Cidade Perdida escrita por Gabi chan02


Capítulo 7
Roteiros e venenos


Notas iniciais do capítulo

!! ATENÇÃO !!: essas notas iniciais contém uma grande quantidade de pessimismo, mau-humor, desabafos e reclamações. Se não quiser ler nada disso, pule direito para o capítulo e notas finais.

Enfim

Pela primeira vez eu não senti vontade nenhuma de escrever aqui nas notas e pensei seriamente em deixar em branco, mas acho melhor (e menos preocupante pra quem lê, já que deixar em branco não é o meu normal) que eu pelo menos solte uns veneninhos antes de prosseguir. No final, acho que vai ser bom até pra mim, então faço questão de qualquer forma.
Creio eu que já falei: esse ano me deu vontade de parar de escrever e postar de vez, mas não vou checar onde e quando disse, mas também tem a ver com esse detalhe.
O pior é que eu quero escrever, sinto falta e até vontade de colocar em prática quando tenho alguma ideia ou lembro das história: só que quando eu abro o documento, não sai nada, não consigo. Tem dia que nem gosto do que já tá escrito. Leio até o que tinha gostado antes, faço careta e desisto.

Acho que essa é minha maior ausência desde 2014, pelo menos de uma forma geral aqui no nyah.
Também imagino que vocês tenham ficado na expectativa de que eu postasse dia 27, como sempre faço... Não vou entrar em detalhes do motivo, não é nada demais, mas esse ano realmente não tive nem a oportunidade de chegar perto do computador desde o dia 23, até hoje. Aí quando tinha tempo durante a noite, já estava cansada e ia dormir :(
Fiquei muito chateada por deixar passar, nem mesmo pude comemorar como sempre faço pelas minhas redes sociais e minha internet não ajudava.
E pra piorar: eu tinha começado uma one-shot especial pra postar... que não terminei por motivos de... Batam os tambores... A cereja do bolo: eu peguei o famigerado covid :)
Essa foi a gota d'água de 2020 pra mim. A quarentena e o isolamento, até então, não tinham me fodido tanto já que minha vida já era quarentenada antes de virar moda ahaha
Maas o corownavairus me pegou bem direitinho. Não tanto pela doença em si, porque eu tive muita sorte de ser super tranquila pra mim (só tive uma crise de rinite por uns 3 dias e fiquei com a voz fanha, sem paladar e olfato por 1 semana e meia). Enfim, o que me afetou mesmo foi o jeito que eu peguei, mesmo seguindo o isolamento bem certinho: meu pai, que não estava levando nada a sério, passou pra família TODA, e ainda ficou debochando de tudo. Todo mundo teve pelo menos 2 sintomas por pelo menos 2 semanas, minha mãe foi a pior, mas ele só teve febre por 1 (um) dia. Só. Foi suficiente pra contaminar 4 pessoas e uma bebê porque ele se recusou a se isolar.

Meio aleatório, mas mesmo sem ninguém muito grave aqui, ter ficado sem sentir gostos e cheiros me deixou MUITO afetada, fiquei desesperada mesmo. Vi vários relatos de gente que desde o começo e até agora não voltaram ao normal. Pra mim essa foi a pior parte, e parece meio bobo, mas sentir o gostinho das comidas e doces que gosto de comer e fazer, e os cheiros dos meus perfumes e cosméticos é uma parte importante do meu dia, me fez muita falta... Quando eu voltei a sentir o meu perfume favorito e consegui reconhecer um gostinho doce numa geleia depois de um tempão, quase chorei pfffff
Felizmente tá todo mundo bem agora, mas que isso terminou de fritar meu cérebro, terminou.
Minha mãe falou algo que foi bem verdade: a pior parte que o covid afeta é o psicológico. A gente nunca sabe se tá bem mesmo, se vai melhorar ou piorar do nada, se vai ficar bem ou ficar sequelado. É tudo imprevisível.
Não tinha contado nada disso pra quase ninguém até agora (só pras minha amigas mais próximas), tinha ficado até com vergonha de tudo quando aconteceu e fiquei bem quietinha esperando passar :(

Enfim, acho que é isso...? É, deve ser.

Boa leitura ♥



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Len POV

Eu tinha de sair cedo, se quisesse voltar cedo e sem levantar suspeitas em um horário relativamente movimentado. Pela primeira vez depois de um longo tempo, acordei antes de Oliver e tive de esperar até que ele saísse um pouco mais cedo, talvez? Deixei passar, achei ter perdido a noção do tempo. O agito da situação não me deixou dormir direito.

Quando apareci na padaria antes das sete, bem mais cedo que o habitual, minha mãe não escondeu a surpresa em me ver ali. Uma surpresa boa, para meu alívio, apenas continuou recheando e enrolando a massa.

— Bom dia, mãe.

— Bom dia – ela sorriu, não implicou com nada –, filho que me surpreende todos os dias.

Eu tinha um roteiro pronto em mente e torci para que ela seguisse.

— Digo o mesmo, mãe. Ontem posso ter descoberto que você guardou lembranças especiais do dia em que a maga e o dragão visitaram a cidade.

Minha mãe parou de mexer na massa e nos ingredientes e a surpresa dessa vez foi um pouco menos tranquila.

— Aquele "estrangeiro" sabia bastante, não é mesmo?

Eu puxei dela a habilidade de ser um bom observador.

— Tive mais alguns aliados, recomendados pelo senhor Connell. – Eu sabia que citá-lo traria mais confiança para a conversa. – Soube de boas fontes que você costumava andar com um cristal brilhante por aí.

— Eu era uma criança quase tão curiosa quanto você, e o cristal veio parar direto nos meus pés, então guardar pareceu a coisa certa. – Minha mãe tinha um sorriso nostálgico no rosto, mas algo estava escondido em sua expressão. – Se eu vi bem, estava pendurado em um dos chifres do dragão, uma coisa bem curiosa de se ver.

A informação que recebi dela já foi diferente da que ouvi do senhor, parecia mais plausível do que "perder um pedaço de magia" por causa de um ataque da maga. Nos distraindo, minha mãe procurou alguma coisa pela mesa e não encontrou. Atravessei a cozinha e peguei a canela, voltei e entreguei em suas mãos na intenção de continuar o mais rápido possível.

— Realmente, estranho de imaginar – observei, fingindo não querer nada. Hora do roteiro principal entrar em prática. – Eu fiquei curioso em saber como é esse cristal.

— Esse é o motivo para acordar tão cedo? – Minha mãe era boa em bagunçar meus planos. Ela devia se orgulhar disso no fundo, e eu absorvia cada uma dessas situações como experiência para as próximas.

Sorri, sem ser vencido ainda.

— Talvez, mas sabe como é, eu tive de quem puxar essa curiosidade.

Ela riu.

— Ele parou de brilhar depois que você nasceu, mas ainda está aqui... – Ela largou a massa por um pequeno instante, algo raro, e me fitou em dúvida. – Len, o que você foi fazer ontem?

— Eu fui junto com o "estrangeiro" até a casa de um senhorzinho solitário na rua sem saída, recomendado pelo Sr. Connell. E depois até a biblioteca. Fomos só pesquisar sobre a maga e sobre o dragão.

Eu não planejava explicar essa parte, no entanto, também não tinha motivos para esconder caso perguntasse e a menção ao Sr. Connell não traria maiores suspeitas. Ela comprimiu os lábios.

— Por que tenho a sensação de que essa pessoa que você ajudou não era alguém comum daqui?

— Porque eu não teria ido atrás dele se fosse, não é mesmo?

Ela sorriu de novo, um sorriso de afirmação. Enfim, limpou as mãos no avental branco e florido, não iria voltar ao recheio. Colocou a mão no bolso do vestido azul claro e de lá tirou o cristal, num fio escuro e desgastado, mas inteiro.

— Pode ficar, Len. Sabia que iria pedir. – Eu não consegui conter o sorriso, saí do planejado, mas por um bom motivo. Minha mãe, por outro lado, continuou preocupada. – Mas você não vai atrás dela até buscar camomila para mim lá fora, e depois vai voltar aqui. Eu preciso te contar algo.

Estiquei as duas mãos e peguei o cristal, mais empolgado do que deveria demonstrar. Ao pegá-lo tive uma sensação diferente de tudo normal que já senti. Cristais deveriam ser frios, mas este era morno, ou podia ser só efeito da empolgação nas minhas mãos ou por estar num bolso quentinho segundos atrás. 

Definitivamente, ela só fez isso para me deixar curioso e ter certeza de que eu voltaria. De qualquer forma, parte de mim estava surpresa por ela já saber o que eu faria e a outra parte já imaginava isso. Havia essa chance, mesmo que mínima. Já receber o cristal sem mesmo pedir foi, sim, inesperado.

Surpresa mesmo foi encontrar Oliver e a garota ruiva com as plantas no quintal dos fundos, com caras de quem estavam me esperando. Abaixada no chão, a saia do vestido espalhada, ela analisava um lírio de fogo com a expressão de uma estudiosa, e levantou sem jeito quando me viu como se nada tivesse acontecido.

— Vamos direto aos assuntos, eu não quero chegar ainda mais atrasado na escola e Eileen tem negócios a tratar. – Oliver, diferente de mim, não sabia ser sutil. Ele a encarou até que entendesse e começasse a falar. Sem querer me fez o favor de me lembrar o nome dela.

— Fiquei surpresa por você não ter me visto na biblioteca ontem, Len. Geralmente você sempre percebe tudo. – Inesperado, de novo, Eileen riu um pouco. Alguma coisa nela parecia diferente hoje, fora do lugar. – Tudo bem, eu só te vi por trás da prateleira que eu estava e não saí. Não é todo dia que te vemos numa situação como aquela.

— E eu só estranhei você ter sumido com alguém, por dois dias seguidos, e depois acordar tão cedo – Oliver me entregou. – Eu posso muito bem olhar por aquela janela também. Eu vi a cena do dia da chuva.

Eu evitei demonstrar o quanto era frustrante que esses dois soubessem de tudo isso. Eileen, por outro lado, me mostrou mais uma vez o quanto consegue passar despercebida por mim.

— Aconteceu algo no dia da chuva?

— Nada – falei rápido, antes que Oliver sequer pensasse em responder. – Eu só achei ter visto alguém precisando de ajuda na chuva.

Mentir demais poderia ser pior e estragaria tudo. Oliver sorriu diabolicamente e eu devo ter confirmado sua vista, querendo ou não. No fundo, ele era compreensível, de coração bom, mas nem sempre relações fraternais são pacíficas.

— Você vai entrar na floresta, não vai? – Eileen podia não morar aqui há muito tempo, mas fez questão de se atualizar em todas as esquisitices dos locais.

— Ele não é tão desobediente assim – Oliver brincou, começando o seu joguinho contra mim. – Vai voltar antes do almoço para não chamar atenção de mais ninguém na cidade, certo?

Resolvi usar a situação a meu favor:

— E já que vocês estão aqui, vão me dar cobertura. Eu só vou até a Cidade do Verde procurar sementes para a mãe.

— Era o nosso plano desde o começo. – Oliver riu. – E se me irritar mais, vou dizer que foi buscar flores para ela também. – Olhou de canto para Eileen. Enfim, deu de ombros e foi saindo. – Vou indo, até depois.

O olhar que ela direcionou para as costas dele não foi nada pacífico e ignorou muito bem o comentário, tanto quanto eu ignorei. Oliver nos deixou e o processo da pequena colheita se repetiu conosco como no outro dia, dessa vez sem mais diálogos. Felizmente, pude voltar tranquilo e sozinho para saber seja lá o que minha mãe quer contar na cozinha. Os rolinhos de açúcar e canela já estavam assando no forno que meu pai cuidava e me proporcionou uma bela visão do doce e o melhor cheiro do mundo. Quando minha mãe me avistou, observou com cautela o movimento na padaria e em volta.

— Tem de me prometer que ninguém vai ficar sabendo disso, Len – aos sussurros, começou com um tom apreensivo. – Parece uma coisa muito absurda até para esta cidade, mas se não tiver acontecido de fato, eu realmente não tenho outra explicação. Você precisa saber disso um dia.

E pela primeira vez senti que alguma coisa não estava certa comigo, como me foi mencionado anteriormente.

— Não tem como ser tão ruim assim. Até hoje nada de absurdo aconteceu com a nossa família e as pessoas aqui são mais tolerantes… Não são?

— Na verdade, pode ter dado certo além do esperado. – Minha mãe caminhou até a porta e a fechou, parando na frente, de guarda. – Minha primeira gravidez não foi fácil, adoeci, não repousei como deveria. No dia em que você resolveu nascer, apressado e antes da hora, a parteira não tinha esperanças.

Eu não sabia de nada disso e era sobre minha própria existência. Ela não me deixou interferir, levantando a mão, não que eu fosse encontrar palavras. O ambiente tornou-se mórbido de repente, ou eu poderia estar apenas mais tenso que o normal... meu normal já sendo naturalmente tenso.

— Ninguém tinha esperanças, você já estava morto, mas eu tinha um "amuleto da sorte" pendurado no pescoço desde criança, todas as lembranças e histórias guardadas na minha memória. No momento em que te ouvi chorar, eu senti aquilo queimando minha pele e brilhando, ou eu estava delirando. Antes era frio como gelo, não importava a situação ou o calor. Eu te segurei nos braços naquele dia e essa coisa nunca mais brilhou e nunca mais esfriou... não enquanto você está por perto. E vai além disso. Segundo o histórico da família, deveria ter tido problemas quando estava grávida de Oliver também. Mas nunca mais tive nenhum problema. Nenhum.

Houve um horrível tom fúnebre depois disso e tentei não parecer assustado. Eu não tinha processado a informação direito, na verdade. Me senti lento, perdido, não conseguia pensar em muita coisa.

— Você acha que eu só nasci por causa de alguma coisa mágica?

Sem me dar tempo para refletir mais, minha mãe continuou:

— Eu consigo sentir alguma mudança no calor quando você está perto ou longe. É por isso que eu sempre sei mais ou menos onde você está quando sai por aí. Eu sinto desde que você nasceu que isso é seu, de alguma forma. – Ela se encolheu, respirou fundo. – Você foi tido como morto ao nascer, mas sobreviveu.

Não havia pensado em ficar com o cristal para sempre, pensei somente em levar como uma prova ou defesa. "Pode ficar, é seu mesmo"... Foi o que Piko disse quando eu ofereci, não tinha sentido até agora. Chute, intuição, dedução, ou qualquer coisa, não sei como Piko soube disso. Mas deve ser por isso que me intitulou como estranho.

"Você foi tido como morto ao nascer, mas sobreviveu."

Uma peça se moveu na minha cabeça. Algo que motivava aquilo que temi por tanto tempo e era pior do que imaginei na época: eles tinham razão.

Tateei o bolso até achar o cristal que guardei. Quente, de fato. Soltei assustado, como se não fosse algo que eu pudesse saber. Minha mãe me abraçou, entendi que ela também queria descobrir o que aconteceu. Nos soltamos, ela abriu a porta e eu sabia que ela sabia que eu não iria ajudar com a padaria naquele dia. A cobertura de Oliver não seria mais necessária.

Eu peguei o pudim antes de sair.

~ ~ ~

Resolvi seguir uma lógica simples: quanto mais ao sul, mais distante da cidade e mais densidade a floresta ganha, ou seja, mais fácil para se esconder. Para minha surpresa, havia uma trilha bem fraca: um percurso com menos verde no chão e um espaço para uma pessoa discreta entre as plantas, quase como se o caminho estivesse acostumado com algo (ou alguém) pequeno que não queria interferir na paisagem. Depois de poucos minutos de caminhada, o caminho se tornou tão costumeiro que não conseguia entender como tantas pessoas se perdiam aqui.

A floresta ficava mais densa aos poucos, de forma sutil e agradável. Não era difícil desviar dos galhos e plantas com meu físico desfavorecido de altura e massa corporal. No começo havia mais luz e raios de sol passando entre as folhas e eu ainda ouvia um som ou outro da cidade. Depois de quase 20 minutos, o ar se tornou mais fresco e úmido e o silêncio quase total, com exceção dos pássaros e meus passos pelas folhas e galhos. Reparar no caminho era fácil: árvores, flores, moitas, árvores, plantas, borboletas, árvores, pássaros, pedras, insetos medonhos, resquícios da trilha, árvores... enfim, fácil. E bonito também, me esqueci completamente do medo que senti dessas árvores em outras ocasiões.

Depois de pouco mais de 30 minutos de caminhada, foi fácil encontrar a casa de madeira abandonada e corri até lá, finalmente. Sem árvores mais antigas em volta, o mato e os fungos cresceram e tomaram conta, a madeira estava apodrecendo rápido e um tronco de árvore seco tratou de destruir um lado inteiro da casa quando caiu. Apesar de tudo, foi fiel aos relatos de ser caprichada e bem feita para estar perdida no meio da floresta e algumas plantas do quintal dos fundos até resistiam, mal cuidadas, mas presentes. E a melhor parte: eu devia estar próximo da casa atual da maga.

Com a curiosidade falando mais alto, desviei de tudo o que pude e entrei no que restava da casa pela porta da frente, mas não havia nada ali para chamar de porta, nem janelas. Todos os cômodos de baixo estavam prestes a virar um só e eu jamais arriscaria subir a escada que só não parecia mais frágil que o piso de cima. Tive medo até de sair do ponto em que parei, mas o lugar era incrível mesmo vazio, parecia ainda existir com vida. Ou talvez eu só estivesse encantado por realmente ter achado.

Tive coragem de chegar perto da escada, olhando para o céu nublado pela grande falta de telhado. Eu estava sentindo um clima estranho, como na biblioteca, ou podia ser coisa da minha cabeça confusa outra vez. Procurei o cristal no bolso e estava mais quente que antes. Puxei pela cordinha e encarei o brilho que aquilo começou a emitir. O medo me impediu de fazer qualquer coisa além de estagnar e coloquei de volta no bolso com pressa.

Não soube dizer por quê, mas sabia que tinha de sair dali. Fosse pelo tempo ruim, fosse pela intuição ruim. Parei na porta e coloquei as mãos no bolso, envolvi em volta do cristal para evitar o brilho e acomodei melhor a alça larga da bolsa com o pudim no ombro. Olhei tudo em volta uma última vez.

Eu ouvi passos.

Parte da minha visão era bloqueada pelo tronco e por um matagal. Senti um arrepio, uma dorzinha estranha e repentina na cabeça e captei um irritadiço suspiro de algum lugar.

— Você não é um curioso qualquer...

Senti um gosto amargo, minha visão embaçou.

~ ~ ~

— Sorte a sua que é leve!

Alguém falou comigo, a mesma voz de antes. Minha cabeça doía e pesava para frente, não conseguia abrir os olhos e nem me mexer, além do resto do gosto amargo na minha boca. Distinguir uma voz seria quase impossível.

Tudo passou, rápido assim, tanto que fiquei confuso e por alguns segundos eu não me movi, sem acreditar. Abri os olhos e me vi amarrado por... plantas... em uma cadeira... No meio de uma sala de visitas perfeitamente arrumada e meiga, um pouco sobrecarregada, com flores e frascos com líquidos suspeitos pelas prateleiras.

— Eu fui piedosa, te dei o antídoto do veneno e você nem olha para frente?

Meus sentidos voltaram com o susto.

— Veneno?!

— Nunca falha. – Ela riu, comemorando. Uma garota com o maior cabelo que já vi, e era verde, preso em tranças floridas dos dois lados. Humana ela não era. – Não era veneno, mas poderia ser. Dessa vez foi só um feitiço de plantas sedativas, já passou. Eu preciso de você vivo pra me responder, infelizmente.

— Quem e o quê é você? – perguntei, transtornado. Lembrei que Piko me fez a mesma pergunta. – Não tenho que te dizer nada se não quiser.

— Ah, humanos são sempre tão indelicados! Sou eu quem deveria te fazer essa pergunta. – A garota se agitava enquanto falava, os cabelos e a saia do vestido a acompanhavam quando andava para os lados e voltava para me encarar impaciente. – Para começo de conversa, eu nem deveria ter te colocado dentro da minha casa.

As dores de cabeça eram passageiras e fracas, e geralmente apareciam no mesmo momento em que ela parava quieta em algum lugar. Falando em lugar, as plantas da salinha pareciam mais vivas e bem cuidadas que as de uma casa normal. Tudo tinha um toque verde, inclusive o tal feitiço. Era a maga protetora da Cidade do Verde.

Senti minha cabeça latejando.

— Sim, eu sou a Maga Verde. De nada.

— E você... – tentei começar.

— Sim, eu leio mentes também – ela terminou, com um sorriso e postura orgulhosa. – Cortesia da sensibilidade natural. Foi assim que senti sua esquisitice presente na floresta, as raízes de marcações não mentem.

Deixei a conversa morrer. Como eu tinha ido parar tão longe? Essa menina me trouxe até aqui sozinha! O apito de uma chaleira no fogo invadiu o ambiente e me distraiu. 

— Eu também tenho perguntas, mais importantes que as suas – ela retornou o diálogo. – O quê queria naquela casa? O quê quer com ela? Como arrumou esse fragmento? Se não me responder ou se chegar perto dela, eu vou te transformar em adubo.

Com alguém lendo tudo o que eu pensava ou planejava, o apito me irritando, não conseguia me defender. Foi a situação mais desconfortável que pude imaginar.

— Então só te resta me responder. – E exibiu aquele sorriso orgulhoso de novo. É difícil não pensar em tudo o que não se pode pensar. Justamente o fato de não poder me fez lembrar de tudo. – Você é o garoto estranho que foi atrás dela na praça, não é?

Estranho já está virando meu segundo nome. Seria difícil, mas eu podia usar o óbvio a meu favor. Repassei todas as minhas últimas descobertas como uma lista na minha cabeça, enquanto ela me encarava com os olhos verdes nem um pouco naturais. Já quase não percebia a dorzinha.

— Sim, sou eu – terminei, sorri numa pequena vitória. – De nada.

— Esquece, não precisa me contar.

— É, eu sei.

Ela revirou os olhos. Mais calma, pareceu ter desistido.

— Então só me diz o que quer com a Rin.

— Eu só vou dizer para a própria.

— Se for sobre a Lily, é melhor abrir a boca logo. 

Na verdade, eu quase não tinha pensado no que falar. Queria perguntar sobre o cristal, ou fragmento, e sobre o que a minha mãe me contou, apenas isso. Queria perguntar se conhecia Piko e sobre a história do livro diferente na biblioteca. Seria bom se isso pudesse oferecer alguma dica sobre a irmã para ela, mas isso estava além do que eu podia oferecer.

— Seu nome e ocupação – a garota ordenou, voltado a suspeitar de mim com todas as forças. – Agora.

— Len Schmidth. Humano. Filho mais velho dos padeiros. Onde está o pudim?

— Não mesmo. Você pode estar muito bem disfarçado, mas não é humano, não como eu pensei. Não com essa presença estranha.

Então, de fato a magia possui presença, agora só falta descobrir como isso funciona. Se meu palpite não estiver errado, a culpa pode ser do cristal.

— Se eu não fosse humano, já teria te atacado – afirmei, mas não era verdade. – E se me soltar, é só eu te entregar o fragmento e a sua sensação estranha vai passar.

Tamanho foi o constrangimento que por um longo e irritante instante, a chaleira foi tudo o que escutei. Ela ficou vermelha até as orelhas, de raiva, e olhou para fora pela janela aberta, cruzando os braços. Não tenho certeza, mas sei que prender um ser mágico com plantas e mobília não o impede de usar magia.

Bufou. Foi até a porta do cômodo ao lado e voltou com o pudim ainda dentro da bolsa, sã e salvo como o vi pela última vez. Felizmente cessou o apito também.

— Pode me chamar de Miku. Eu ia ficar com o seu almoço, mas se é só pudim, não me interessa. – Ela tirou um graveto do bolso do vestido, tinha apenas uma graminha amarrada, o quebrou. As plantas que amarravam meus pés e braços sem dó se afrouxaram e fui solto.

— Mas e se a comida estivesse envenenada? – sugeri, cômico.

— Seres imortais não são nem um pouco afetados por venenos e coisas humanas... Se não sabia disso, vou poder confiar em você, porque é realmente idiota. – Ela não perdeu a chance de caçoar. – E eu vou te levar até a Rin, mas se não contar tudo o que sabe ou se chegar perto dela, você vai virar adubo.

Esticou a mão para mim antes que eu me levantasse da cadeira, me entregou de volta o pudim. Tirei o fragmento do bolso também e entreguei. 

— Não se preocupe – Miku disse, e o apanhou. – Se eu vi certo na sua cabeça, isso é seu. Só vou ficar com ele agora por garantia.

Miku foi até a porta e eu a segui com cuidado pelo caminho. A única coisa que podia fazer durante o percurso, para evitar ter minha lente lida até de ponta cabeça, era contar o tempo. 7 minutos até a outra casa.

— Você teria se perdido se continuasse procurando ao sul da floresta, chegaria no máximo até a região do rio onde Adamas se escondeu.

Foi o único pronunciamento de Miku, que me fez acompanhar fielmente o seu passo, lado a lado. É óbvio, ninguém pensaria em procurar a casa da Maga Dourada na fronteira de outra cidade, no território de outra maga. Faz sentido, principalmente se essas duas têm contato sem que ninguém saiba.

A casa era bem menor que a abandonada, mas com um cercado bonitinho. A laranjeira na lateral começava a florir e me chamou atenção, o perfume das flores fazia parte de tudo em volta. Não me pareceu mais tão inexplicável que o cheiro do pudim tenha chamado a atenção dela naquela noite.

Assim que Miku tocou no trinco para abrir a entrada da cerca, o fragmento no bolso dela brilhou. Ela puxou o cordão, assustada, deixando-o mais longe possível do que seu braço esticado permitia. Brilhou muito mais do que eu achei que fosse possível.

No mesmo instante, Rin abriu a porta tão assustada quanto.


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Notas finais do capítulo

Postar está me deixando animadinha de novo, yaaay :D
Acho que esse capítulo foi o maior até agora, o que é bom, pra compensar o tempo longe.
E se preparem que essa fic vai ser cheia de nomes feitos no google tradutor ou invetados do além e que provavelmente não fazem sentido nenhum.
Fui tentar dar uma de Tolkien e criar toda uma língua, nomes, significados, mas eu não larguei a faculdade de letras no meio porque tava gostando de linguística... Não tava, não.
Galera de humanas que me perdoe, mas tinha aula que eu queria ser de exatas. O raciocínio não encaixava com o meu cérebro não importava o quanto eu tentava. Nada fazia sentido e minha vida virou uma mentira (foi quando eu comecei a querer parar de escrever, inclusive).
Mas eu desisti de inventar lero-lero pra enfeitar a fic? Não (pelo menos ainda não). Vou fazer do meu jeito mesmo, sem compromisso, e se não fizer sentido, se ofender algum especialista: azar :D
Eu preciso MUITO tirar aquelas aulas da minha cabeça, e parar de me comparar e querer alcançar gente publicada, principalmente de quase 100 anos atrás.
Acho que é isso que eu sinto falta, de só escrever o que der na telha e foda-se, como eu fazia mais no começo, sem me preocupar muito.
Em novembro fiz 8 aninhos de cadastro de Nyah, isso pq já tava aqui antes de criar conta.
E daqui a pouco, dia 02 de janeiro: 10 anos que oficialmente* me interessei por Vocaloid. Metade da minha vida de puro caos, ouvindo feliz coisas não humanas cantando todo santo dia.
E não me arrependo de nada.
*Já tinha ouvido falar e pesquisado antes, mas não tinha entendido nada até esse dia em específico pfff

Ahh, e eu ia tentar postar Sentimento Incompleto hoje ainda, mas não vai dar não, tô com soninho uwu
Vou tentar começar a revisar amanhã a tarde, por enquanto vou postar só CP (e são em 3 lugares, já é um trabalhão)
Obrigada pra quem tem paciência de esperar a postagem e me aguentar até aqui ♥



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