Liberté escrita por Lehninger


Capítulo 5
Até que ponto uma orquestra é capaz de continuar


Notas iniciais do capítulo

Olá!
Não gosto me de estender logo no início, então nos falamos nas notas finais, ok?

(Ainda não respondi os comentários, mas o farei logo, logo, e, claro, li e reli todos inúmeras vezes e só tenho a agradecer. Vocês me motivam demais, sério, eu sou muito grata por cada palavra!)

Para este capítulo, "Ecailles de lune, Pt. 1" (Alcest)

Boa leitura!



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Hanté par le mirage des jours
Heureux j'attends que naissent
Au large les échos de la nuit

 

Ele não era de todo delicado. Senti isso desde o primeiro momento em que tivemos um atrito; naquela manhã, naquele estacionamento, ambos apontando na direção daquela mesma vaga. Seu sotaque francês podia camuflar um pouco a irritação inevitavelmente transmitida no tom de voz, mas, a cada palavra, ficava mais claro que Francis queria avançar em minha direção, talvez me empurrar ou simplesmente me mandar calar a boca de modo ameaçador, e seguir seu caminho. Veja bem, era seu primeiro dia, não queria se atrasar, e entrar numa briga com um desconhecido — assim como tudo naquela universidade lhe era — não estava em seus planos tampouco em eventuais experiências esperadas oriundas do descaso.

Inicialmente, ele havia apenas se defendido. Jogou o charme que lhe era tão natural quanto respirar, talvez cogitando a possibilidade de sair daquela situação como já estava acostumado em outros lugares e com outras pessoas. Quem não iria ceder ao coitadinho do novato francês que ainda não sabia as regras do local de trabalho, e, ainda por cima, parecia ter como mania jogar o longo cabelo louro para trás toda hora (fazia parte de sua estratégia para se safar da situação, devo dizer)? Para sua infelicidade, eu era a personificação do mau humor matinal; todavia, na versão estendida para 24 horas. Antes da primeira aula do dia, eu já tinha outro compromisso. Atrasos conseguiam destruir as esperanças de bom humor em mim. Mas, por favor, se você decidiu me acompanhar até aqui, saiba que, quando encarnado, eu não era mau humor em todos os sistemas, órgãos, tecidos e células. Era apenas minha natureza.

Quando suas feições não conseguiram mais conter a irritação, a briga, com todas as letras, começou. Ele estava se controlando há muito, como já disse, e em cada gesto a fim de transparecer uma falsa calmaria, eu percebia ainda mais que ele não era de todo delicado; a qualquer momento, poderia avançar em minha direção. Como dizer? Talvez fosse uma experiência nova. Francis não estava acostumado a abrir mão do charme por este não estar funcionando; ele sempre conseguia amansar a outra pessoa. Francis deu um passo à frente; eu dei dois. O tom de ambas as vozes aumentava a cada palavra e o sarcasmo passou a fazer parte, algo que irritava aos dois na mesma proporção. Em determinado momento, não sei dizer qual, a vaga no estacionamento deixou de ser a pauta da discussão. Estávamos apenas brigando porque queríamos brigar, alheios aos funcionários e alunos que passavam e outros que, ao longe, paravam para assistir.

Raiva e desentendimento à primeira vista.

A briga foi interrompida por um professor que eu não havia visto mais vezes do que posso contar nos dedos de uma só mão. Pertencia ao Departamento de Ciências Exatas, se não me falha a memória. Não prestei atenção a nenhuma das palavras que proferiu. No final das contas, Francis foi visto como o coitadinho do novato francês que não sabia as regras do local de trabalho, e eu, o funcionário incompressível e briguento. Egoísta. Malvado. Desagradável. E outras coisas.

Estacionei em outro lugar. Atrasei-me para o primeiro compromisso do dia. Queimei a língua com o chá. Deixei água cair na agenda. E outras coisas.

Alguns meses depois, não sei dizer o tempo exato, nos esbarramos novamente naquela mesma vaga. No entanto, não estávamos brigando por ela. Era um dia terrivelmente frio e já anoitecia, eu só queria ir para casa, corrigir algumas provas o mais depressa possível e continuar a ler o livro que Kiku havia me dado da última vez em que nos vimos. Kafka à beira-mar. Era meu primeiro contato com Haruki Murakami e eu me sentia, como dizer, mais preso ao enredo a cada página que avançava. Sem falar que, não sei ao certo explicar, mas tudo naquele livro parecia me lembrar Kiku, como se sua essência estivesse impregnada nas linhas que preenchiam as páginas.

Mas, voltando àquele presente em que eu levantava o cachecol acinzentado para cobrir o nariz ao mesmo tempo em que tateava os bolsos à procura do molho de chaves que continha a do carro, eu de fato tinha os pensamentos na leitura que me aguardava. Caso caísse, repentinamente em meio ao congelante vento, uma chuva de sardinhas e cavalinhas, eu ainda estaria do lado de fora do automóvel; não encontrava o chaveiro que imitava uma nuvem de tonalidade azul claro. Já sem paciência, agachei meu corpo e abri a bolsa transversal repleta de livros, pastas e canetas soltas diretamente no chão, alheio aos últimos itens mencionados que rolavam e se escondiam por entre os pneus do carro vizinho. Resmungando sozinho, não atentei ao claro som de passos que se aproximavam.

Pernas se projetaram à frente e, em seguida, um tilintar que me fez entreabrir os lábios e automaticamente erguer o rosto. Pelo chaveiro de nuvem, Francis segurava meu molho de chaves e não tinha exatamente uma expressão em sua face. Antes que eu me levantasse, ele se agachou, ficando na mesma altura.

— Não é o chaveiro mais adequado, sabe? Deduzo que tenha sido um presente. A miniatura de um vulcão em erupção combina mais com você.

Francis balançou as chaves, gerando um tilintar mais audível. Agora, um discreto sorriso marcava as comissuras labiais. Estava contido. Talvez fosse o frio; seu pescoço estava descoberto, embora os cabelos relativamente longos sejam aliados em situações parecidas. Sem hesitar, embora não de maneira abrupta, ergui uma das mãos e busquei o chaveiro, que me foi dado sem cerimônias. Eu tinha que agradecer.

Veja bem, um bom tempo havia se passado desde quando tínhamos nos conhecido. O clima ruim de nossa primeira briga estendeu-se, claro, mas, aos poucos, foi se esvaindo. Continuamos discutindo, geralmente por motivos frívolos, mas não com a agressividade original. Talvez fosse nossa maneira de levar as coisas. Num momento, tínhamos conversas saudáveis, e, noutro, brigávamos como dois garotos comuns de 11 anos. Suportávamo-nos, ao mesmo tempo em que passamos a apreciar a presença um do outro. E, sem saber por quê, não agradeci pela gentileza, nem ao menos sabia como e onde havia perdido as chaves tampouco de que maneira logo ele havia encontrado.

Francis não reclamou, embora o sorriso quase imperceptível tenha se alterado. Sem saber o que ele esperava, e dando continuidade a minha rotina de não me importar, tratei de colocar todos os livros, pastas e afins na bolsa novamente.

— Preciso lhe contar uma coisa.

O comentário repentino não me pegou de surpresa; afinal, se ele continuava ali, tinha algo a dizer.

— Uma coisa? — arqueei uma das sobrancelhas, desviando a atenção de meus pertences e retribuindo seu olhar. Parecia perdido, como se estivesse à procura de algo, mas precisasse de ajuda para o fazer.

Francis fez um meneio positivo e aproximou-se cautelosamente. Passando por meu rosto, o seu ia em direção a uma de minhas orelhas. Mas não havia ninguém por perto para ouvir, ainda que fosse tão confidencial. Algo tinha lhe acontecido?

Repentinamente, ele parou. E seu rosto, que se mantinha ao lado do meu, encostou-se neste. Não tive reação. Suavemente, um selar foi deixado no canto de minha boca e todos os músculos de meu corpo pareceram se contrair. Actina e miosina numa sinfonia fisiológica. Francis me olhou. Seus olhos pareciam cansados; e os meus, por outro lado, arregalados. E então, ele disse algo que me soou ininteligível. Inicialmente, achei que fosse por estar murmurando e eu me encontrar aéreo demais para encontrar sentido, mas, logo percebi, era dito em francês.

Ele proferia o que tinha a me dizer, mas não com coragem o suficiente para eu entender.

E foi no anseio de entender suas palavras que, deixando de pensar em qualquer idioma ou tradução ou todos os problemas mais importantes em minha vida, deslizei meu rosto em contato com o seu e o beijei. 

Francis nunca chegou a me dizer o significado do que dissera naquela ocasião.

Nessa noite, não terminei de corrigir todas as provas e relatórios que deveria. A água que deixei no fogão com o intuito de fazer chá evaporou. Esqueci-me de responder as mensagens de um orientando e também da leitura de Kafka à beira-mar. E dormi ouvindo Bob Dylan.

Na manhã seguinte, enquanto tentava organizar todos os acontecimentos e encontrar uma maneira de dar conta das coisas que havia negligenciado, imaginei que iríamos nos evitar. Ao menos por minha parte. No entanto, antes que o cenário fosse novamente o estacionamento onde havíamos nos conhecido, brigado e beijado pela primeira vez, fui guiado cegamente até o Departamento de Linguagens.

À frente da porta da sala pertencente a Francis, uma aluna falava em baixo tom consigo mesma. Tinha algo importante a dizer, mas parecia insegura. Talvez não quisesse apenas tirar uma dúvida ou sugerir um projeto. Absorta como se encontrava, não sei se percebeu minha presença. De qualquer forma, meus dedos se encaixaram na maçaneta e entrei sem bater. E mais uma vez guiado cegamente, girei parcialmente a chave já na fechadura. Francis, em pé ao lado da impressora que trabalhava numa sequência de páginas que provavelmente se tratava de um artigo, perdeu o foco. As folhas, que antes eram capturadas pelas mãos dele, caíam diretamente no chão. Imaginei que iríamos nos evitar, mas aproveitamos cada segundo proporcionado por beijos e mais beijos.

Dentro da minha cabeça, Bob Dylan ainda cantava. Naquela sala, ele segurava um violão, a gaita no pescoço, e cantarolava todas as faixas do Highway 61 Revisited apenas para mim e Francis.

Unicamente para nós.

Lembrando bem, uma questão muito trabalhada em Kafka à beira-mar era a das memórias. Mas não falarei sobre o livro, embora tenha gostado muito e até os fins de minha vida terrena meu entendimento sobre ele tenha sido embaçado por questionamentos e incertezas. Kiku disse que não me ajudaria a compreender.

Lembranças.

É bom tê-las, não? Principalmente quando se chega a um momento da vida em que é só isso que você tem. E assim como os diversos sabores e tudo o mais existentes na vastidão que consiste o pouco que conhecemos (ou pensamos conhecer) do universo, há um extremo oposto de cada lado.

Em outra noite, e após muito, muito tempo, Francis entrou em minha sala e perguntou até que horas eu ficaria ali. Naquela manhã, avisei que havia procrastinado quanto a coisas importantes e ficaria até mais tarde na universidade para terminá-las. Não era comum que conseguíssemos ir para casa juntos, mas Francis — quase — sempre se certificava de que realmente não fosse possível. Apesar de morarmos no mesmo lugar, ainda dirigíamos carros diferentes. “Certo grau de independência, hum?”, uma vez Roderich comentou, meneando positivamente com a cabeça a fim de demonstrar sua aprovação.

— Ah, aproveite e prepare o jantar.

Francis sorriu, embora eu não tenha visto, já que estava com os olhos fixos na folha em que escrevia de maneira mecânica. Todavia, seu curto silêncio após meu aviso significava um curvar de lábios, eu apenas já sabia.

— Não se preocupe, Arthie.

Para a sobremesa, Francis fez panellets. Mas não estávamos em novembro. E eles não foram tocados, assim como tudo que foi preparado.

Quando terminei de escrever a última lista contendo os nomes de todos os livros que um dos meus orientandos deveria procurar, perguntei-me por que não havia digitado no computador e enviado por e-mail. De qualquer forma, eu preferia que as coisas fossem manuscritas. Apenas me questionei por que fiz aquilo quando estava tarde e podia economizar tempo.

Eu estava estressado — e apressado. Reconhecia isso. Só queria chegar em casa, assim como nos meus tempos de estudante de graduação, após um dia cheio. Mal dirigi para fora do estacionamento, Francis me ligou perguntando se estava tudo bem. Apenas confirmei e disse que estava no volante, encerrando a chamada em seguida.

Sentia-me exausto. E mesmo àquela hora, ainda havia congestionamento no caminho para casa, o que me desanimou. Mas havia um atalho, embora fosse mal iluminado; poucas vezes havia sido meu recurso, lembrava-me de todos os resmungos pela precária iluminação no que deveria ser uma rua normal. E era um pouco estreita, aliás. Àquela altura, era tudo que eu sabia. Pensei duas vezes e decidi recorrer a ele. Me ver livre do engarrafamento me deixou aliviado, tranquilo como se já estivesse deitado em minha cama.

Um gato de pelos tão negros como o céu daquela noite passou correndo a poucos centímetros de distância do carro. Quase como um vulto. Era habilidoso, acostumado a situações como aquela. Do que está fugindo?, perguntei-me mentalmente, não entendendo tamanha pressa, embora, para mim, fosse algo natural da índole felina.

Em Kafka à beira-mar, conhecemos um idoso chamado Tanaka, e ele possui uma habilidade incomum: falar com gatos.  

Se eu também a tivesse...

Um instante depois, outro vulto que tomava a exata mesma direção do pequeno animal. Contudo, o vulto não era tão veloz e tinha forma. Um pequeno corpo humano, vestido amarelo e cabelos cacheados.

O pedal do freio, Arthur.

O pedal do freio!

Um segundo a mais, um segundo a menos.

Número atômico 8. Atrás, respectivamente, do hidrogênio e do hélio, o oxigênio é o elemento mais abundante do universo. Sabe-se que o flúor é o elemento mais eletronegativo de todos; o oxigênio vem em segundo lugar. Lembro claramente que tinha dificuldade de associar essas informações na escola. O2. Eu o lia e só conseguia associar ao pensar que, trocando a letra, poderia ser “U2”. Dois átomos de oxigênio unidos por uma ligação com uma configuração eletrônica em estado tripleto.

É o terceiro elemento mais abundante do universo. Na crosta terrestre, todavia, é o primeiro. “Gás incolor, inodoro e insípido, comburente, não combustível e pouco solúvel em água”.

Um segundo a mais, um segundo a menos.

Teoricamente, eu deveria ter 15 minutos.

Mas eles demoraram.

Teria sido apenas um segundo a mais?

 

Lembranças sempre trazem consigo um véu composto por neblina. E ao voltar, subitamente, ao presente, ele cai, trazendo à tona toda a nitidez do presente. No entanto, quando, de certa forma, não se faz mais parte dele, um quê do embaçado anterior permanece. Ainda assim, tudo aquilo que continuava a acontecer ao meu redor parecia mais vivo.

Na mesma mesa, Francis, Gilbert, Antonio e Roderich. Quatro pequenas xícaras de café, duas já vazias. Antonio está sentado de mau jeito, a coluna encurvada para frente, e Gilbert, quase deitado de tão inclinado para trás na cadeira. Francis e Roderich estão sentados de pernas cruzadas, mas este, naturalmente, mantém a postura mais correta. Francis havia terminado de responder algo e já levava a xícara novamente à boca, quando pareceu se lembrar de algo muito importante.

De maneira animada, começou a falar sobre o projeto que lhe foi apresentado no dia anterior por uma aluna. Francis, assim como quase todos, sabia que a música clássica agradava a Roderich. Mesmo quem não o conhecesse poderia deduzir tal fato, como se cada poro de seu corpo exalasse as notas de uma partitura. Francis também sabia que ele não tocava mais, embora não o tivesse conhecido na época em que o fazia. Na realidade, nenhum de nós havia o conhecido há tanto tempo assim.

Como previsto por Francis, a ideia do projeto deixou Roderich empolgado. Naquele momento, também, notei o quanto Francis desejou que o austríaco sentado de frente para si fosse professor de Música e pudesse fazer parte, como orientador, da ideia que lhe foi apresentada. Certa vez, eu havia perguntado àquela mesma pessoa por que Fisiologia Humana e não Música.

“Não conheço sinfonia mais perfeita que o conjunto dos sistemas do corpo humano.”

Roderich era uma pessoa que esbanjava segurança, como se estivesse certo de absolutamente cada palavra que saía por entre seus lábios e cada pensamento que circulava dentro de sua cabeça. Para alguns, uma rocha. Por dentro, todavia, ele era tão frágil como qualquer outra pessoa, trazendo consigo todos os fragmentos que lutou para manter bem próximos, impedindo que o todo que lhe compunha desmoronasse.

Desde pequeno, ele foi apaixonado pela música clássica. Poderia ter talento desde o berço como Mozart, mas precisou treinar por anos e anos quando criança para conseguir dominar certos instrumentos. Seu preferido era o piano. Nascido em Vienna e numa família repleta de músicos e, em especial, grandes apreciadores do que remetia à era vitoriana, Roderich foi criado como um pequeno aristocrata. A Ópera de Vienna ilustrava seus sonhos, assim como os de seus pais, sempre orgulhosos e alimentando as mais altas expectativas para com o filho único.

Em seu aniversário de 16 anos, Roderich ganhou um novo piano, ainda que ele mesmo tivesse alegado não ser necessário. E mesmo que as teclas fossem as mesmas, exatamente nos mesmos lugares, a essência de todos ali, ele se viu relativamente confuso. Sentia como se o som fosse diferente, como se as teclas decidissem, vez ou outra, se se tornavam mais delicadas ou rígidas. Cerca de uma semana após seu aniversário, Roderich se viu em um acidente; alegava que, neste, não sabia se o protagonista havia sido ele mesmo ou o instrumento.

O piano caiu do ângulo mais improvável ao ver do adolescente de 16 anos, esmagando, sem piedade, os dedos deste. Dos 10, 8 foram quebrados. Com uma recuperação lenta e um trauma aparentemente eterno, Roderich desistiu da música. Mesmo após ter se recuperado, não tinha mais coragem para tocar nas teclas de um piano, como se desde então um campo de força houvesse sido instaurado ao redor do imponente, e agora amedrontador, instrumento. Além do piano, Roderich viu dificuldade em simplesmente usar os dedos para as outras coisas, acreditando que não seria mais capaz até mesmo de segurar um lápis como qualquer pessoa.

Foi capaz de voltar às atividades usuais, exceto quanto aos instrumentos. Do acidente, restava um dedo minimamente torto — o indicador da mão direita. E ainda que tudo estivesse em ordem por fora, dentro do âmago de Roderich as falanges permaneciam quebradas, fragmentos afiados perfurando artéria por artéria, arteríola por arteríola, veia por veia, vênula por vênula. Lecionava Fisiologia Humana, mas nunca se encontrava em homeostasia.  

Certas coisas me faziam acreditar que Roderich me considerava como um de seus amigos mais próximos. Na universidade, o único. E me contar sobre seu passado foi uma delas. Era algo tão íntimo, tão pessoal e tão, para ele, doloroso, que prometi não contar a ninguém. Mais de uma vez Francis tocou no assunto que envolvia instrumentos e Roderich e a mesma indagação: “por que ele não toca?”. Alegando não saber, eu contornava o assunto e mudava a direção da conversa.

— Você toca, não é?

De maneira despretensiosa, a pergunta veio de Gilbert. A expressão anteriormente suave do Roderich que atentava às palavras de Francis pareceu se fechar automaticamente. Eu não saberia dizer se o motivo foi a pergunta ou simplesmente a voz de Gilbert, visto a rápida reação já relatada. O alemão, todavia, não pareceu se ofender. Talvez houvesse interpretado como algo natural da índole alheia, sem reconhecer que, de fato, a pergunta havia desagradado a Roderich mais do que qualquer outro comentário usual.

— Não.

O olhar do austríaco em direção a Gilbert era gélido, como se talhasse cada letra daquela resposta nos pensamentos do responsável pela indagação. Francis, que havia deixado de lado todas as distrações para observar o curto diálogo, percebeu a drástica mudança na atmosfera e se pronunciou, mudando de assunto ao comentar o quão exageradamente doce estava o café.

Antonio não havia notado o ocorrido e apenas concordou, alegando que deveriam ter pedido chá.

Francis agradeceu ao tempo quando percebeu que faltavam menos de 10 minutos para o início das aulas à tarde, que começava às 14 horas. O intervalo durava exatas duas horas, das 12 às 14, tanto para alunos como funcionários. Acompanhado por Antonio, Francis retornou ao Departamento de Linguagens, ouvindo alguns monólogos por parte do espanhol. O dia estava correndo extremamente bem e isso me afetava positivamente, apesar do dia anterior ter sido, para mim, repleto de angústia.

A leveza transmitida por Francis me fazia esquecer-me de Kiku, de maneira que o deixei simplesmente para depois. Havia prioridades e eu não ousaria sair de perto de Francis, onde estive desde o princípio de minha travessia. Não sei dizer se tomei a decisão certa, mas, veja bem, deixaremos esse assunto para depois. Apesar de parecer espantosa minha atitude de não correr atrás da única pessoa que, aparentemente, sabia que eu continuava a viver, é preciso compreender que todos os sentimentos são bem diferentes quando não se tem mais a vida terrena. Nosso âmago, por inteiro, parece tomar uma nova perspectiva, e há coisas que nem mesmo eu sou capaz de compreender completamente.

Antonio esbanjava alegria, o que contagiava a todos por perto. Ainda que fosse seu comportamento usual, todos sabiam que ele se esforçava ainda mais perto de Francis, e o motivo é claro. De qualquer maneira, funcionava na medida do possível. Antes de parar em sua própria sala a fim de pegar a pasta com relatórios que deveria entregar à turma, o espanhol aproximou-se estranhamente de Francis, adicionando certa confusão à expressão deste. Aproximou-se do pescoço alheio e voltou à sua postura, indagando de imediato:

— Você se esqueceu de passar perfume?

A pergunta foi tão repentina que me pegou de surpresa, assim como a Francis. Olhamos para o espanhol como se perguntássemos o fundamento de sua curiosidade, até que aquelas simples palavras começaram a fazer outro sentido para mim.

Eu estava tão acostumado ao cheiro de Francis ao dormir e ao acordar que não estranhava a falta de perfume, embora ele estivesse sempre usando algum. Poderia até se esquecer da carteira ou de tomar café, mas não se esquecia de se perfumar, escolhendo a dedo qual usar. Era francês, afinal. Todos os aromas me eram perfeitamente agradáveis, como se tivessem sido criados com o intuito de serem usados unicamente por ele. E, embora o ato de passar perfume em si mesmo não seja algo extremamente importante e seu esquecimento nada digno de choque, eu me surpreendi quando a ficha finalmente caiu.

Francis era a pessoa mais vaidosa que eu conhecia e nossos amigos diriam o mesmo. Ao olhar, naquele momento, para a confusão em seu rosto, também pude perceber algo que, antes, era-me imperceptível; tratava-se de uma leve bagunça em seus cabelos, como se tivessem sido penteados às pressas ou simplesmente não houvessem sido.

Francis estava perdendo a vaidade.

E, embora pareça algo frívolo para algumas pessoas, e até mesmo para mim caso se tratasse de outro alguém, aquilo me preocupou.

— Cheiro mal?

— Claro que não, só senti falta do aroma usual.

Com um último sorriso, Antonio alegou que Francis deveria ir logo à própria sala, pois a mesma não ficava tão próxima assim da sua e a primeira aula do período da tarde já estava para começar. Sendo assim, despediram-se.

Francis parou em sua sala apenas para buscar dois envelopes e o restante do material indispensável para lecionar. Das 14 às 16, deu aula normal para uma turma do segundo período. Das 16 às 18, aplicou prova para uma do sexto, de acordo com o plano de ensino e o calendário acadêmico montado sempre antes do início do semestre.

Ele não era um grande fã das costumeiras provas. Alegava que não era a melhor forma de avaliar seus alunos e que eles eram muito mais do que as notas que tiravam. Frequentemente combinava seminários e outros modelos de apresentação, mas, de qualquer forma, precisava recorrer às clássicas provas manuscritas, sempre estruturando perguntas que despertassem o senso crítico de suas turmas. Se não podia descartar aquele clássico método de avaliação, visto que o número de alunos era extenso demais para outras alternativas com frequência, então fazia o máximo possível para que abrangesse mais do que simplesmente o esquema de perguntas e respostas.

O clássico método de avaliação havia sido, inclusive, um de nossos primeiros assuntos. Enquanto Francis apontava todos os defeitos, eu apontava os pontos positivos. Veja bem, éramos professores de cursos completamente diferentes. Letras tem sua metodologia, enquanto História também possui sua própria. No entanto, como ainda estávamos nos conhecendo, o que era para ser apenas um diálogo saudável entre dois docentes por pouco não acabou se tornando mais uma briga estúpida de nossa imensurável coleção de discussões desnecessárias.

Ao fim da duração de aplicação do exame, Francis foi o último a deixar a sala, trancando-a e levando a chave à secretaria de seu departamento. Não tendo encontrado Antonio à vista e sentindo uma dor de cabeça – foi o que deduzi a ver sua expressão desconfortável durante a prova, confirmando assim que o vi tomar uma aspirina – forte o suficiente para lhe impedir de procurar Gilbert em outro departamento, decidiu simplesmente dirigir de volta para casa.

Era perceptível que a dor de cabeça não havia passado. Ao chegar, a primeira coisa que Francis fez foi ligar as luzes, mas desligou no instante seguinte, quando a intensa luminosidade pareceu irritar seus olhos e intensificado a dor. De qualquer forma, não ficava um breu completo. A iluminação urbana adentrava parcialmente através das janelas, sendo o bastante. Francis sentou-se no sofá e fechou os olhos, comprimindo-os enquanto passava uma das mãos pela fronte.

Resmungou, usando os dedos para puxar os cabelos para trás. Levantou-se e rumou à cozinha, procurando a caixa onde guardávamos remédios. Ainda não era hora de tomar outra aspirina, mas, antes que eu pudesse me preocupar com o possível uso irracional de medicamentos, Francis olhou em direção aos armários daquele cômodo.

Seu olhar tornara-se vago.

Senti como se um peso imensurável tomasse suas costas e, de repente, todas as dores que Francis havia suprimido durante o dia resolveram irromper em seu peito, tornando suas íris tão opacas e perdidas.

Parado no meio da cozinha, Francis engoliu em seco e tossiu. Parecendo dar um passo para fora daquele estado letárgico, moveu-se em direção ao que encarava de maneira vazia.

Não, não, não, não.

Como se ele pudesse me ouvir, eu lhe repreendia por algo que sabia rondar seus pensamentos. Coloquei-me à sua frente, como se pudesse lhe impedir; mas, como sabemos, eu havia me tornado um mero espectador. Sem voz, sem ação, sem presença.

Passando por mim, Francis abriu o maldito armário e de lá tirou três garrafas de vinho. Retornando à sala de estar, deixou as três sobre a mesinha de centro, voltando à cozinha e trazendo duas taças juntamente ao saca-rolha, deixando-os ao lado das garrafas.

Sentou-se novamente no sofá e passou a encarar o que havia à frente. Suspirando pesadamente, voltou a demonstrar se incomodar pela dor que atormentava sua cabeça. Surpreendendo-me ao romper repentinamente o silêncio, pronunciou-se:

— Sei que não é seu preferido, Arthur, mas...

Àquela altura, pude perceber que, no final, tudo havia desandado.

O dia não iria acabar bem, contrariando quaisquer expectativas de minha parte.

Francis ergueu ambas as taças. Vi como seus olhos pareciam exaustos, e, logo em seguida, como se encheram e transbordaram. Não pude nem ao menos mensurar se um segundo havia se passado quando ouvi e assisti o vidro se quebrar em mil pedaços no piso da sala. Logo depois, a outra taça. Como se personificassem todas as preces de Francis que, a seu ver, nunca foram ouvidas, ambas foram lançadas de forma bruta para longe.

Além de suas preces, as taças poderiam personificar tantas outras coisas. Os chamados por mim não respondidos, as lágrimas que molhavam sua face e não eram enxugadas, a desolação que adentrava sua alma e se recusava a ir embora. Todas as tentativas de seguir em frente, todas as tentativas de começar e terminar bem, todas as tentativas de viver.

E, a cada vez que Francis chegava ao seu limite, eu não era capaz de me conter.

Minhas lágrimas que não tocavam nada terreno. Meus gritos que não eram ouvidos. Meu desespero que era ignorado. Minha existência naquele plano que era escusada.

Se as coisas iriam continuar daquela forma, como se eu houvesse partido para sempre, por que eu continuava presente?

Se nada capaz de alterar as circunstâncias estava ao meu alcance, por que eu estava fadado a assistir as pessoas levarem uma vida que já não me era tangível?

Minhas indagações eram corrosivas para com minha alma, mas não mais do que a sequência de atos a que fui obrigado a observar sem nada poder fazer. A primeira garrafa foi aberta e Francis a levou à própria boca sem hesitar, sem tentar impedir a si mesmo, nem atentar a mais nada.

O álcool atingia gradativamente a corrente sanguínea, aumentando sua concentração plasmática a cada gole, a cada vez que Francis engasgava e voltava a beber, a cada garrafa aberta sem o mínimo de pudor. O vinho descia por sua garganta como água, instigando-o a continuar, a ingerir cada vez mais, mais e mais...

Acontece que Francis era tolerante demais ao álcool para se deixar iludir tão facilmente pelas curtas sensações prazerosas capazes de nos tirar de qualquer estado anterior. E, ao se lembrar disso, tudo que fazia era beber mais.

Sentindo a cabeça tonta e todo seu corpo mole, Francis levantou-se apenas para buscar outra garrafa, que seria seguida de outra e assim por diante, de acordo com sua vontade. Meus resquícios eram brutalmente corroídos pelas cenas que se seguiam, e, por um instante, tudo que fiz foi fechar os olhos e pedir para que tudo aquilo simplesmente acabasse.

Para mim.

Para Francis.

Para nós.

A campainha tocou de maneira estridente.

Dentro do casaco que Francis havia jogado no chão assim que colocou os pés dentro de casa, seu celular contabilizava mais de vinte ligações perdidas e outro número de mensagens não lidas.

Enquanto Antonio pressionava a campainha, Gilbert batia à porta. A escuridão do lado de dentro da casa apenas deixou os dois ainda mais alarmados, beirando ao desespero.

Com dificuldade, Francis permitiu que ambos adentrassem.

Sentiu seus olhos queimarem quando as luzes foram acesas. Antonio e Gilbert falavam alto, perguntando o que estava acontecendo, e cada palavra parecia torturar seus ouvidos. O alemão foi o primeiro a sentir o cheiro de álcool e perceber a presença de garrafas vazias pela sala de estar, ligando os pontos rapidamente e situando o espanhol das circunstâncias em que se encontravam.

Até certo ponto, o restante da noite foi resumido em dois amigos sóbrios e um embriagado, banho de água gelada e êmese. Francis reclamou, brigou, gritou, agiu de maneira violenta. Ofendeu e revoltou-se contra Antonio, Gilbert e todas as divindades cujos nomes são conhecidos pelo ser humano. Meu nome ecoou inúmeras vezes, incessantemente, até suas cordas vocais reclamarem e as incontáveis lágrimas substituírem os resquícios de voz. Francis, sobretudo, chorou.

Mesmo depois do amanhecer, os dois permaneceram ali. Cuidaram de Francis como se fosse uma criança e, apesar de visivelmente cansados, não reclamavam, limitando-se a trocas de olhares hesitantes e sonolentos. Quando, por volta das duas da manhã, Francis adormeceu, o Beilschmidt avisou silenciosamente ao espanhol que iria se distanciar brevemente.

Gilbert foi ao jardim. Observando o negrume e o silêncio da noite, sentou-se sobre a grama e, do bolso da jaqueta, tirou um isqueiro e o último cigarro restante de um maço. Levou o mesmo à boca e posicionou o isqueiro, mas, ao contrário de sua mão, os lábios mostraram um problema.

Os lábios de Gilbert tremiam, impedindo-o de manter o cigarro firme para acendê-lo. E, à medida que tentava o fazer, o tremor se intensificava. Eu era capaz de ouvir sua respiração rápida e pesada, demonstrando que suas tentativas não teriam sucesso. Seu peito subia e descia rapidamente, acompanhando a frequência respiratória elevada. Arrancou o cigarro dos lábios e permitiu a si mesmo chorar, pois já não conseguiria controlar.

Da janela, Antonio observava a cena com o olhar melancólico, engolindo diversas vezes a vontade que sentia de desatar-se igualmente.

Assim como Francis e eu, Antonio e Gilbert estavam em seus respectivos limites.

E eu não sabia até quando poderíamos suportar. 


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Notas finais do capítulo

Ecailles de lune, Pt. 1: https://www.youtube.com/watch?v=gk_gIOSHviA

Sobre a faixa recomendada para esse capítulo, apesar de eu ter apenas mencionado "Ecailles de lune, Pt. 1", a escrita também sofreu influência de "Ecailles de lune, Pt. 2", mas preferi não recomendá-la durante a leitura porque ela possui gutural e sei que isso não é agradável a todos, ainda que seja um gutural pertencente à atmosfera musical (única) do Alcest
Caso não veja problema (ou queira simplesmente conhecer), recomendo-a também, exatamente na sequência: Pt. 1 e Pt. 2

Edit: no capítulo passado, a música recomendada foi "Eclosion" e eu me esqueci de avisar que ela possui gutural. Espero que não tenha sido uma experiência ruim.

Enfim...
Obrigada a você que leu até aqui! ♡



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