Um pouco de veneno escrita por Bruna


Capítulo 1
Um pouco de veneno




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Começou como algo imperceptível, ou quase isso. Uma sensação de formigamento, um vento forte contra o corpo mesmo que não houvesse nenhuma corrente de ar no local.

Suzanne permaneceu por muito tempo pensando que era apenas algo da sua imaginação. Nas primeiras vezes, ela tinha que virar de costas enquanto andava na rua para conferir se ninguém tinha esbarrado nela sem querer, ou se revirar várias vezes na cama antes de conseguir dormir porque sempre tinha a impressão de que tinha alguma coisa esquisita encostando nela, talvez um bicho.

Era sempre em vão. A velha senhora olhava para trás e para os lados o tempo todo enquanto andava, mas nunca havia nada de incomum. Para quem a via, devia parecer uma paranoia séria.

Ao longo de algumas semanas, a situação se tornou mais tensa. Suzanne estava sempre alerta a tudo e assustada com o que parecia não ser nada. Já não dormia bem, o que piorava bastante a situação, ainda mais para alguém com a idade ou fragilidade de saúde que ela tinha. Ela sentia uma presença, isso era certeza. Só não fazia ideia do que poderia estar causando aquilo.

Quando se informar melhor a respeito de superstições parecia a única saída para esse problema, Suzanne decidiu procurar sua vizinha Marilene, com a qual nunca foi muito próxima. Esta era ainda mais velha e na vizinhança tinha a fama de ser meio biruta.  Não era o ideal, mas ninguém com a cabeça no lugar acreditaria nas coisas que Suzanne tinha a dizer.

— Ô, senhora Suze! Tudo bom? Quer um cafezinho? – Marilene foi simpática ao receber a vizinha, sem perceber que esta não tinha o menor entusiasmo para passar mais tempo do que o necessário com ela.

— Obrigada, mas vou recusar. Não vou ficar muito tempo. O que eu queria mesmo era saber se você não pode me ajudar com um problema. – Suzanne se apressou em não deixar que a mais velha divagasse no assunto, caso contrário, ela só sairia dali depois de uma semana de conversa fiada. Direto ao tópico, era o que ela queria. 

Marilene a guiou para sentar em uma das cadeiras antigas e simplórias que haviam na varanda da frente da casa e a visitante já foi descrevendo várias das situações pelas quais passou nos últimos tempos, todas com essa mesma sensação de uma presença, que parecia se tornar cada vez mais intensa. 

— O que eu quero saber é se... por acaso você já não ficou sabendo de alguma coisa assim acontecendo aqui pelo bairro? Quem sabe talvez de algum espírito rondando a região, ou uma bruxa...

Suzanne se sentia patética falando coisas como aquelas, e com certeza teria dado risada se tivesse ouvido esse mesmo papo uns dois meses antes. Agora, porém, as coisas eram diferentes.

— O quê? Não, não, nada assim, assombrado. – Marilene falou com veemência. – Aqui sempre foi muito pacífico, só coisa boa. O que cresce aqui tem sempre bondade no coração... – O olhar da vizinha se desviou, acompanhando os devaneios de uma mente que nem sempre era tão bem orientada. Havia momentos de clareza, apesar de tudo. – Mas é claro que você não saberia das histórias mais antigas daqui, não é mesmo?

— Como? – Suzanne indagou, confusa.

— Você não é daqui, é? Não cresceu aqui.

— O quê? Não, não. Mas eu me mudei há muito tempo. Faz uns trinta anos já. Não sou nenhuma novata.

Marilene a encarou por alguns momentos tensos, com uma expressão de quem acha graça.

— É claro. – disse, finalmente. - Devo ter me esquecido. Memória de velha, sabe como é... Mas não esquenta muito com isso aí não. Não é nada de ruim. Só fica atenta que logo vai ser o Halloween. A piazada gosta de pregar umas peças nessa época, não vá se assustar.

Pouco depois, elas fizeram breves despedidas e Suzanne se encaminhou para a sua casa. A conversa não tinha sido exatamente o que ela esperava. Mas também, o que exatamente estava esperando? Uma receita para se livrar do mau agouro? Uma confirmação de que isso acontece com várias outras mulheres na menopausa? Simplesmente patético. Ela estava um pouco decepcionada, mesmo assim. Quando começou a duvidar da própria sanidade, recorreu a outra pessoa louca, mas se nem a louca acreditava que havia motivos para se preocupar, então devia ser verdade. Certo?

Na tentativa de se tranquilizar, foi assistir uma novela. Não havia nada de errado, ela repetia para si mesma, apesar de que depois de alguns minutos, passou a sentir baforadas vindo de trás do sofá, como se alguém estivesse respirando na nuca dela.

Não havia nada de errado, ela repetiu ao tomar um remédio para dormir, seu mais novo vício. Mais uma vez, teve a impressão de que algo havia raspado em sua mão, que havia estado relaxada ao lado do corpo.

Não havia nada de errado, ela repetiu quando sentiu algo molhado e gelado em seus pés ao passar pelo corredor. Sentou na cama e tirou os chinelos para dar uma olhada nos pés. Estava tudo normal. Deve ser imaginação. A Marilene falou que não tem nada de mal por aqui. Deve ser um espírito amigável que só está um pouco entediado. Sim, devia ser isso.

No dia seguinte, Suzanne acordou bem tarde: já era mais de meio-dia. O remédio que tomou e a exaustão de muitas noites mal dormidas e dias mal vividos haviam dado efeito. Não que a noite tivesse sido particularmente boa. A mulher tinha sonhado muito, sonhos do tipo confuso e desorientador, mas não conseguia se lembrar de nada em específico.

Acordar também foi desagradável. Ela sentiu como se alguém tivesse agarrado o pé dela e puxado com força e brutalidade. Nada como os toques sutis e incertos que costumava sentir. Foi violento, e o que enfim a trouxe à consciência. Ela levantou da cama, afobada. Olhou pelo quarto. Embaixo da cama. Dentro dos armários. Não havia nada. A constante expectativa de encontrar a fonte de seu desespero era seguida pela interminável decepção.

Até que não mais.

Pela noite daquele mesmo dia, tudo mudou. Suzanne comeu a mesma janta insossa de sempre. Sentou no sofá para assistir a mesma novela. E a presença retornou. Só que dessa vez, tinha corpo e tudo mais. Dentes. Garras. Uma pelagem negra e arrepiada que parecia invocar as próprias trevas. Olhos acastanhados que abrigavam selvageria. Um rosnado amedrontador. Uma aura poderosa que não era desse mundo.

Ele surgiu do corredor, em passos silenciosos e confiantes, na atitude de um predador que embosca a presa. Era uma versão monstruosa de um cão. E o pior: Suzanne se lembrava dele.

Intermináveis latidos. Era isso que ela lembrava. Um cachorro desgraçado, vagabundo, que não parava de latir. A mesma coisa, dia e noite. Tinha sido décadas atrás. Ela reclamou com a vizinha que era dona dele várias vezes, mas ela se recusava a tomar uma atitude. Dizia que cachorros eram assim mesmo. Que ele só era um pouco mais agitado. Que a criança gostava demais do bicho para dar embora. Tudo isso e o sossego de Suzanne sendo cada vez mais arruinado.

Até o dia que ela mesma tomou uma atitude. Uns pedaços de carne, um pouco de veneno. Suzanne deu para o cachorro sem hesitar, e ele, na inocência, se alimentou sem desconfiar de nada. Simples, rápido e prático.

No mesmo dia, ele começou a ter convulsões. A família não conseguiu levar o animal de estimação para o veterinário a tempo de salvá-lo. Mesmo se o tivessem feito, o tratamento provavelmente seria caro demais para eles pagarem. A criança chorou muito, mas Suzanne nem se sentiu mal. Aquele tipo de coisa acontecia, as pessoas tinham mesmo que se desapegar do que só dava trabalho e incômodo. Pelo menos era isso que ela pensava.

Nunca ninguém descobriu o que ela fez. Havia suspeitas, é claro, mas visto que ela não era a única a se incomodar com o bicho, não havia o suficiente para fazer nenhuma acusação. Mas o cachorro sabia. E ele voltou, para demostrar tanta piedade quanto Suzanne tinha demonstrado a ele.

Entre investidas cruéis, mordidas profundas e o seu sangue se espalhando pela sala, Suzanne só teve tempo de pensar que um pouco de veneno não tinha valido a pena para colocar em jogo a sua vida.

Marilene tinha dito que nada dali seria mal. Talvez tenha percebido que diante de algum conflito, Suzanne devia ser o mal. Decidiu não intervir, desse modo sem se colocar no caminho do espírito, que devia estar com a razão. A assassina acabou pagando pelo pecado.


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