isso, só que tem hora que cansa ter uma pessoa só.

A princesa respirou fundo devagar.

— Eu imagino. Me desculpe por... por tudo. Por te fazer se sentir assim depois do que já passou. Eu realmente só não tinha ideia de como me aproximar — E não queria me lembrar do que vi, gritou mentalmente, se repreendendo de imediato. Não era culpa dela e com certeza Bodicca sofria com isso. Merida sentiu os olhos se enchendo de lágrimas ardidas. Todas tinham tido seus próprios traumas na noite da captura. — Você pode conversar comigo quando quiser, sobre qualquer coisa para se distrair ou sobre como você está. De verdade. A Muire também é uma ótima ouvinte.

Bodicca sorriu, dessa vez de verdade. Os seus olhos também lacrimejavam, porém não parecia ser apenas pelas lembranças. Merida podia sentir em seu sorriso, na postura, em como os dedos dela soltaram o pano e se abriram para tocar a terra que havia ali um misto da tristeza com alívio.

— Ela é bem fofa, sim. E obrigada! É bom ouvir isso. Eu te perdoo sim.

Bodicca virou sua mão que tocava o chão para cima, em um convite. Merida arfou e repousou a sua sobre a dela, entrelaçando os dedos com uma força repentina para duas pessoas que mal se falaram em três semanas. Ela sentiu as bochechas quentes e enxarcadas com as lágrimas que não conseguiu mais segurar.

— E como você está? — Merida perguntou, enxugando as lágrimas com a mão livre, agora sentindo seu rosto muito mais sereno do que antes. — Se quiser falar, claro.

Bodicca suspirou, seus ombros subiram e desceram em um único segundo. Até mesmo tal movimento parecia mais leve da parte dela em comparação com os anteriores.

— Eu não sei. Na maior parte do tempo, não sinto nada. Parece que... nada disso é real de verdade. Como um sonho qu'eu 'tô vendo de longe. Mas de noite vem os pesadelo. Depois, no outro dia, tá tudo calmo de novo, depois vazio, e assim vai. — Ela respirou fundo, com a atenção perdida entre as árvores, e Merida repetiu o movimento sem pensar muito. — Tem vez qu'eu acordo e 'cê tá acordada também.

Merida ergueu as sobrancelhas.

— Ah! — Riu nervosa. — Eu também tenho uns pesadelos e sonhos esquisitos. Não falo muito deles porque... sei lá. Me parecem meio íntimos, e eu mesma não entendi direito o que eles significam.

Bodicca tombou a cabeça para o lado, ponderando.

— Talvez a gente pode te ajudar a entender — soltou, dando de ombros.

Merida a fitou e sorriu, com uma risada baixinha. Felizmente, Bodicca correspondeu ao gesto. Para sua própria surpresa, sentiu como se o ar ao seu redor se tornasse mais fino, leve, fácil de respirar. Nem mesmo ela sabia que tinha a capacidade de ajudar alguém a lidar com um assunto tão pesado quanto aquele. Sempre pensou que tudo isso estava ao alcance de sua mãe, de sua seriedade e resolução. Agora, pela primeira vez, conseguiu sentir os aromas da floresta tão familiares, o piar dos pássaros ao longe. Não se sentia mais uma estranha em um lugar estranho cheio de desconhecidos.

O restante do tempo depois disso passou em um piscar de olhos.

 

Ao entardecer, os vikings retornaram ao assentamento seguidos por carroças carregadas de alimentos, ouro e outros tipos de pertences – copos, taças bonitas, rolos de tecido. Merida tentou respirar fundo, mesmo que isso não impedisse seu corpo de ferver por dentro.

Os poucos que ficaram para trás gritaram em celebração, batendo palmas e os pés contra o chão, criando toda uma algazarra. Porém, os chefes seguiram em frente, ignorando tudo, indo reto na direção da princesa. Merida se manteve altiva durante todo o trajeto que eles tomaram. Sean estava ao seu lado e logo se prontificou entre os três para realizar o seu trabalho.

Soluço e Astrid pararam à sua frente e a encararam na alma.

— Eles dizem que ninguém foi atacado de forma indevida — Sean repetia. — Hikken deu ordens claras para que os mais pobres fossem poupados e que só atacassem em autodefesa, mas a maioria simplesmente entregou tudo sem revidar. O ouro vem de quem o tinha para dar e vender. A promessa foi mantida.

Merida continuou encarando-os em silêncio. Suas expressões eram sinceras, apesar de isso não apagar o peso em seu peito por saber que seu povo fora saqueado. Ela soltou o ar lentamente e assentiu.

— Ainda aliados — ela lembrou entre suspiros.

Por que ainda não recebera nenhuma resposta de seus pais, afinal?! Eles poderiam resolver a situação em um estalar de dedos e só entregar parte das reservas que tinham. A fortaleza tinha, de todo modo, comida de sobra para dividir e nem chegarem perto de passar fome. Mas meu pai os odeia, eu sempre soube disso e que ele não cederia fácil, respondeu a si mesma.

Por horas adiante, as pessoas dividiram tudo entre si, além de separar os suprimentos que sairiam dali para sua Berk. A maior parte foi posta de lado para o transporte, enquanto para os que estavam no assentamento restou apenas o suficiente para sobreviverem e um pequeno punhado de ouro.

Depois disso, as pessoas seguiram para sua casa, se banharam e iniciaram os preparos tardios do jantar. Como sempre, cada um ajudou em uma etapa para cada prato, o que acelerou bastante as coisas – ainda mais com a presença dos amigos de Soluço e Astrid que dividiram sua própria parte da comida com eles.

Merida ainda não aprendera como lidar com os jantares, dessa vez servindo ensopado de carne bovina e suína fritas na manteiga antes de serem misturadas com as cenouras, couve, feijão-fava, tomilho e cebolinha, acompanhado de pão de aveia e ovos cozidos. E essa noite, tinham cerveja – e uma boa! Espessa e forte. Com certeza vários dos ingredientes novos vinham de uma residência de mercadores ou dos administradores da cidade que atacaram. Na mesa também puseram uma bacia com morangos, amoras, mirtilos e maçãs para serem comidas mais tarde.

Por mais que o cheiro e o sabor a enebriassem, uma parte de si ainda se indagava quanto a origem dos alimentos e se deveria se sentir tão facilmente levada por eles.

— Onde foram? — Merida resolveu perguntar de forma casual enquanto enfiava uma colher de ensopado na boca, usando as palavras nórdicas que tinha aprendido.

— Pirn — Astrid respondeu depois de entender a pergunta.

Merida arquejou e isso não escapou da atenção do casal. O semblante até então pacífico e cansado dos dois se fechou em dúvida. A princesa engoliu em seco e mordeu o lábio. Agora não teria mais como fugir da pergunta.

— Quem conhece de Pirn? — Sean transmitiu o questionamento de Soluço.

Ela começou a bater um dos pés no chão.

Na cidade, ninguém.

— E perto dela? — O chefe disparou sem lhe dar um segundo de brecha.

— Astrid diz que um exército os atacou quando chegaram lá — Sean traduziu. — Havia soldados escondidos dentro da cidade, no meio das casas. O restante surgiu depois do meio das árvores com lanceiros, arqueiros e cavaleiros. Eles ficaram com a impressão de que foram atraídos para lá com a imagem de uma cidade grande e rica, porém desprotegida, apenas para serem cercados. Por sorte, tinham o dragão.

Soldados escondidos entre o povo e o mato, ludibriar os inimigos para então emboscá-los. Merida ergueu e desceu as sobrancelhas. Esperto como sempre.

— Quem mora lá? — Soluço perguntou, dessa vez na língua de Merida. Ela não esperava por isso, mesmo que tenha visto o rapaz estudando com Sean depois das meninas. Um raio atravessou seu rosto. — Família?

Merida concordou com a cabeça. Soluço bateu uma das mãos sobre a perna e liberou uma exclamação em nórdico.

— Eu sabia! — Isso, Merida conseguiu entender. O restante, porém, precisou do auxílio de Sean. — O comandante lembrou alguém conhecido, mas não sabia quem. Era você, então.

— É o meu primo — a princesa enfim soltou as palavras, ficando cada vez menos nervosa a cada uma que proferia. — Cathal, se tornou lorde há pouco tempo quando meu tio faleceu. Ele não vive em Pirn, mas o forte é perto. Mais algumas milhas para longe e chega no meu forte. A estratégia parece coisa dele. Ele sempre foi espertinho.

Ele e Eithne, sua mente relembrou. A recordação súbita da prima a deixou pensativa. Não a via desde o funeral do tio Eógan, e na ocasião não se manteve próxima o suficiente. Sua dificuldade de lidar com situações difíceis como aquela vinha de longa data e na época não tinha o preparo atual para se propor a um ombro amigo como fez com Bodicca.

Mas se quisesse ser sincera, as duas nunca foram próximas. Talvez no comecinho, quando ainda eram pequenas e a diferença parecia pouca. Eithne tentou ser uma irmã cuidadora para ela, já que era três anos mais velha. Porém, isso durou pouco, só o tempo necessário para que as personalidades e interesses das duas seguissem caminhos completamente opostos. Ou pior, quando a rainha Elinor passou a comentar como a filha deveria seguir o exemplo de Eithne, tão doce, tão cortês, tão delicada.

Merida engoliu o ensopado com força. Ela travara uma guerra interna contra a prima quando criança – e, mesmo que tivesse deixado esse pensamento infantil de lado e que sua mãe tivesse se desculpado pelas comparações e as interrompido há anos, só de lembrar tudo isso seus músculos ainda se tensionavam.

— E ele é... aberto a negociações? — Astrid mandou perguntar.

A princesa refletiu bem.

— Talvez? Ele sempre foi bem mais diplomático do que eu quando tínhamos aulas sobre política, pelo menos. Então, se eu decidi ajudar, pode ser que ele concorde. Mas já faz mais de um ano que não o vejo ou converso, com ele, então... — finalizou com um chacoalhar de ombros.

Os nórdicos trocaram olhares e expressões silenciosas, porém, por fim, reagiram da mesma forma que a princesa e continuaram comendo. Merida pensou que não teria muitos motivos para se preocuparem com ele no momento. Afinal, ainda esperavam pela resposta de seus pais.

Ao final da noite, o seu estômago estava tão cheio que doía – de todo modo, a princesa sorriu com a sensação. Era melhor do que as primeiras noites, com menos suprimentos, e com certeza um milhão de vezes preferível do que a dor do vazio e com sua consciência flutuando durante o jejum da penitência.

A melhor parte, porém, foi ir para a cama saciada e não mais se sentindo dividindo o quarto com estranhas, mas sim, com amigas.

 

Merida despertou com três batidas firmes contra a janela do cômodo onde dormiam. Ela esperou, parada, até ouvir mais três batidas e o ruído de pergaminho sendo esfregado. Logo em seguida, passos rápidos correram para longe.

Ela saiu da cama para a janela em um salto digno de torneio, caso algum dia isso se tornasse parte de uma competição. Porém, a princesa ainda abriu as tábuas com cautela, a frestinha se alongando lentamente para a luz do sol ainda nascendo.

Merida arfou ao observar com mais atenção a parte de baixo do batente.

Havia mesmo um pedaço de pergaminho enfiado ali!

Ela quase o rasgou com o ímpeto que usou para puxá-lo e desenrolá-lo entre seus dedos. Merida se recostou contra a janela mais uma vez, tentando captar o máximo possível de luminosidade. Assim, a mensagem se tornou clara:

 

“Recebemos seu recado.

Eu e Eithne (que está aqui conosco há umas semanas) conseguimos te localizar depois desse tempo, mas foi preciso tomar cuidado para que o mensageiro não percebesse a presença do espião que pagamos. Estou tentando conversar com o seu pai. Até agora consegui que ele não atacasse assentamento do tal chefe Hikken, mas ele faz questão de atacar todos os outros um por um até que esse chefe se apresente e te devolva. Não pude convencê-lo a uma abertura maior a diplomacia, porém continuo tentando.

Assim que tiver novas notícias, te escreverei de novo. Peço que faça o mesmo por aí. Não posso garantir muita coisa, mas creio que, por agora, o melhor é realmente que ele tente se apresentar à corte para uma negociação formal.

Espero que esteja bem de verdade e que continue assim. Vamos conseguir fazer tudo dar certo ainda unidas, mesmo que separadas. Queria muito poder te abraçar agora.

Com amor, sua mãe.”


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Reino em Cinzas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.