Reminiscência escrita por Mileh Diamond


Capítulo 1
Capítulo I


Notas iniciais do capítulo

A fic se passa em 2011, logo três anos antes do anime. As cenas em itálico são flashbacks que datam desde a década de 1970 até o início dos anos 2000. Se preparem pra muito flashback :V

Boa leitura!!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/784768/chapter/1





I won't let you drown

When the waters pull you in

I'll keep fighting, I'll keep fighting

The rain's gonna follow you wherever you go

The clouds go black and the thunder rolls

But I see lighting

I see lightning



 

 

Yakov havia empacotado roupas para uma viagem de apenas um dia.

Pensando melhor agora, a reserva do hotel era um excesso quase desnecessário. Ele poderia muito bem ter pego dois voos de ida e volta no mesmo dia e economizado rublos preciosos. Mas ele já estava numa idade que se preocupar com o futuro era besteira. Felizmente, os anos de guardar cada moeda temendo não ser o suficiente para comprar pão seco ficaram para trás.

Ele só tinha um compromisso de algumas horas em Moscou. Talvez minutos. Quem sabe ele nem tivesse a coragem de entrar no lugar. Ele só precisava de um minuto para dizer "adeus".

O rinque em que ele patinou e lecionou por anos havia sido comprado e seria demolido. Mais de cinco décadas de história e tradição na patinação artística reduzidos a pó para abrir espaço para um estádio de hóquei maior e mais moderno. Tsk.


Ele não tinha nada contra jogadores de hóquei. Havia convivido com eles por anos e só conseguira permissão para estar ali em razão de conexões na área. Isso não mudava o fato de que estava frustrado e desolado. Depois de tudo que eles fizeram pela CSKA como atletas e treinadores, depois do apelo quase humilhante que ele, Irina e outros representantes da federação fizeram às autoridades para manter o espaço intacto... Não adiantara de nada. A história deles não valia nada.


Yakov não gostava de admitir, mas ele era um homem muito dependente do passado.

Aquela dependência o trouxera até ali, à frente do velho rinque. Paredes pintadas de cinza, as janelas de vidro sujas, o pequeno jardim que fora colocado depois que Yakov já estava em São Petersburgo. Era dolorosamente nostálgico, principalmente quando tinha Lilia ao seu lado.

 

O seu plano inicial era vir sozinho, mas Lilia acabou se oferecendo para acompanhá-lo. "Para garantir que você não se rebele e jogue um Molotov em alguma repartição pública", foram as palavras dela. Ele suspeitava que, entre os dois, ela era a mais inclinada a preparar e atirar o Molotov em represália a venda do rinque. Ela também tinha ligações muito fortes com a CSKA.


Eles ficaram talvez dez minutos em frente à porta esperando algum sinal. Algo divino, quem sabe. Qualquer coisa que os fizesse tomar coragem e encarar os fatos: tudo aquilo teria um fim um dia.

— Eles te deram a chave? - foi a pergunta feita por Baranovskaya com apenas algumas gotas de ceticismo. A insistência de Yakov para aquele evento deve ter sido desgastante para qualquer que seja o responsável por aquele rinque agora.


— Sim. - o velho técnico respondeu retirando o molho de chaves do bolso do casaco. Tsk, eles nem se preocuparam em mudar a fechadura ao longo dos anos. - Se não tivessem, eu teria arrombado mesmo assim.


— Hm. - ela não estava nem um pouco impressionada. - Nós seríamos presos por invasão de propriedade.

Ele sorriu minimamente para a ideia. Era engraçado como mesmo depois de tudo que eles haviam brigado e com tantas feridas abertas, ela ainda usava o pronome "nós". Reconfortante, também.


— Pelo menos a comida seria de graça. - ele comentou assim que abriu a porta, indicando com a mão o caminho livre.


Lilia entendeu mesmo sem palavras, tomando a iniciativa para entrar primeiro naquele depósito escuro e úmido de lembranças.


Ela ainda se lembra da primeira vez em que entrou naquela sala, uma garotinha emburrada que só estava ali por um capricho de seu professor de dança. Se apenas a pequena Lilia soubesse que passaria os próximos trinta anos entrando e saindo por aquelas portas, talvez ela tivesse se atentado mais aos detalhes.


A recepção parecia parada no tempo. O mesmo piso, a mesma pintura nas paredes, o mesmo balcão de madeira. Ela tinha a sensação de que, se esperasse apenas alguns minutos, uma secretária enérgica e sorridente apareceria para lhe dizer as últimas alterações no cronograma diário.

Georgi definitivamente puxara à mãe no quesito "drama".


 

  - * -


Se havia um hábito que Melaniya nunca quebraria, era o de fazer tarefas de escola em horários inapropriados.

Lilia, do fundo de seu coração, não se importava em encontrá-la afundada com a cara nos livros enquanto deveria estar organizando papeis e atendendo telefonemas na recepção. Entre o trabalho de secretária, a faculdade de administração e a carreira de patinadora, Lilia ficava surpresa por vê-la com tempo livre para sair e se divertir como uma moça normal. Ela nunca teve essa habilidade.

Foi por isso que ela estranhou encontrar Melaniya prestando completa atenção em seu trabalho e não em exercícios de contabilidade durante o expediente. O olhar entristecido e um tanto úmido parecia muito melancólico para uma análise de planilhas, também.

— Boa tarde, Lana. - Lilia disse chamando a atenção da moça. - Algum problema?

— Não. - a morena disse fungando enquanto procurava os papeis que deveria entregar a Lilia. - Sergei terminou comigo.

Lilia teve que conter um revirar de olhos. Era o terceiro garoto naquele mês.

— Já falei que não deveria sofrer por meninos, Lana. Não valem a pena.

— Mas eu quero um marido! - Melaniya reclamou jogando as mãos para o alto em exasperação. - Duas das minhas colegas de turma já casaram. Daqui a pouco são três, quatro, cinco e nem namorado eu tenho. Eu vou fazer 23, treinadora Linya. Eu estou ficando velha.

— Velha? Sei. Nesse caso eu sou uma múmia. E isso você não vai falar na minha cara. - Lilia disse com um sorriso pequeno. - Você é uma moça independente, bonita, estudiosa e que não precisa ter pressa para se casar. Quando aparecer o homem certo, vai valer a pena a espera.


— Hum. - aquilo não a deixou de toda feliz, mas significou uma melhora. - Espero que ele se pareça com Adrian Popovich da Spartak. Aquele lá eu não me importo de esperar uns dez anos... Não, mentira, eu espero sete, no máximo!

A outra só conseguiu rir.



  - * -

 

 

Por pouco Yakov não teve força nos braços para ligar as luzes no rinque.

Eram interruptores enferrujados numa caixa de força mais do que velha. As lâmpadas eram mais recentes, mas nada muito inovador. O problema de uma estatal num país em crise é que as coisas só funcionam por extrema força de vontade. Irina e Anatoly haviam feito um trabalho exemplar ao manter aquilo funcionando com tão poucos recursos.

Para ser sincero, ele não precisava de luzes para andar naquele lugar. Conhecia aquilo de olhos fechados. Cada banco, cada vestiário, cada sala de dança. Sabia de todos os esconderijos usados pelos adolescentes para beber ou dar uns amassos. O pior era que ele não tinha muito direito de repreensão. Yakov só não aprontou mais quando garoto por falta de tempo.


Garoto.

Quando foi a última vez que ele fora chamado daquele jeito?




  - * -


— Está fora de cogitação. - o homem disse em tom grave, sem sinal de desistência. - Não pense que nós vamos deixar você fazer o que quiser só porque ganhou uma medalha olímpica, Sr. Feltsman. A CSKA tem uma hierarquia rígida e irá continuar como está.


Yakov teve que morder a língua para evitar uma colocação mais ofensiva.

— Nosso técnico nos educou sob um método diferenciado, mas que apreciamos muito. Nós queremos treinar os mais novos com a mesma linha, sem interferências externas. Uma mudança repentina seria um choque muito grande.

— Garoto, quem você pensa que é? - o superintendente disse já sem paciência. - Nós não vamos deixar a patinação artística na mão de um bando de crianças. É um departamento muito importante para ser administrado por, sei lá, três adolescentes? Vocês vão afundar o nosso clube. Não seja impetulante.

Yakov tinha 25 anos. Ele patinava desde os seis, ensinava crianças desde os 18, ganhou ouro em Grenoble aos 23 e estava casado com uma solista do Bolshoi. Ele não era criança e seus amigos também não eram. Treinador Andrei deixou um legado que eles pretendiam honrar até o fim, não importasse o que os outros diriam. Ele tinha vontade de mandar seus superiores à merda.


Mas ele não era criança. E, por isso, ele usou palavras mais educadas.

— Só precisamos de uma chance. - foi seu pedido final. - Nos dê duas temporadas sozinhos. Se não conseguirmos nos reorganizar até lá, eu assumo a responsabilidade e vocês podem tomar todas as medidas que acharem cabíveis.


Ele foi encarado de cima a baixo como se sua mera presença na sala fosse uma ofensa. Em meio ao suor ansioso de suas mãos, Yakov sentia o metal frio da aliança. Era a lembrança de que havia uma pessoa em especial que ele não podia decepcionar. Ao mesmo tempo, era a pessoa em que ele mais confiava para ficar ao seu lado caso o pior acontecesse com aquele rinque.


Talvez o homem fosse sádico o suficiente para esperar aqueles dois anos com a expectativa de ver os patinadores na lama, pois ele sorriu em deboche e disse:

 

— Está bem, podem brincar de técnicos pelas próximas duas temporadas. Mas se  nenhum daqueles alunos alcançar sequer o quinto lugar nos próximos jogos, vocês estão na rua, Feltsman. E eu garanto que nem Dynamo, Spartak ou qualquer outro clube vai receber vocês.

Yakov engoliu em seco, mas assentiu, em concordância silenciosa com aqueles termos. Eles ganharam uma chance. Eles aproveitariam.

Estava oficialmente inaugurada a carreira de Yakov como treinador.


 

  - * -


 

 

O barulho dos sapatos de Lilia produziam um eco um tanto solitário naquele ambiente. O som abafado dos saltos costumava ser mais rápido, mais apressado, quando ela chegava atrasada para ministrar uma aula vinda direto de ensaios do Bolshoi. Talvez ela tenha dado mais de si do que fosse realmente necessário para alunos mais interessados em patinação do que dança, mas ela nunca reclamou. Ela devia muito ao gelo. Ela tinha que retribuir.

 

Ver aquela velha pista fora de atividade, sem nenhuma superfície gélida que possibilitasse a execução de figuras ou giros, trazia uma sensação estranha em seu peito. Uma angústia misturada com aceitação. Peso na consciência, talvez.


Ela sentia falta do tempo em que não tinha medo de patinar.




  - * -




— Denis, eu vou contar até cinco. - Lilia disse à beira do rinque com cara de poucos amigos. - E é melhor você estar fora do gelo quando eu acabar.

— Não! - o garoto desafiou com seus dez anos de teimosia. - Você não manda em mim!

— Ah, hoje ele está corajoso. - Irina disse ao lado de Lilia. - Deniska, seja bonzinho, por favor. A gente precisa do gelo limpo antes de sairmos pra dançar.

— Um. Dois. - Lilia ajustou o laço de seus patins sem desfazer o contato visual com seu inimigo. - Três. Quatro.

— Eu não vou sair! - Denis afirmou mais uma vez, mas a ansiedade crescendo dentro de si com a imagem macabra de Lilia o encarando. Ela dava muito medo de cabelo solto.

Quatro e meio. - Lilia semicerrou os olhos ameaçadoramente. - Não me obrigue a correr atrás de você, malenkiy.

Denis tinha uma noção tão irrisória do perigo que a ideia de Lilia vindo atrás dele era mais divertida do que assustadora.

— A senhora não é mais rápida do que eu. - ele disse com um sorriso ingenuamente diabólico.

Senhora. Agora já era ofensa.


— Você tá tão frito, Denis. - Lilia resmungou dando impulso sobre os patins. - Eu vou te esticar tanto no balé que você vai crescer meio metro em uma aula, ouviu?! Você vai sair daquele estúdio parecendo um espaguete e eu vou rir da sua dor!



Ela precisou da ajuda de Irina para cercar a praga, mas os quatro minutos de corrida no gelo valeram a pena quando ela finalmente pegou o meliante. Ela se sentiu mal pelo puxão de orelha horas depois, mas não se arrependeu de torturá-lo no balé. Agora o patinador juvenil com a melhor flexibilidade da União Soviética estava na CSKA.

 

  - * -


 

 

Yakov imaginou que iria caminhar horas e horas afim por aquele estádio vazio até se conformar com seu destino. Mas era um espaço grande e ele sequer tinha acesso a todos os ambientes para se despedir apropriadamente. No final, ele preferiu apenas se sentar num dos bancos da primeira fileira e observar o grande vazio que já foi seu lugar favorito.

 

Ele conhecera Lilia em uma das salas de dança que estavam trancadas. Ele a pedira em casamento na arquibancada oposta a onde estava agora. Ele conhecera sua filha adotiva à beira do rinque, a uma distância de talvez dez metros de onde estava sentado.

 

Eram apenas alguns exemplos de quantas memórias boas ele tinha daquele lugar.


Lilia andou mais que ele, decidindo por uma lenta e completa caminhada ao redor da pista de gelo. Mas acabou se cansando também, optando por se sentar ao lado do ex-marido para que pudessem observar o nada juntos.

 

Nenhum dos dois queria dizer nada. Quem sabe ambos ainda estavam no processo de aceitar a ideia. Tantas pessoas já passaram por suas vidas, eles passaram por tantos lugares, viveram todo tipo de experiência boa ou ruim. Só aquele rinque deveria ser para sempre, mesmo que nenhum dos dois o frequentasse mais.

 

Era um pensamento egoísta, afinal nada era para sempre. Nem o casamento deles foi.

 

Foi Yakov que resolveu falar primeiro:

 

— Você sente falta de alguma coisa daquele tempo?

 

Óbvio que ele começaria pelas perguntas difíceis, mas óbvias. É claro que ela sentia falta, mas restava dizer do que. Restava saber a qual tempo ele se referia.


— Você terá que ser mais específico. - ela acabou dizendo. - "Aquele tempo" durou mais de trinta anos.

 

— A partir do ano em que nós assumimos a direção da equipe. - ele respondeu. - O ano em que tivemos que crescer de verdade.



Era ainda uma data remota, mas ela entendeu o parâmetro. Yakov não se referia a época em que eles eram apenas umas seis ou sete crianças dançando ao som de vinis ilegais, sem nenhuma preocupação concreta com o futuro. Era estranho pensar que no dito ano em que eles tiveram de crescer, Lilia já era uma mulher casada. Fazia parecer que a decisão de um matrimônio foi infantil e impensada, mas ela entendia o que ele quis dizer.

Em 1970, eles tiveram que crescer para treinar os futuros patinadores da CSKA.


— Sinto falta de tanta coisa. - ela disse após um tempo. - Sinto falta... de quando a gente levava as crianças para passar os domingos de calor às margens do Moskva e tomar sorvete.

— Elas não paravam quietas. - ele disse sorrindo com a memória. - Lembra a vez que empurraram Anatoly na água e ele estava com uma camisa nova?

— Lembro. - ela sorriu também. - Eu ri tanto daquilo, depois até me senti mal. Tolya tinha o pulso menos firme entre nós quatro.


— O que não fazia muita diferença no final. - eles eram treinadores rígidos, todos eles. Mas sabiam ser flexíveis quando a situação pedia. - Eu sinto falta de como as crianças daquela época obedeciam mais.


— Você acha? - ela perguntou legitimamente curiosa. - Para mim, são sempre crianças. Barulhentas, irresponsáveis e com uma visão muito mais positiva do mundo.

— Não, tem diferença. - ele discordou com o olhar longe. - Acho que naquele tempo nós tínhamos mais medo das coisas, do que podiam fazer conosco se quebrássemos regras demais. Hoje temos pirralhos de onze anos querendo fazer um quad.

— Quem seria? - ela estava um tanto desatualizada sobre os últimos alunos de Yakov. Ela não trabalhava de verdade com eles desde que Victor tinha 18.

— Um garoto chamado Yuri Plisetsky, entrou ano passado. Muita perseverança e talento, mas se irrita por qualquer coisa. - ele arriscou um olhar para ela. - Ele me lembra você quando nos conhecemos.


Lilia não tinha certeza se aquilo podia ser um elogio. Ela, aos 14 anos, só sabia pensar em balé e era péssima fazendo coisas de adolescentes normais. Sair, brincar, contar piadas... Era tudo praticamente novo para ela antes de conhecer Yakov. Se ela já era séria naturalmente durante sua juventude, imaginava o quão diferentes as coisas seriam se não tivessem se conhecido.

Mais uma vez aquele silêncio. O silêncio não combinava bem com aquele rinque. Sempre foi um lugar com muito barulho, muitas pessoas, muitos risos. Muito choro, também.


Ela não gostava de pensar em todos que já choraram ali.



— Outra coisa sobre essa nova geração é que eles são mais independentes. - Yakov voltou a dizer. - Não precisam de  nossa opinião para todas as decisões. Às vezes é um problema, mas eu acho positivo.


— Acho que foi apenas uma coincidência que acabamos com alunos  tão dependentes naquela época. - ela disse fazendo uma lista mental dos jovens que treinou. É, eles eram próximos demais para os padrões. - Sinceramente, acho que a única que tinha uma família presente era Melaniya. O resto sempre faltava um pai ou estava longe de casa.

— E justamente esses não desapegaram de nós até hoje. - ele franziu o cenho, hesitando sobre dizer ou não a próxima parte. - Quem você acha que precisa mais um do outro: as crianças de nós ou nós deles?

Mais uma vez, perguntas difíceis demais para um momento tão solene.

Se ela olhasse para os rostos que mais marcavam suas lembranças, poderia dizer com certeza que teve uma grande influência em suas vidas. Eles não eram os mais frágeis, mas ainda foram os que mais receberam cuidados, por um motivo ou outro. E quanto mais cuidados recebidos, mais eles têm dificuldades em se distanciar.


Foi assim que Yakov conseguiu como alunos os filhos de alguns de seus antigos pupilos. Parecia uma lavagem cerebral para quem via de fora, mas para eles, era como uma tradição de família. Eles confiavam em Yakov para cuidar de seus filhos porque foram bem cuidados.


Georgi havia sido o primeiro, seguido de Alexander, Victor e depois Mila. Todos de uma linhagem de atletas de respeito. Todos parte da família. Era engraçado como os pais deles costumavam ser tão unidos e, hoje, seus filhos seguiam a mesma tendência.


É uma pena que a amizade dos pais não sobreviveu intacta ao tempo. Tudo por causa dela.

Em resposta ao silêncio de Lilia, Yakov retirou algo do bolso do casaco.


A princípio, ela achou que fosse um cartão de algum tipo. Mas então ela viu contornos de pessoas e se deu conta de que era uma fotografia.


Yakov amava fotografias, deveria ter milhares delas em casa, guardadas em inúmeros álbuns. Lilia ficou com alguns após o divórcio, os que ela era muito apegada para abrir mão.


Ela não se lembrava de ter visto aquela foto uma vez na vida, mas ela reconhecia os atores. Uma festa de aniversário. A aniversariante, Lidya Hackzell, sorria sem uma preocupação no mundo. Ao seu lado, Anett-Lyubov e Anfisa. A primeira era filha de Lilia e Yakov, a segunda era namorada de Lidya. Era difícil na época, mas elas conseguiam se manter seguras. Depois tinham Milan Navachine e Markus Babichev atrás. O primeiro também podia ser considerado namorado de Lidya. Lilia mentiria se dissesse que alguma vez entendeu como aquela relação funcionava. No canto direito, os alunos mais antigos de Yakov: Denis e Melaniya. Todos sorrindo. Todos vivos.


Para uma cena feliz, aquela foto evocava lembranças tristes demais.



— Yakov... - ela perguntou incerta das intenções de seu ex-marido.


— Você lembra, não? - ele perguntou sem olhar para ela. - O aniversário de 19 anos da Lidya. Eles fizeram a festa no refeitório.


Ela lembrava, com detalhes dolorosamente vívidos. O bolo, a decoração feita às pressas, o vestido que ela dera de presente...




Se eles ao menos pudessem parar o tempo naquele dia, quem sabe evitassem tantos problemas.



  - * -



— Gente, não precisava de tudo isso. - a menina disse com as bochechas coradas, mas não conseguindo conter o sorriso. - Era eu que deveria estar arrumando essas coisas...

— Mas aí não ia ter festa nenhuma! - Melaniya reclamou colocando o bolo sobre a pequena mesa. - Seria o terceiro ano sem bolo, Linka. Denis, você pegou as velas?

— Estão aqui. - o rapaz disse chacoalhando a embalagem enquanto vinha da cozinha. - Estão acabando, temos que renovar o estoque.

— Você merece tudo isso, Lidochka! - Anfisa disse abraçando a loira, o sorriso mal se contendo em seu rosto. - Porque você é a melhor patinadora, a melhor amiga, a melhor namorada, a melhor...

— Dá pra ser mais rápida, Anfisa? A namorada não é só sua. - Milan disse revirando os olhos, mas também sorrindo.

— Cala a boca, Milan. - Anfisa fez uma carranca por meio segundo antes de voltar a sorrir. - Enfim, você é a melhor tudo, Lidya. E por isso você merece essa e mais quinze mil festas com direito a muito doce e vodca.

— Nenhuma vodca vai entrar nesse recinto hoje. - Lilia declarou ao entrar na sala, sendo seguida por Anett e Markus carregando sacolas de compras. - Vocês têm direito a vinho, que eu comprei. Quem tiver menos que 18 toma limonada.


— Isso é injusto! - Anett reclamou com um bico. - A gente fez os cheburaks! Eu quero vinho!

— Eu faço 18 daqui a alguns dias! - Markus tentou argumentar, mas sabia que não venceria. Sua cara de nerd não ajudava.

— Não vão me convencer. - Lilia disse sem hesitar. - Anushka, vá chamar o seu pai e peça para ele trazer a câmera.


— Tá bem. - a garota não estava de todo satisfeita, mas logo se ocupou com outro interesse. - Vem, Markus, a gente ainda tem que pegar os discos no carro.

Saídos os dois adolescentes do lugar e os outros ocupados com a organização daquele pequeno evento, finalmente Lilia teve tempo de dar os devidos parabéns.

— Feliz aniversário, Lidya Antonovna. - a coreógrafa disse com um sorriso singelo enquanto abraçava sua aluna. - Te desejo muita paz, alegria e que você continue a ser essa moça inteligente e gentil que nós amamos. E lembre-se que, enquanto estivermos aqui, você sempre poderá contar conosco.

Os olhos esverdeados da patinadora brilharam em gratidão e felicidade ao ouvir palavras tão doces. Ela admirava tanto seus professores, amava tanto seus amigos. Fazia esquecer um pouco a saudade que tinha de casa, mas com os anos, aquele rinque também se tornara sua casa.

— Obrigada, Madame Lilia. Eu estou tão feliz! - ela disse não contendo alguns pulinhos enquanto ria, exibindo o sorriso de coração radiante que era sua marca. - Eu queria que todos os dias fossem como hoje. Vocês são a melhor família que eu poderia ter.

— Fico feliz que pense assim, mas não se esqueça de ligar para sua avó ainda hoje. - a mais velha lembrou. - Pode usar o telefone do escritório, se quiser. Ela deve estar sentindo saudade.

— Sim, sim. - ela concordou com um aceno, fazendo a coroa de flores azuis em sua cabeça pender um pouco para o lado. Mais um dos caprichos de Anfisa.

Foi nessa hora que Anett e Markus entraram respectivamente com vinis e um toca-discos em mãos. Logo atrás veio Yakov, com sua insubstituível Kodak e um raro sorriso nos lábios.

— Muito bem, qual vice-campeã nacional está fazendo aniversário hoje?


 

  - * -


 

 

Era um dia feliz e eles estavam felizes. A felicidade combinava com cada um daqueles rostinhos tão jovens, tão cheios de sonhos.

 

Mas lembrar dos sorrisos doía muito.

 

— Seria a última festa com todos eles juntos. - Yakov continuou falando sozinho, os dedos passeando por cada rosto na fotografia. - E a gente sabia disso porque Denis já estava planejando sair do país. Ele estava se despedindo em silêncio.

— Eu lembro. - ela disse mais por querer evitar o silêncio constrangedor do que por vontade de falar. Sabia muito bem qual rumo aquela conversa tomaria.

Se aquela fosse outra ocasião, com outra história, um passado diferente do que eles tiveram; Lilia contaria sobre o que ela lembrava. Ela falaria de como Milan manchara a blusa com cobertura de bolo, riria de como Yakov fizera uma cara feia de ciúmes quando Markus e Anett dançaram um tango de brincadeira, comentaria sobre como Victor puxara o sorriso de Lidya. Eram divagações felizes e que pretendiam esquecer a verdade trágica: Denis não foi a única razão daquele grupo ter se separado.

Verdade essa que corroía Yakov por dentro.

Ele não podia esquecer, nenhum deles podia. Mas aquele fantasma sempre o perseguiria. Alunos vinham e alunos iam, mas ele sabia o paradeiro de todos. Não podia dizer aquilo sobre aquela foto e isso machucava. E vendo aqueles sorrisos apagados ali, na foto em suas mãos, esforçando-se para permanecerem brilhantes frente à passagem do tempo, Yakov não teve forças para conter as próximas palavras:



— Foi culpa minha. - ele disse com amargura, numa confissão vestida de acusação que só ele via. - Eu deveria ter cuidado melhor delas, Lilia. Eu deveria ter protegido as minhas meninas.




As linhas no rosto de Lilia se suavizaram em compaixão e desolação. Era preocupante Yakov ainda pensar assim, depois de quase trinta anos. Depois de tudo que eles já sofreram.



— Yakov...



— Ela tinha tantos planos... - ele murmurou quase que para si mesmo, olhos fixos na foto de Anfisa Nikiforova como se ela guardasse as respostas para todas as perguntas que os rondaram desde 1982. - Ela iria tão longe. Lembra quando ela disse que seria a primeira mulher a completar um triple axel? Eu nunca ri disso, porque eu acreditava nela. A determinação dela para conseguir o que queria era sem igual. Se ela ao menos tivesse mais tempo... Se eu tivesse ido com ela...



— Não fala isso, por favor. - ela disse segurando os ombros do ex-marido, soando tão machucada quanto o próprio. - Não foi sua culpa, Yasha. Não foi culpa de ninguém. Nós fizemos tudo que pudemos na época. A polícia procurou pela cidade toda, até no país todo... Ninguém podia prever que aquilo aconteceria com Anfisa.


Ele balançou a cabeça em negação. Nunca aceitaria, não importasse o que dissessem ou com quem falasse. Na mente de Yakov, ele era o único responsável pelo que aconteceu e o único que merecia carregar aquele fardo apesar das décadas.



Porque ele ainda se lembrava da última vez que vira Anfisa naquele rinque. Lembrava do último aceno que ela deu antes de cruzar a porta. Lembrava dela sorrindo...


Ele deveria ter insistido.




 

  - * -


 

— Estou de saída, treinador. - Anfisa disse enquanto passava pelo escritório do técnico já com a mochila nas costas. - Treinadora Lagutina me mandou entregar as chaves do vestiário, aqui estão.


Yakov recebeu as ditas chaves e olhou para o relógio na parede. Era mais tarde do que ele pensava, ele se distraíra com os papeis.

— Já está tarde, Anfisa. Não quer esperar até acabarmos aqui? Podemos te deixar em casa.

— Não, obrigada, não quero atrapalhar vocês. - ela disse balançando a mão em descaso. - E eu sei que vocês demoram até altas madrugadas com essa burocracia, vou acabar dormindo na arquibancada.

— É mais seguro. - ele disse em tom de advertência. - Moças não deviam andar sozinhas à noite.

— O senhor se preocupa demais. - ela disse rindo antes de acenar com a mão. -  Au revoir, treinador Feltsman. Te vejo na segunda.

Yakov não teve nem tempo de contestar antes dela se virar e ir embora a passos rápidos.

Foi a última vez que ele viu qualquer vislumbre daquelas mechas prateadas.


  - * -



Eles não a viram na segunda. Nem na terça, nem na quarta. Eles nunca mais a viram. Anfisa Nikiforova havia desaparecido.


Deram a falta dela já no dia seguinte, quando a procuraram no apartamento que dividia com outras moças que não eram patinadoras. Anfisa sequer aparecera na noite anterior.


Foi um verdadeiro caos. Eles acreditavam que já haviam passado por todo tipo de problema como professores, mas nunca haviam lidado com algo daquele calibre. Eles não tinham nem uma pista sobre o que poderia ter acontecido com ela. Fuga? Sequestro? Morte? Era assustador só de pensar e até hoje eles não tinham nenhuma resposta. A estrela mais brilhante da CSKA se apagou e eles não tiveram nem um corpo para velar.

Tudo aquilo eles viveram naquele rinque: as investigações policiais, a imprensa, as ameaças dos Nikiforov exigindo alguma explicação, as lágrimas dos alunos.

Lilia tinha uma memória muito vívida das lágrimas e lembrar daquela época lhe trazia mal-estar. Talvez seja por isso que ela seja tão avessa à ideia daquela conversa: ela não queria reviver aquelas cenas dignas de um filme de terror. Não queria se lembrar de tudo que lhes fora roubado naquele ano.

E o que veio depois...


— Eu já aceitei há muito tempo que eu não tinha como salvar Anfisa. - Yakov declarou após um longo tempo em silêncio, perdido nas próprias memórias. - Mas eu poderia ter feito mais pelas meninas, Lilia. Se eu tivesse dado a atenção necessária, Lyubov não teria criado tanta mágoa desse lugar a ponto de sair do país. Ela teria ficado perto de nós.


— Você não afastou a Anett, Yakov. Ela viu um outro mundo e pediu permissão para se aventurar. Nós deixamos porque vimos que ela ficaria melhor assim. - dizer que Lilia não sentia falta da filha era hipocrisia, mas ela nunca a julgaria por querer deixar a Rússia. Ela mesma já considerou a ideia vezes demais para ser considerada uma exímia patriota. - É verdade que, em outra situação, talvez ela não se aposentasse tão cedo por conta das inseguranças de representar o clube. Mas não foi você que a obrigou a patinar no lugar de Anfisa. E em nenhum momento ela te acusaria do mesmo, porque Anett sabe que você a ama muito.

Eles já haviam conversado sobre aquilo há tanto tempo, um tópico injustamente tratado como argumento deturpado nas brigas do divórcio. Quem assumira a grande e silenciosa responsabilidade de trazer medalhas no lugar de Anfisa foi Anett-Lyubov Feltsman, a filha dos dois. Os superiores queriam resultados e a melhor aposta era ela. As performances instáveis tinham que ser melhoradas à força e os saltos irregulares, corrigidos às pressas. Não havia discussão. Eles não se importavam se seria muita pressão para uma menina de 15 anos.

Foi desgastante, mas ela superou. Anett cumpriu as expectativas que todos tinham dela: alguns bronzes, míseras pratas, um único ouro em seu último ano. Ninguém esperava que ela fosse melhor do que Anfisa e, de fato, ela não foi. Os resultados aliados ao peso do sobrenome Feltsman foram suficientes para possibilitar competições no exterior e o seu encantamento com o mundo além da cortina de ferro. Ela nunca se contentaria em continuar trancada na Rússia depois das coisas novas que viu, por isso eles a apoiaram quando quis ir embora. Yakov podia sentir imensa falta dela, mas nunca se perdoaria por prendê-la a um lugar que a entristecesse.

Foi a mesma razão pela qual ele perdeu outra aluna.

— Eu ainda poderia ter cuidado melhor de Lidya. - ele começou, o cenho franzido enquanto voltava a olhar para a foto. - Ela...

— Pare. - o tom que Lilia usou não foi ameno dessa vez. Por muito pouco não podia ser considerado hostil. Ameaçador, talvez. Seu olhar também perdera boa parte da suavidade de momentos atrás. - Eu sei exatamente o que você vai dizer, Yakov. E não importa o que você pense, nada muda o fato de que o erro maior foi dela e não seu.


— Se ela tivesse recebido a ajuda necessária, não teria tomado tantas atitudes questionáveis. - ele argumentou sério.

— Se ela tivesse...! - Lilia teve que se interromper para evitar uma colocação mais arisca. Pelo bem da abalada amizade que eles ainda tinham e da saúde de ambos. Nenhum deles estava na idade de brincar de sobe e desce com a pressão sanguínea. - Eu não vou discutir com você por causa disso, Yakov. Não de novo.

— Entendo os seus motivos. - não havia sarcasmo naquela frase, mas um pouco de chateação ainda podia ser ouvida. - Mas você não pensa no que podia ter sido diferente? Em como as coisas seriam se Lidya tivesse ficado em Moscou e se recuperado?


Ela já pensou, mais vezes do que era saudável. Eram possibilidades tanto belas quanto terríveis, cada uma levando para um caminho nebuloso e incerto.

E a constante angustiante que se repetia em quase todas...


— Nós não teríamos Vitya. - ela disse com pesar, mas sincera. - Pelo menos, não o que temos hoje.

Yakov não respondeu, mas o silêncio tinha ares de concordância. Ele não tinha muitos argumentos contra aquilo, infelizmente. Por mais que sonhasse acordado com realidades alternativas onde conseguia salvar todos os seus alunos e eles crescessem felizes, era amarga a constatação de que a lenda viva Victor Nikiforov foi fruto de inúmeros erros.

Ele ainda se lembra do dia em que se conheceram.



 

  - * -


Era 1997. Yakov já estava em São Petersburgo desde 1996 e não podia dizer com sinceridade que se acostumara ao novo rinque.


Era maior, mais novo, com salas de melhor qualidade; mas não era a CSKA. Feltsman não tinha certeza do que mais sentia falta: de Lilia ou do seu antigo emprego. Mas ele aprenderia a lidar com a saudade. Aguentar a saída de Anett de casa já foi um ensaio e tanto.


Seu dia seguia normal no novo centro de treinamento até ele ouvir aquela voz tão familiar, mas que se tornara tão desconhecida com os anos:

— Treinador Feltsman?

Ele parou de observar o treino de um aluno recém-transferido para se virar com o cenho franzido, não acreditando nos próprios ouvidos.

Mas seus olhos não mentiam. O cabelo loiro pálido e cortado até o queixo, a postura perfeita de bailarina que foi resultado de muitas correções de Lilia, o sorriso em forma de coração que agora contava com umas gotas de amadurecimento. Ela mudara, mas Yakov não esquecia o rosto de um aluno daquela época tão facilmente. Principalmente aquela aluna.

Não era o que ele queria dizer (ele nem sabia se queria dizer alguma coisa para aquela garota), mas ele acabou suspirando e a cumprimentando com um simples:

— Olá, Lidya Antonovna.

Ela ampliou o sorriso e se aproximou a passos mais decididos, os dedos apertando a bolsa de mão como se estivesse ansiosa. Talvez só agora ela tenha se dado conta de que era a primeira vez que se encontravam em mais de dez anos. Yakov fingiu ainda não perceber a criança escondida timidamente atrás da barra da saia da mãe. Criança que ele já sabia o nome.


O cumprimento foi um aperto de mão educado e formal. Um pouco frio para a relação que eles costumavam ter e a confiança presumida, mas catorze anos mudam muito uma pessoa.

As mudanças são mais drásticas quando, durante nove desses anos, eles sequer sabiam se Lidya estava viva ou não.

Quando Anfisa morreu, pareceu ter levado Lidya com ela. A tristeza em que Hackzell se afundou ao perder a namorada foi inconsolável. Elas tinham planos, teriam uma vida juntos, os três: ela, Anfisa e Milan. Mas então Anfisa sumiu e Lidya não sabia o que fazer. Não sabia como aparecer naquele rinque todos os dias sem sofrer com as lembranças dela. Foi assim que ela pediu para sair da equipe e ninguém contestou. Ninguém a forçou a ficar, a tentar seguir em frente ali em Moscou. Também foi por isso que Anett passou a ser a aposta da CSKA mesmo sem experiência, pois depois de Anfisa, apenas Lidya conseguia se comparar em talento. Yakov entendeu que ela precisava de tempo para absorver o impacto e não insistiu.

Mas eles nunca imaginariam que ela iria desaparecer, também. Sem cartas, sem telefonema, sem novos endereços. Lidya se tornara uma incógnita entre 1982 e 1991. Para alguém que considerava a CSKA uma família, ela cortou os laços com uma facilidade tremenda. Os colegas de sua geração não receberam isso bem. Yakov e Lilia não julgaram, mas se preocuparam, principalmente quando resolveram buscar notícias sobre Lidya em sua cidade-natal e tudo que apuraram foi que ela não voltou desde a morte da avó, sua única parente viva. Por anos, eles tiveram o silencioso medo de que Lidya Hackzell tomara o pior caminho para se livrar da dor.

Por isso, foi uma felicidade enorme quando, numa manhã qualquer de 1991, em meio ao caos da dissolução da URSS; Anett ligara de São Petersburgo para dizer que encontrara Lidya.

 

O choque em saber que ela se casara com o irmão de Anfisa Nikiforova foi tão grande quanto.

— É tão bom te ver de novo, treinador. - Lidya soava sincera, o brilho nos olhos verdes genuíno enquanto revia seu antigo professor. - O senhor perdeu muito cabelo.

— Tsk. É só nisso que vocês reparam. - Yakov resmungou ajeitando o chapéu. A careca era culpa dos pirralhos e Lidya definitivamente já foi um deles.

— A primeira impressão é a que fica. - ela disse rindo, mas ficando séria logo depois e com o olhar mais empático. - Eu fiquei sabendo do seu divórcio. Sinto muito...

 

— Nós estamos bem, não é nenhum desastre natural. - ele disse soando, talvez, um pouco mal-educado, mas aquele tópico realmente o irritava. Ou machucava. Difícil dizer. - Você não veio aqui para uma conversa casual, suponho.

— É verdade. Eu queria te apresentar uma pessoa. - ela disse finalmente encorajando seu acompanhante a sair de seu esconderijo, que até agora permanecera em completo silêncio. Seria a primeira e única vez que Yakov o veria assim. - Diga "oi", Vitya.

A primeira coisa que chamava atenção era o cabelo. Loiro platinado, até os ombros. Os olhos eram azuis e brilhantes, cheios de curiosidade enquanto observavam o estranho como se fosse um ser mágico. As bochechas pálidas eram pintadas com sardas. Os lábios, ele puxara da mãe.

 

Não era a primeira vez que Yakov via Victor Nikiforov. Quando Lidya teve seu paradeiro descoberto em 1991, ela resolveu recuperar um pouco do contato com seus antigos professores. Ligações em feriados, uma ou outra carta em que ela contava as novidades. Eles nunca se encontraram em pessoa, culpando a agenda cheia e a distância entre as cidades. Yakov suspeitava que Lidya ainda tinha receio de visitar aquele passado.

Isso não a impediu de mandar fotos nas cartas, sabendo muito bem que eles gostavam desse tipo de recordação. Foi assim que eles tiveram o primeiro contato, se assim pudessem chamar, com Victor. Uma fotografia dele num balanço, outra dele se equilibrando sobre patins com a ajuda da mãe, outra dele ainda de colo. Lilia nunca escondeu que o achava um bebê muito feio. Ela sempre teve um favoritismo pelo filho dos Popovich, no final.

Fosse nas imagens ou ao vivo, Yakov só tinha uma única e agridoce opinião sobre Victor: ele era muito parecido com Anfisa Nikiforova.

 

— Oi. - Victor disse numa voz fina e tímida, pouco a pouco ganhando mais confiança. - Meu nome é Victor Mikhailovich Nikiforov. Eu sou patinador.

 

Yakov assentiu, já prevendo aonde aquela conversa iria. Mas, por enquanto, o assunto ainda era com Lidya.

— Em que eu posso ajudar vocês? - ele disse sem assumir coisas, mas já tendo uma ideia do pedido.

— Vitya patina desde pequeno e a professora dele disse que ele tem potencial para algo mais sério. - a mulher explicou calmamente, mas com uma expectativa velada na voz. - Eu também vi esse potencial, mas esperei um olhar externo para não soar como uma mãe orgulhosa. Quando ouvi que o senhor estava em São Petersburgo, pensei que valia a pena tentar pelo menos uma avaliação. E, se tudo der certo, eu adoraria que o senhor pudesse treiná-lo.

— Hm. - Yakov sabia sobre Victor patinar desde muito jovem, mas o talento nato era novidade. Nada muito surpreendente e ele estava disposto a dar uma chance como fazia a todos os ditos prodígios que batiam a porta, mas algo ainda lhe incomodava. - O que o pai dele tem a dizer sobre isso?


— Misha não tem nada contra. - a rapidez com que ela respondera soara como se tivesse ensaiado aquela resposta, como se ela mesma precisasse se convencer de tal. - Desde que não atrapalhe os estudos de Victor, ele pode patinar o quanto quiser.

Yakov semicerrou os olhos, mas não disse nada. Não seria hoje que se estressaria com a família Nikiforov novamente.

Seu olhar voltou-se para o assunto da conversa. Victor o observava com ainda mais expectativa que a mãe, os olhos azuis parecendo investigar e julgar cada canto de sua alma.

 

Se ele fosse um homem covarde que se recusasse a superar o passado, Feltsman apenas diria "Não" para o pedido e continuaria com a sua vida. Ele não era obrigado a treinar o filho de Lidya só porque ela era uma ex-aluna. Ele não era obrigado a treinar um garoto que lembrava tanto a jovem de quem ele não soube cuidar direito.


Yakov se abaixou sobre um joelho, apesar de suas juntas estarem piorando com os anos. Sempre preferiu ficar no nível das crianças para falar com elas. Parecia menos intimidante.

— Então, Victor. Posso te chamar de Vitya? - quando o menino assentiu, ele continuou. - Meu nome é Yakov e eu sou um técnico de patinação. Nós não damos apenas aulas aqui, nós treinamos atletas profissionais. Você tem ideia do quão sério é isso?


— Sim. - ele assentiu sem hesitar, parecendo ansioso por se mostrar crescido. - O senhor treinou a minha tia Anfisa. Eu quero ser igual a ela e ir pras Olimpíadas!

Yakov não esperava algo tão concreto vindo de um menino de nove anos. Crianças normais falavam em ser os melhores do mundo, de fazer saltos super difíceis, talvez de ganhar muitas medalhas. Mas ele aprenderia com o tempo que Vitya não era normal em vários aspectos.


— É um trabalho difícil. - ele avisou. - Vou precisar de toda a sua dedicação e, acima de tudo, disciplina. Significa estar aberto a críticas e conselhos, mesmo que você não goste. Está disposto a isso?

 

— Aham. - Victor disse assentindo animado, as mechas prateadas balançando suavemente com o movimento. - Eu vou ser o melhor patinador do mundo! E eu vou pras Olimpíadas!

 

Yakov não pôde evitar um sorriso com aquilo. No fundo, Vitya era como a maioria das crianças que ele conhecera. Enérgico, alegre, cheio de sonhos. Igual a uma certa patinadora que ele costumava treinar.


Yakov prometeu, naquele dia, que daria o seu melhor para levar Victor aonde Anfisa não conseguiu chegar.




  - * -




Foram anos de trabalho com Victor Nikiforov. Anos de treino, discussões, broncas, consolações por cabelos tingidos acidentalmente com papel crepom... Mas foram anos bons. Victor foi um bom aluno, ótimo se considerassem a evolução astronômica que ele teve na juventude.


Yakov só queria que ele fosse um aluno normal.


Até 2001, ele podia dizer que Victor era como qualquer um de seus alunos. Não em técnica, porque estava na cara que ele era um prodígio. Mas em questão de intimidade e influência em suas vidas, Yakov não podia dizer que Victor era mais importante que Georgi Popovich, Alexander Navachine ou mesmo os alunos cujos pais não eram patinadores. Victor era só mais um. E Yakov queria que continuasse assim.


Mas quando Victor fez 13 anos, as coisas mudaram em sua casa. Mais brigas, mais intrigas, mais tensão. Aparentemente o casamento de Lidya Nikiforova não estava indo bem já havia um tempo, mas Victor estava conseguindo lidar bem com isso. Yakov não quis se meter. Ele não tinha mais autoridade para opinar na vida de Lidya. Nunca teve, para ser sincero.


Quando Victor fez 13 anos, seus pais anunciaram que iriam se mudar para a Suíça. E Victor deveria ir com eles.


Foi uma decisão unilateral por parte de Mikhail Nikiforov, tendo ele seus motivos. Motivos que Victor não entendia e se recusou a entender. Ele queria ficar na Rússia, em São Petersburgo, ele queria treinar com Yakov Feltsman e ser um grande patinador!

Yakov sinceramente achou que tudo acabaria ali. Não tinha o que fazer, não podia convencer os pais do garoto a não se mudarem só para atender aos seus caprichos. Victor deveria ficar perto de sua família, pessoas que o amavam. Se ele se esforçasse bastante, ele poderia patinar na Suíça também e tudo daria certo no final.

Lidya anunciou, como quem não queria nada, que Victor ficaria na Rússia morando com a avó paterna. Ela e o marido iriam embora.

Antes mesmo que Yakov pudesse decidir se Lidya era louca ou não, ele pediu ajuda. E só havia uma pessoa no mundo em quem ele confiava para ajudá-lo com crianças problemáticas.

Sorte sua que Lilia já estava em São Petersburgo naquela época.






  - * -



Cinco anos, três meses e dezesseis dias. Esse foi o tempo que Yakov esperou para pedir algum favor para Lilia após o divórcio.


Ela contou o tempo, como um hobby de uma entidade maléfica milenar. Não sabia o porquê. Só queria saber quanto tempo eles conseguiriam ficar sem trabalhar juntos. Quanto tempo Yakov aguentaria ficar longe dela.

(Lilia era um poço de egocentrismo.)

Eles não ficaram sem se falar durante esses anos, mas o contato se resumiu a encontros entre amigos no fim de ano e as visitas de Anett. Frios, formais e equilibrados. Bem diferentes do que eles costumavam ser.

Quando eles marcaram um encontro para discutir o que Yakov queria, ele mencionou uma coreografia para um aluno. O filho de Lidya. Lilia soube na hora que havia algo a mais naquela história. Coreografias tinham duplos sentidos para eles. Eram um símbolo de confiança, apoio e trabalho em equipe.

Quando Yakov pedia uma coreografia, era um pedido de socorro. E mesmo que ele tivesse explicado todos os pormenores do caso de Victor, ela ainda só entenderia depois de conhecer o garoto.


Não foi o melhor primeiro encontro do século.

— Vitya! - Yakov chamou à beira do rinque, com Lilia ao seu lado. - Venha até aqui.


— Eu ainda não acertei o axel! - foi a resposta do garoto enquanto se preparava para mais um salto.


Victor.— o tom de Yakov não parecia disposto a brincadeiras, muito menos a passar vergonha na frente de sua ex. - Venha até aqui agora. Quero que você conheça uma pessoa.


Victor interrompeu sua corrida com o grunhido insatisfeito mais adolescente da Rússia. Sua carranca também não era das mais felizes enquanto ele patinava até o muro. Lilia teve que conter um revirar de olhos para aquilo. Ela só arranjava aquele tipo.


Ela não esperava que Nikiforov fosse tão alto. Só o vira em fotos, é verdade, mas 13 anos não parecia tanta coisa em sua mente. Victor era um rapaz de boa estatura, com os traços finos da mãe, o cabelo prateado comprido e um péssimo caso de acne. Talvez isso também fosse uma razão para o seu mau humor.

 

— Estou aqui. Feliz? - Victor disse com um sorriso falso demais para alguém de 13 anos, mas ele conseguia. Assim que viu Lilia, porém, o sorriso se desfez em dúvida. - Eu... conheço a senhora?

 

— Não, mas eu conheço você. A sua mãe, também. - Lilia respondeu calmamente. - Eu sou Lilia Baranovskaya. Ex-prima ballerina do Bolshoi e coreógrafa, quando me chamam.

Foi como se uma luz tivesse iluminado a memória dele.

 

— Ah, então era pra você que a minha mãe mandava as cartas! E também foi casada com o Yakov, não é? - Victor, pelo visto, não tinha um só filtro sobre perguntas indiscretas. - Ele ainda não namora ninguém, se quer saber. Acho que ele vai virar um monge e criar cabras no Tibete quando se aposentar...

Victor.  - Yakov já estava ficando vermelho tanto de raiva quanto de vergonha, mas forçou-se a manter a calma. - Eu chamei Lilia para te ajudar com o programa longo. Ela também vai melhorar os seus fundamentos no balé.


Victor fechou a cara imediatamente.

— Eu não preciso de balé, eu preciso de um triple axel decente.

Lilia também não pareceu mais amigável com aquela frase.

— Já ouvi isso vezes demais trabalhando com patinadores como você. - ela disse optando por uma postura menos agressiva, por enquanto. Precisava saber quais eram os seus limites com aquele rapaz. - Todos se preocupam com a técnica, mas esquecem da arte que faz a patinação artística. Arte requer beleza.   É para isso que servem as aulas de balé.


— A senhora já me viu patinando? - ele perguntou pendendo a cabeça levemente para o lado, o olhar em frestas cínicas de quem não precisava saber da resposta. - Com todo o respeito aos meus colegas, mas ninguém tem mais classe, refinamento e postura do que eu no gelo. A parte artística não é o meu problema.

— A humildade também, pelo visto. - esqueça a postura pacífica, Nikiforov precisava de alguém que o retirasse de seu pedestal agora. - Quantas vezes você já competiu internacionalmente?


— Nenhuma. - ele fez uma careta, como se não gostasse de pensar nisso. - Essa será a minha estreia no circuito internacional Júnior.

— E você acha que ser o melhor do seu rinque significa alguma coisa contra patinadores do mundo inteiro? - ela sequer segurou o sorriso irônico com aquilo. Era pateticamente engraçado as pérolas que ela ouvia dos alunos de Yakov. - Mostre-me seu programa curto. Se você for tão perfeito quanto diz, eu não tenho nada a fazer aqui.

— Lilia... - o técnico tentou intervir.

— Está bem. - Victor estufou o peito enquanto aceitava o desafio, os olhos transbordando toda a seriedade com a qual ele via aquela aposta. Seriedade e algumas gotas de deboche. - É "A morte do cisne" de Saint-Säens. Acho que a senhora conhece.

Ele não esperou uma resposta, dirigindo-se para o centro da pista de gelo com pressa. Pressa de provar que era o melhor, pressa de mostrar que não precisava de ajuda.

Não precisaram de música. Lilia conseguia ouvir, ver, a história a ser contada em cada troca de pé, giro perfeitamente centralizado e cerrar de punhos que só olhares mais atentos perceberiam.

Havia falhas, muitas delas. Na técnica e na interpretação, a qual seria responsabilidade dela corrigir se quisesse moldar algo daquele diamante bruto. Ela tinha que admitir, porém, que a expressão de Victor não era como a de outros garotos de sua idade.

Era perturbador pensar que aquele foi o cisne mais cheio de rancor que ela viu em sua vida.




  - * -


 

 

— ...Você ainda acha que teria sido melhor Victor ter se aposentado quando tinha 18? - Yakov perguntou, mais uma vez interrompendo o silêncio melancólico que se instalara.


— ...Eu não sei. - ela disse com um suspiro cansado. - Eu costumava pensar que afastá-lo disso iria fazer bem para ele, mostrar um mundo que não girasse em torno do gelo. Mas no final, ele foi criado assim. Em nenhum momento da vida fez algo diferente disso. Se ele perdesse a patinação... Eu não sei o que restaria de Victor.


Yakov demorou para responder àquilo, em dúvida sobre falar ou não o que pensava. Falar ou não o óbvio do ponto de vista de quem, nos últimos anos, foi mais pai do que treinador.

No final, ele acabou dizendo:


— Até hoje eu não sei dizer quem é o Victor. - seus olhos mais uma vez caíram para a foto envelhecida. - Ele cresceu tentando ser Anfisa, mesmo que não tivesse consciência disso. Parece uma tarefa extremamente difícil apontar diferenças entre os dois.

— Anfisa tinha uma vida fora do gelo e uma família que se preocupava com ela. - Lilia não conseguiu esconder a acidez na voz ao dizer aquilo. - Podemos dizer o mesmo de Victor?


Não valia a pena responder àquela pergunta quando ambos já sabiam a amarga verdade. Victor passou tanto tempo de sua vida se esforçando para ser o melhor que nem percebeu que as pessoas que ele queria impressionar não estavam lá para aplaudir seu esforço.


Com os pais longe, Victor passou a adolescência em casas alheias. Primeiro a casa de sua avó, depois os dormitórios do clube, o apartamento de Yakov, às vezes a casa de Lilia. Se ele sentia a falta de um núcleo familiar estável, não deixava transparecer. Seu objetivo era ser um campeão. Era o que sua mãe sonhava para ele. Por isso fizera o sacrifício de deixá-lo na Rússia.


Yakov falou poucas vezes com Lidya durante a estada dos Nikiforov no exterior, muito menos do que queria. Ela perguntava sobre como Vitya estava indo na escola, se estava bem, se tinha muitos amigos, uma namorada... Yakov dizia que eles deveriam visitá-lo mais vezes e não apenas esperar que ele aparecesse nas férias. Ela nunca dizia nada.


Ele nunca falou muito com Mikhail Nikiforov. Na única vez em que estiveram frente a frente, um diálogo um tanto bizarro ocorreu, no qual Yakov confirmou que Lidya fora sua aluna. Isso, aparentemente, era novidade para Mikhail. Meses depois, eles se mudaram.

Mesmo tentando juntar os fatos, Yakov tinha dificuldade para entender o que exatamente aconteceu na família de Victor, mas ele tinha suposições. A mais óbvia era que Lidya havia escondido alguma coisa sobre seu passado e, quando Mikhail descobriu, ficou furioso; resolvendo descontar em Victor. A mudança repentina para a Suíça era sua maneira agressiva de dizer que não queria vê-lo patinando. Mas Victor não aceitaria isso e, pelo visto, Lidya também não.

Era uma atitude estranha a dela. Queria que Victor patinasse, mas aceitou ficar longe dele, como se tentasse agradar marido e filho simultaneamente. Talvez desse certo se ela fosse mais presente, mas ano após ano a distância entre Victor e seus pais foi crescendo. Distância que não mostrou o quanto Victor estava se destruindo com a patinação.


Crescer não é fácil para nenhum atleta. Perdiam a flexibilidade, ficavam mais altos, tinham que reaprender todos os saltos. É pior quando se é uma promessa olímpica, pois todos os olhos estão sobre você.


Victor estava nessa situação. Em 2006, ele estava cotado para representar a Rússia nas Olimpíadas de Turim. Era um feito e tanto para um rapaz de 18 anos, mas ele tinha talento. Victor não iria desapontar.


Victor não podia desapontar.


Foi culpa deles, totalmente deles e isso Lilia não podia desmentir. Eles não prestaram atenção às pequenas mudanças, não perceberam as mentiras, não notaram as olheiras... Pensaram que Victor era a menor das preocupações já estando encaminhado para as Olimpíadas, então foram dar atenção aos outros que precisavam mais. Displicentes, eles foram. A última vez em que aquilo acontecera, a filha deles foi parar no hospital e eles juraram que aquilo não se repetiria. Estavam errados. Muito, muito errados.



Dois dias antes do programa curto em Turim, Victor caiu durante o treino. Algo normal, mas ligeiramente incomum para Victor Nikiforov. Ele se levantou e repetiu o salto. Mais uma queda. E outra e outra.


Treinadora Polemanova, a responsável por ele naquela manhã, não teve tempo para pedir que ele parasse com os saltos.   Na quarta queda ele sequer levantou do gelo.


Foi um dia de caos. Um alvoroço de socorristas, funcionários da ISU e jornalistas. A imprensa era a pior e Yakov suspeitava que ela ficava mais desavergonhada a cada ano. Ele não tinha tempo para os enxotarem dali, estava preocupado com seu aluno hospitalizado.

 

O diagnóstico dos médicos foi o mais ridículo que Yakov já ouviu: Victor entrara em colapso. Seu corpo fôra levado à exaustão, ele estava abaixo do peso ideal, havia um princípio de lesão na coluna que provavelmente estava causando muita dor e a lista de calamidades continuava. Era a forma longa e cruel de dizer a Yakov que ele era o treinador mais negligente da Rússia.


Nem ele nem Lilia ligaram para os Nikiforov, então a única forma deles terem descoberto o ocorrido foi por alguma manchete sensacionalista do canal de esportes. Talvez eles até estivessem planejando assistir aos Jogos pessoalmente, considerando a distância curta entre Turim e Zurique. Talvez isso explicasse por que Victor aumentara a pressão sobre si nos últimos meses. De qualquer forma, nenhum deles esperava Lidya Nikiforova naquele hospital.



Lilia não se orgulha da última conversa que teve com uma de suas alunas favoritas.




  - * -



Ela detestava hospitais. Traziam lembranças ruins e ela nunca recebeu notícias boas estando neles. Ela esperava receber uma agora, sentada, aguardando até que os médicos autorizassem a entrada no quarto de Victor.

Lilia não chorara, mas definitivamente havia ficado nervosa com a notícia de que Victor passara mal a ponto de ser internado. Ele sequer acordara. Já fazia três horas que estavam esperando alguma coisa.

E, de todas as pessoas no mundo, a última que Lilia queria ver naquela hora era Lidya.

Ela a reconheceu pelo andar apressado no corredor. Jeito estranho de marcar alguém, mas ela se lembrava de como Lidya corria pelo rinque quando estava apressada. Sempre mantendo a postura, sempre equilibrada; Lilia costumava elogiar isso.

A ex-prima ballerina se levantou de braços cruzados e olhos semicerrados de frieza, ignorando completamente a conversa entre Yakov e a médica atrás de si. Ela estava interessada em outro assunto.

— Madame Lilia... - Lidya estava um pouco ofegante enquanto falava, o cabelo curto provavelmente bagunçado pelo vento da tarde italiana. - Como está o Vitya? O que ele tem?

— Que bom que veio, Lidya Antonovna. - Lilia teve vontade de dizer que a mulher não fez mais do que sua obrigação ao vir até ali, mas ainda não era hora. - Ele teve um colapso. Estava cansado, doente e conseguiu esconder muito bem. Ele sequer está acordado.

— Meu Deus... - Lidya colocou as mãos sobre o rosto em exasperação. Seus olhos estavam marejados. - Então... ele não poderá participar dos Jogos?

Aquilo foi a gota d'água para Lilia.

— É com isso que você está preocupada, Hackzell? - a mais velha questionou irritada, abandonando completamente a  elegância associada ao seu nome. - Cinco anos sem aparecer em nenhuma competição dele, sem fazer uma visita fora de época. Agora ele quase morre e você ainda pergunta se ele pode patinar?

Lidya piscou surpresa, totalmente despreparada para a agressividade daquelas palavras. Ela franziu o cenho enquanto respondia:

— Eu não sei o que a senhora quer dizer com isso. Eu amo o meu filho e quero sempre o melhor pra ele. Isso não tem nada a ver com eu estar na Rússia ou não!

— Tem tudo a ver, Lidya. Mesmo morando em outro país você tinha formas de estar mais presente na vida dele e não o fez. E ele fazia tudo isso por sua causa.

— Minha causa?! Claro que não! - Lidya agora balançava a cabeça veementemente, completamente contrária à ideia. - Vitya queria ser patinador profissional e eu o apoiei. Se eu não desse a mínima, teria o levado para Zurique como o pai dele quis. Vitya tinha um sonho e eu o deixei realizá-lo.

— O sonho dele ou de Anfisa? - agora era a pior hora para Lilia descarregar sua frustração, mas ela ainda o fez com a voz aumentando de tom a cada frase - Admita, Lidya. Você moldou a cabeça do seu filho para seguir os passos da tia dele porque você até hoje não se conforma com a morte dela...

— Não ouse. - Lidya interrompeu com o indicador em riste, os olhos verdes enegrecidos pela mágoa. - A senhora não tem o direito de assumir coisas sobre a minha vida e como eu lidei com a morte da Anfisa. Nenhum de vocês sabe pelo que eu passei naquela época!


— Não sabemos porque você não contou a ninguém! - Lilia disse quase rindo em sarcasmo, mal sentindo quando Yakov segurou seu ombro e pediu para que se acalmasse. - Você fugiu, Lidya. Desapareceu no mundo sem dar nenhuma satisfação, nem uma notícia que diminuísse a nossa preocupação. Nós teríamos te ajudado, teríamos movido o mundo para te ver bem de novo. Mas você preferiu se esconder e eu nunca te julguei por isso. Eu só não acho justo você jogar os problemas do seu passado em cima do seu filho!

— Exatamente, senhora, Victor é meu filho! - Lidya disse apontando para si mesma enquanto lágrimas borradas de maquiagem escorriam pelo seu rosto. - Meu e não de vocês! Aliás, esse foi sempre o maior erro dos dois: brincar de casinha com os filhos dos outros!

— Lidya! - foi a vez de Yakov se ofender, ao mesmo tempo em que Lilia ficava lívida ao seu lado.

— O quê? É verdade! Vocês sempre gostaram daquele teatrinho de família feliz porque era muito mais fácil e cômodo cuidar de crianças com a educação semipronta e mandá-los fazerem figuras no gelo. - ela ria cheia de deboche em meio as lágrimas, deturpando as poucas lembranças felizes que tinha daquele tempo. - Foi assim comigo, foi assim com a Anfisa, com o Denis... Eu só não entendo o que vocês queriam com a Anett, sabe?

Lilia arregalou os olhos e cerrou os punhos para o nome. Oh, não. Ela não iria...

— Lidya, não se atreva...

— Não, me respondam agora! Qual a explicação para adotarem a Anett se vocês ainda iriam ficar com aquela palhaçada de tentarem ser pais de todo mundo? Nem sei como ela se considerava filha de vocês tendo que dividir a atenção dos dois com mais dez crianças diferentes. - Lidya deu de ombros com as mãos abertas em indagação, seu famoso sorriso de coração deformado de cinismo. - E no final, qual o saldo? Ela ganhou um sobrenome de peso e acabou na Suécia, bem longe dos "pais" que ela tanto dizia amar. Se querem saber, acho que Anett nunca se sentiu amada de verdade, porque vocês dizem que se importam com todos, mas no final só se importam consigo me-

O tapa em seu rosto reverberou no corredor do hospital. As poucas pessoas que já estavam acompanhando a discussão aflorada agora assistiam a tudo chocadas com o desfecho.

Os dedos de Lilia doíam, mas a dor aliviou ao ver o vermelho na bochecha pálida de Lidya. Esperava que doesse mais nela.

Lilia não se lembrava da última vez que batera em alguém, nem da última vez em que seu pai batera nela por alguma arte de criança. Ela nunca batera em Anett e, se tivesse tido um filho realmente dela, não acha que teria coragem para levantar a mão para ele.


Mas Lidya se transformara em alguma coisa muito diferente do que costumava ser naquela tarde. Os olhos verdes assustados, surpresos e tão assustadoramente iguais aos de Lilia que a encaravam com a mão sobre o rosto não podiam ser da mesma menina que ela ensinou. Eles eram de alguma criatura egoísta e dissimulada que o tempo colocou no lugar da pequena Lidya Hackzell.

— Nós sempre nos importamos com todos vocês. - Lilia disse com o último fio de altivez que ainda tinha na voz, controlando-se para não chorar frente a sua ex-aluna. - Eu te tratava da mesma forma que eu tratava Anett, Anfisa, Lana, Denis e todos aqueles garotos. Eu os tratava como filhos. E acredite, Lidya, você é a minha maior decepção em todos esses anos. Eu sinto que posso morrer de desgosto ao ver o que você se tornou.

Aquele foi o gatilho para Lidya recompor o olhar de desprezo que carregava antes da agressão.

— Então morra, Madame Lilia. A senhora já não me faz falta há muito tempo.

Lilia engoliu em seco, retirando forças do mais íntimo de seu ser para não desabar ali mesmo. Era como um espetáculo no Bolshoi, ela tinha que permanecer firme e inabalável até as cortinas se fecharem. Ela não podia dar à Lidya o luxo de ver o quanto aquelas palavras tinham efeito nela.

Por sorte, ela não precisou segurar por muito tempo, pois logo Mikhail Nikiforov surgiu no corredor, assumindo a tarefa de discutir com a esposa por qualquer motivo banal ao invés de darem atenção ao filho deles.


Era tudo de que ela precisava, pois assim que Lidya virara as costas, ela sentiu seus joelhos fraquejarem. As mãos entorpecidas encontraram suporte  nos braços de Yakov, que a guiaram para o assento mais distante daquele andar. Sempre ele. Sempre Yasha a mantendo em pé quando nem ela se acha capaz de tal.

— Não dê ouvidos a ela, Lilia. - ele disse com urgência, mas até sua voz parecia duvidosa sobre aquilo. Como se o que Lidya disse plantasse a incerteza em sua mente sobre tudo que ele construiu naqueles anos. - Disse a primeira coisa que veio a mente para te atingir e... Oh, não, Lilia.

A interrupção foi pelas lágrimas. Gotas e mais gotas correndo pelo rosto de Lilia sem previsão de término, retirando a maquiagem em sua rota úmida a expondo as imperfeições advindas de anos de trabalho. Anos de apresentações perfeitas sobre pés ágeis e cansados. Anos de ensinamentos a jovens cheios de sonhos. Jovens como Lidya.

— Por favor, Lilia, não chore. - Yakov pediu segurando seus ombros, internamente se perguntando quais eram os limites que ele tinha o direito de transpassar para confortar sua amiga. - Nada daquilo é verdade, Lidya não sabe o que diz. Lyubov te ama. Você é uma ótima mãe.


Ela queria dizer que não era isso que a estava incomodando, mas ao invés de palavras, Lilia apenas conseguiu um soluço ridículo que combinaria muito com uma tragicomédia patética. Ela era patética ao chorar daquela maneira. Lilia Baranovskaya, 57 anos, ex-prima ballerina do Bolshoi, renomada coreógrafa da CSKA; desabando por algumas ofensas de uma menina ingrata.


Yakov a abraçou, murmurando palavras de consolo como quem acalmava uma criança desamparada. Não havia consolo para o que Lilia sofrera hoje. Não havia consolo para uma mãe que perdera uma filha.

Lidya Hackzell estava morta para ela.



  - * -




Victor perdeu as Olimpíadas e o resto de contato que tinha com os pais naquele dia. Mikhail interpretou da pior forma possível a decisão do filho de continuar patinando mesmo que isso custasse sua saúde. Se ele quisesse se destruir, que fizesse isso longe dele. Como se eles ainda fossem próximos.


A decisão de Victor também afetou a relação de Lilia e Yakov, da forma mais absurda e negativa possível. Lilia não entendia como Yakov ainda podia treiná-lo sabendo que aquele esporte o estava destruindo emocionalmente, acabando com qualquer chance que ainda tinha de ser um jovem normal. Mas Yakov não tinha coragem de tirar de Victor o último resquício que ele ainda tinha de amor na vida. Ele precisava do gelo mais do que qualquer um.

O fato de que Yakov parcialmente tomara as dores de Lidya também não ajudou em nada. Se ele e Lilia ainda estivessem casados naquela época, aquilo certamente seria a razão do divórcio. Yakov não via o acesso de raiva de sua ex-aluna como mera petulância ou ingratidão, mas como um desequilíbrio emocional resultado de anos de tormento pela morte da namorada. Lidya passou todos esses anos perturbada pelo luto de Anfisa e resolveu descontar nas pessoas que mais se preocupavam com ela. Yakov se achava culpado por isso por não ter estado lá para ajudá-la.

Eles se desentenderam e Lilia decidiu, por conta própria, que ela já tinha ajudado Victor o suficiente. Se preocupava com Victor do fundo de seu coração, mas ela e Yakov tinham interpretações diferentes do problema e não faria bem para o garoto conviver com mais esse tipo de conflito pairando no ar. Se Yakov achava que sabia cuidar dele, que assim o fizesse. Ela nunca duvidou de sua capacidade.

Foi assim que Lilia fez mais uma pausa em seu trabalho de coreógrafa, preferindo se distrair ministrando aulas no Mariinsky ao invés de assistir Victor se machucar ainda mais com aquele esporte tão ingrato. Pelo menos, era a visão que ela tinha. Mas ele sempre pareceu feliz quando a visitava, nunca deixando de falar com animação sobre os novos programas que estava planejando, os trajes espalhafatosos que usaria ou, nos piores dias, suas últimas desilusões amorosas. Lilia gostava de pensar que estava errada sobre a patinação estar trazendo mais prejuízo do que benefícios para o seu querido Vitya. Mas ela também sabia que ele mentia muito bem.

E todos aqueles encontros e desencontros os trouxeram até ali, a um rinque condenado, onde tantas histórias  de vitória e derrota se desenrolaram. Tantas escolhas que eles fizeram, algumas questionáveis, mas todas pensando no melhor para os envolvidos.    Esse havia sido o resumo de suas vidas desde que eram jovens: se desdobrar por alunos que, no final, podiam sequer reconhecer o esforço que eles fizeram.

Lilia não podia dizer que se arrependia. Yakov também não.



— O que importa é que ele está bem hoje. - foi o que ele disse afinal, como uma análise conclusiva sobre a história cheia de altos e baixos que era a vida de Victor Nikiforov. - Ele conseguiu superar  aqueles anos horríveis e não está mais sob o jugo da mãe. Vitya é um garoto forte. Mesmo que esteja atravessando uma fase difícil... Ele vai superar. Eu sei que vai.


— Isso é bom. - Lilia disse olhando para o teto, absorvendo cada último detalhe daquele lugar. - Pena que não podemos dizer o mesmo sobre a CSKA, não?


— Pois é. - Yakov se permitiu um sorriso triste. - Mas acho que é importante deixar algumas coisas no passado. Dar uma chance ao tempo de construir algo novo.

— Tirou isso de qual livro de auto-ajuda? - ela perguntou com o mesmo sorriso.

— Fica pior. - Yakov estufou o peito e olhou para o horizonte como efeito dramático. - Não importa se eles demolirem esse ou todos os rinques, pois o maior tesouro carregaremos conosco: as lembranças dos tempos áureos.

— Ah, não. - Lilia escondeu o rosto como se quem estivesse passando a vergonha fosse ela, mas ela não conseguiu esconder o sorriso casa vez mais aberto. - Isso foi horrível, Yasha. Você é péssimo motivando as pessoas.


— Não é motivação, é aceitação. - ele deu de ombros. - Acho que, pelo menos, podemos dizer que foi bom enquanto durou. Não é?


— É. - ela concordou assentindo. - Foi muito bom.



O silêncio confortável que se instalou foi como um réquiem ao velho rinque, estando os únicos ouvintes menos inquietos com a perda agora. No final, seria apenas mais uma mudança, mais uma coisa da qual eles teriam que abrir mão. Eles já estavam acostumados com isso.


Os dois já estavam fechando as portas da recepção quando o celular de Yakov tocou.

Ele pensara que havia deixado aquela coisa no modo silencioso antes de vir até ali, não querendo que nada atrapalhasse sua despedida. Foi um golpe de sorte ele ter conseguido ficar duas horas sem nenhuma ligação. O mundo não podia ficar muito tempo sem perturbar Yakov Feltsman.


Mas ao invés dos usuais números de funcionários, colegas treinadores e até patinadores; ele foi surpreendido pelo nome na tela do modelo flip.

— É a Anett. - ele disse com os olhos um tanto arregalados. As ligações de Anett não eram tão raras, mas normalmente ela ligava direto em casa ou os obrigava a usar o tal do Skype.

— Anett? - Lilia também ficou surpresa. Quando Yakov assentiu, ela apressou com as mãos. - Vamos, atende.

Yakov quase derrubou o celular na pressa de atender e apertar o botão de viva-voz, de forma que Lilia pudesse ouvir também. Se vinha de Anett, ela tinha o direito de saber.

— Alô? - ele disse segurando o aparelho entre os dois.


Oi, papai! Como você está? Eu te liguei em casa e você não estava.


— Eu estou bem, lyubov moya. - Yakov disse com um sorriso. - Eu estou em Moscou com a sua mãe. Ela está te ouvindo também.

Mamãe?

 

— Olá, Anushka. - Lilia disse com um sorriso. - Bom saber que você prefere ligar para o seu pai primeiro. Quase fiquei com ciúmes.

Mamãe, não seja dramática, eu dou igual atenção para os dois. E vocês, o que estão fazendo em Moscou? Bodas de gelo?


— Muito engraçado, Anett. - Yakov resmungou, agradecendo que a mulher não podia ver seu rosto corar. - Nós viemos... nos despedir. O rinque da CSKA será demolido.

Ah, mas não vai mesmo! - a risada quase maléfica que ela deu podia ser confundida com a de uma vilã de novela. - Foi pra isso que eu liguei, para dar as ótimas notícias que eu recebi hoje.

— Notícias? - Yakov franziu o cenho. - O que quer dizer?


Então, vocês sabem que o Neil ainda trabalha organizando aqueles shows de patinação, né?

— Sim. - Yakov assentiu lembrando-se do trabalho de seu genro.


E vocês sabem que os negócios estão indo bem a ponto de eles administrarem rinques fora da Suécia?

— Não...? - Yakov sentia que não estava acompanhando aquela história direito. - Vá direto ao ponto, Lyubov, por favor.

Okay, okay. Basicamente, quando eu fiquei sabendo sobre o problema com a CSKA, entrei numa crise existencial horrível. Neil percebeu isso e, assim que eu contei pra ele o que aconteceu, ele começou a correr atrás de contatos para saber se podia fazer alguma coisa. E ele conseguiu.


Lilia e Yakov trocaram um olhar impressionado, não sabendo se estavam ouvindo certo ou se a filha deles enlouquecera de tanto comer salmão.


— O que exatamente ele conseguiu, Anett? - foi a vez de Lilia perguntar, já aflita com aquele suspense.

Ele, juntamente com alguns grandões da Dynamo, convenceu a CSKA a construir o rinque de hóquei deles em outro lugar.


— Ele o quê?! - o grito que Yakov deu só não podia ser confundido com uma bronca porque não tinha nenhum patinador rebelde nas redondezas. Se alguém estivesse passando na rua, certamente teria se assustado.

Foi isso mesmo! Não me pergunte os pormenores capitalistas disso, eu realmente não sei, mas acho que meu pobre marido vai até perder o sotaque de tanto que vai ter que trabalhar com russos. Ele praticamente vendeu a alma para o diabo do gelo nessa história, mas foi por uma boa causa e definitivamente não se arrepende. Até Denis entrou nesse esquema, mas se perguntarem, ele vai desmentir porque é um ridículo.


Nenhum dos dois podia acreditar no que estavam ouvindo. O rinque não seria demolido? A compra não foi feita?

— O que vai acontecer com o rinque? - Yakov perguntou ainda em choque, não absorvendo completamente o que ouvira.

Ah, essa é a parte mais legal, porque como parte do acordo, o rinque foi conjuntamente comprado pela CSKA Ice Hockey e pela D&K Inc.! Trocando em miúdos, Neil é sócio majoritário e tecnicamente dono do CSKA Ice Palace agora. Infelizmente, eu acho que um dos prédios auxiliares terá que ser vendido e as mensalidades dos alunos irão aumentar até eles estabilizarem as contas, mas pelo menos o rinque continuará de pé.


Os dois agora olhavam para o celular como se o fim de todas as guerras fosse anunciado definitivamente. Era absurdo, inacreditável, impossível...

 

Lilia tentou conter um riso com as mãos, mas no final só conseguiu um som esganiçado. Era um riso de nervoso mas era um riso feliz. O brilho nos seus olhos não podia esconder a alegria com aquela notícia.

 

Yakov teve uma reação bem menos contida, escolhendo gargalhar e girar a mulher em um abraço que a retirou do chão por alguns segundos.

 

— Yakov, tenha modos, olhe a sua coluna! - Lilia disse tentando soar séria, mas falhando miseravelmente.


Ei, o que vocês estão fazendo aí? Falem comigo, senão eu fico preocupada!

— Está tudo bem, só estamos um pouco eufóricos. - Yakov disse com o maior sorriso em anos. — Eu nem sei como eu vou agradecer ao seu marido, Lyubov. Eu nem sei como eu posso agradecer você...

Não precisa, pai, de verdade. A CSKA é a minha casa, foi onde eu cresci... - pelo tom da voz, eles suspeitavam que Anett também estivesse a ponto de chorar enquanto falava. - É o mínimo que podemos fazer depois de tudo que vocês fizeram por mim e pelo clube. Se não fosse por esse rinque, eu não teria a vida que tenho hoje. Eu não teria vocês. Vocês como pais foram a minha maior vitória como patinadora.



Não ajudava que os dois já estavam sensíveis além do limite com todas as lembranças daquela tarde. Aquela conversa os estava transformando em represas prestes a ceder.


— Você também foi a nossa maior vitória, Anushka. - Lilia disse com a voz embargada. - Mais do que qualquer medalha, mais do que qualquer espetáculo bem feito. Você não tinha que se sentir no dever de retribuir nada.


Eu faço isso por amor, mamãe. E "amor" é o meu segundo nome. - ela disse com um riso suave que foi compartilhado pelos seus pais a milhares de quilômetros de distância. - Eu amo vocês, muito mais do que é possível dizer. Queria estar aí para poder dar as boas novas em pessoa, mas quis contar assim que recebi a confirmação...

— Não faz mal, sua ligação melhorou o nosso dia infinitas vezes. - Yakov assegurou. - Não muda o fato de que eu ainda quero te ver de verdade e não por uma câmera. E o seu marido, é claro. Nunca gostei tanto daquele rapaz quanto eu gosto hoje.

— Yakov... - Lilia não deixou de lado o tom repreensivo. Não era hora dele trazer o lado superprotetor dele à tona.

Eu também estou com saudades! Tenho planejada uma viagem para Moscou mês que vem e vou ver se ele pode vir comigo, posso até levar os meninos. Aí nós podemos comemorar devidamente a sobrevivência do Ice Palace!


Os três passaram os próximos minutos fazendo planos ainda a serem confirmados e atualizando os dois lados do globo sobre os últimos acontecimentos. Lilia e Yakov perguntaram sobre seus netos gêmeos, Anett perguntou sobre Victor. Ela sempre teve um certo apego por ele, apesar da relação conturbada com Lidya. Coisas de família.

Assim que a ligação foi concluída, com a promessa de que Anett seria a pessoa a ligar para Irina e dizer que seu local de trabalho estava a salvo, os dois se viram sozinhos em frente ao rinque. Um rinque que ainda tinha muitas memórias para vivenciar.


— Passamos por aquela conversa mórbida à toa. - Lilia comentou olhando para o céu rosado. Já estava anoitecendo. - Esse rinque não vai sair daqui tão cedo.

— Podemos fingir que nada disso aconteceu. - Yakov sugeriu. - É menos constrangedor.

Ela assentiu e eles mergulharam em mais um daqueles já conhecidos silêncios constrangedores, no qual nenhum dos dois sabia o que dizer, apesar de quererem dizer algo.

Lilia cansou de esperar.

— Normalmente é agora que você me convida para jantar. - ela disse com a sugestão quase explícita na voz.

Ele arqueou uma sobrancelha, nem um pouco surpreso com as palavras.

— Eu sou obrigado?

Ela semicerrou os olhos para a petulância.


— É isso ou eu vou beber sozinha. E você sabe que isso nunca dá certo.



Ah, ele sabia muito bem. Não se rega lírios com álcool, já dizia o ditado que ele mesmo criou.



— Está bem. - ele disse ajeitando o chapéu com falso mau-humor. - Em memória aos bons tempos.


Lilia sorriu enquanto repetia:


— Em memória aos bons tempos.





 

 

When the world surrounds you

I'll make it go away

Paint the sky with silver lining

I will try to save you

Cover up the gray

With silver lining


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

-- Eu realmente espero que essa novela não tenha ficado confusa de entender ;A;


—- O mundo acaba, os OCs morrem, os anos passam mas Liliakov é para sempre. Okay? Okay.


-- O caso do rinque demolido tem inspirações reais. Em 2011, a ex-patinadora e treinadora russa Tatiana Tarasova escreveu uma carta aberta ao presidente Vladimir Putin pedindo apoio para que o rinque Palácio de Gelo da CSKA (inaugurado em 1964) não fosse vendido para a CSKA Ice Hockey (Sim, são coisas diferentes), que demoliria o lugar para construir uma arena exclusiva para hóquei. Isso prejudicaria não só 400 patinadores artísticos, como também ginastas, nadadores e tenistas que usavam o espaço integrado na época. Nas minhas pesquisas, não ficou claro se o rinque foi realmente demolido ou não, porque há ainda patinadores que competem pelo clube da CSKA, então eu dei esse final mais feliz e besta porque nossos velhos já sofreram demais nas minhas mãos :P


—- Pois é, tem OC demais aqui xD Os mais importantes vocês já pegaram, mas para quem ainda ficou na dúvida, aqui vai uma lista, usando como base a foto da capa que foi colocada no capítulo:
?” A loira de tranças é a Lidya Hackzell (hoje Lidya Nikiforova), mãe do Victor. Nunca superou a morte da namorada e isso a fez tomar decisões questionáveis ao longo da vida, uma delas sendo se casar com o irmão da namorada sem mencionar o antigo relacionamento.
?” A moça de cabelos platinados é Anfisa Nikiforova, namorada da Lidya e a tia que o Victor nunca conheceu, que tinha um futuro brilhante na patinação até seu desaparecimento repentino em 1982. Sua presumida morte afetou todo o clube tanto emocional e politicamente.
?” A menina de cabelos castanhos ao lado de Lidya é Anett-Lyubov Feltsman, filha adotiva da Lilia e do Yakov, e vocês não fazem ideia do quão feliz eu estou por estreiar essa OC :'V Entre os meus headcanons anormalmente felizes de YoI, eu não descarto a possibilidade de eles terem tido pelo menos um filho que, por inúmeras razões, acabou se distanciando dos pais e seguiu uma carreira que não tinha nada a ver com balé ou patinação. No caso da Anett, ela começou patinadora, mas o trauma de perder uma amiga foi parcialmente responsável por ela se aposentar cedo e trabalhar no exterior durante a década de 1990.
- O moço de cabelos alaranjados à esquerda é Milan Navachine, namorado da Lidya na época. O relacionamento acabou com a morte de Anfisa e a aposentadoria de Lidya. Anos mais tarde ele teve um filho que cresceu muito amigo do Victor e do Georgi.
- O ruivo de óculos é o Markus Babichev e ele é o pai da Mila. A história dele é irrelevante hoje, mas ele é um amor e um fofo ♥
- O rapaz de cabelos castanhos e jaqueta verde é o Denis Kovalev, que já teve uma aparição em Philia como o pirralho que irritava a Lilia, outra pirralha maior :P Também teve um futuro feliz, mas irrelevante para a fic de hoje.
- A morena de azul é a Melaniya Petrovna, mãe do Georgi, que também faz uma aparição em Philia. Desde pequena ela já chamava Lilia de "treinadora" mesmo que ela não passasse de uma menina que vez ou outra vigiava as aulas pra tirar uns trocados do Yakov. Anos mais tardes ela consegue realizar o sonho de casar com o patinador Adrian Popovich, que é o pai super lindo do Georgi.


—- Os versos iniciais e finais são da música Silver Lining do Hurts.


É, é isso, gente. Esse é o resumo de todos os meus headcanons sobre o passado do Victor, se eu fosse transformar numa fic multichapter tenho certeza que seria maior que Game Of Thrones e com o triplo de drama. O enredo dessa fic tem mais de ano de formação, eu realmente estou feliz em postá-la :'))) Se por algum motivo eu conseguir acertar alguma teoria no canon, vou até abrir uma champanhe, mas do contrário, continuo de boas porque eu sou a que menos se importa com o canon nesse fandom >:V //shot
Nat, minha linda, espero que você tenha gostado desse presente super adiantado e das pequenas alterações que eu fiz nas ideias originais que eu te apresentei. Considere isso a vingança por "Pasha", mas ninguém nunca sofreu mais do que eu por "Pasha", então ficamos na mesma.

((((Aliás, vão ler "Pasha" e "Carabosse", aquelas são as novelas das 8, "Reminiscência" é coisa light nível Chiquititas perto daquilo lá. E eu amo.)))

Até a próxima, meus amores!!

XOXO



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Reminiscência" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.