Aborto. escrita por Siaht


Capítulo 1
Aborto.


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoas lindas!!! ;D
Tudo bem com vocês?
Bom, acabei me empolgando um pouco com a minha história do Desafio de Outubro e precisei escrever mais sobre o assunto. É possível ler essa one-shot sem ter lido Rubro, mas caso tenham interesse: encurtador.com.br/rDN19
ALERTA DE GATILHO: a one-shot toca no tema ansiedade. Não é nada gráfico ou muito descritivo e nem é o foco da história, mas é algo que aparece durante o texto. Então fica o aviso.
De qualquer forma, espero que gostem! ♥



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{aborto.}

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O garoto ouviu o som das ondas se agitando, sentiu o cheiro da maresia e a aspereza da areia contra os pés descalços. Manteve os olhos fixos no céu estrelado. Era bom estar em casa. E também terrível. Meses distante em seu colégio tornavam quase possível fingir que o conflito não estava ali, mas essa era uma simples ilusão. Louis Weasley sempre seria uma pessoa dividida.

Era assim para todos os abortos, ele supunha. Um pé no mundo mágico, o mundo em que nasceram e foram criados, o mundo de suas famílias, o mundo que os dizia que eram inferiores; e um pé no mundo trouxa, o mundo para o qual eram empurrados, o mundo sobre o qual sabiam nada ou muito pouco, o mundo no qual nunca iriam realmente se encaixar. Estavam destinados a viver no meio do caminho. A estar sempre no meio. Presos no entre-lugar. Sem nunca pertencer verdadeiramente. Sem nunca se encaixar.

Na maior parte do tempo, Louis evitava pensar sobre tudo isso. Tentava viver seus dias, ignorando que estudava em uma estúpida escola para abortos – com paredes rachadas e desbotadas, goteiras que pingavam insistentemente e professores que nem sempre se importavam –, focando seu tempo e energia em viver um dia de cada vez. Jogar rúgbi pelo time do colégio, se divertir com os amigos – que talvez gostassem mais de ter um Weasley entre eles do que do rapaz propriamente dito –, ir a festas estúpidas. Qualquer coisa que o impedisse de pensar sobre o futuro e sobre como sua vida estava destinada a ser uma tragédia.

No entanto, evitar sua própria realidade se tornara impossível recentemente. Era tudo culpa dela, Frida McLaggen, uma colega de classe/militante pelos direitos dos abortos/companheira fiel de detenções. Louis costumava odiá-la. Bom, não odiava a ela especificamente, mas o modo como ela o empurrava para longe de sua zona de conforto, como o obrigava a observar o mundo a sua volta e a sentir cada mísera coisa que estava errada, como tornava impossível que se esquecesse de quem era e de quem não era.

Doía olhar para si mesmo e se aceitar, especialmente em um mundo que dizia que você não era aceitável. E era realmente assustador pensar no futuro.  Entretanto, esse era um processo pelo qual ele precisava passar. Não havia opção.  

Frida eventualmente se tornara sua melhor amiga. E ele se sentia grato por ela estar em sua vida. Por ter uma pessoa com quem poderia conversar e que verdadeiramente entendia o que era ser ele. Ser como ele. E talvez ela estivesse certa ao falar sobre a importância de um senso de comunidade. Pessoas como eles precisavam ficar juntas e proteger umas as outras, porque dificilmente qualquer outro as protegeria.

— Você está bem? — o garoto se virou, ouvindo a voz do pai. Tão imerso em seus próprios pensamentos que sequer notara a aproximação do homem.

— Estou. — disse, voltando seus olhos para o mar escuro e agitado. Havia se afogado ali uma vez. Tinha sete anos e o pai o salvara. Acontecera há nove anos, mas ainda se lembra da sensação. A falta de oxigênio, a garganta se fechando, o incêndio nos pulmões, o coração batendo desesperado, o medo paralisante. Louis se recorda de sentir que iria morrer. De expelir água e chorar nos braços de Bill.

Costumava pensar nisso quando tinha uma crise de ansiedade. A sensação era estranhamente familiar a um afogamento. Mas já não se permitia chorar nos braços do pai. Às vezes desejava conseguir. Engoliu em seco, forçando-se a pensar apenas nas ondas a sua frente. Esperou o medo vir, mas ele não veio. Nunca vinha. Havia quase morrido naquele oceano e, ainda assim, ele nunca o assustara. A única coisa que deveria temer, era a única que o inspirava segurança. Em contrapartida, todo o resto o deixava em pânico.

Tinha medo do futuro. Tinha medo de olhar para o passado. Tinha medo de estar entre bruxos e medo de estar entre trouxas. Tinha medo de se mover, de falar, de respirar. Um passo em falso e todos saberiam o que ele era. Um movimento errado e todos saberiam que não pertencia. Uma palavra errada e se dividiriam entre o ódio e a piedade. Louis não sabia qual dos dois detestava mais.

E se bruxos decidissem machucá-lo, pelo sangue insuficientemente mágico em suas veias, como se defenderia? Puristas do sangue nunca deixariam de existir, afinal. E como explicaria a um trouxa o que era? O que conseguiria além de ser visto como um louco ou uma aberração. Fechou os olhos, se forçando a acalmar a respiração que começava a se agitar. Aquele tipo de pensamento nunca trazia nada bom. Fora assim que seus ataques de pânico começaram. Durante os dois anos em que estudara em um colégio trouxa, antes de se mudar para a Academia Shoreline para Abortos. 

Durante os dois anos horrorosos em que tentara se misturar entre crianças trouxas e falhara miseravelmente. Sempre com medo de que descobrissem sobre ele ou sua família. Sempre tentando se adequar a uma cultura e um código social que desconhecia. Errando no modo de se vestir, de falar, de agir. Perdido no uso da tecnologia, nas referências culturais, nas disciplinas escolares. Inventando mentiras idiotas e pouco críveis sobre sua vida, sua família, toda sua história. Incapaz de se conectar e fazer amigos. O alvo fácil para todos que sabiam, mesmo sem saber o real motivo, que ele era um esquisito. Um esquisito assustado.

De certa forma, isso tornava fácil simpatizar com a Shoreline. Lá todos eram esquisitos, tentando entender o que trouxas estudavam, tentando aprender a usar suas tecnologias e a ser como eles. Frida dizia que bruxos tentavam empurrá-los para longe, ao invés de tentar incluí-los ou lhes dar a possibilidade de fazerem qualquer escolha efetiva sobre suas vidas. Dizia que aquela escola era uma piada, que não fazia sentido que a única disciplina bruxa que estudassem fossem uma “versão completamente equivocada” de História da Magia e que um dia aqueles prédios desabariam sobre suas cabeças, por falta de investimento para manutenção, e os bruxos provavelmente celebrariam.

Era provável que ela estivesse certa, por mais irritante que aquilo pudesse ser, a menina costumava ter razão. Ela era mais inteligente do que ele e o rapaz não tinha problemas em admitir isso. De qualquer forma, e por mais estranho que pudesse parecer, Louis gostava daquele colégio decadente. Era um lugar seguro – bom, se o teto não acabasse realmente desabando sobre eles, o que era de fato provável –, um lugar onde não precisava mentir, não precisava se preocupar com bruxos ou trouxas, não precisava sequer se esforçar. Um entre-lugar.

No início, odiara a atenção que todos o dedicaram por seu sobrenome. Odiara que aquele maldito legado o seguisse. Odiara que seu único desejo, ser invisível, não se tornasse realidade. Com o tempo, no entanto, decidira que tudo bem se quisessem gostar dele, mesmo quando ele mal dizia duas palavras. E tudo bem se quisessem o considerar um líder descolado e misterioso, quando era tão obviamente tão desajustado quando o restante deles. Decidira que a popularidade era melhor que o bulying e a abraçara. O que mais poderia fazer?

— Louis? — o pai voltara a chamar.

— Sim.

— Tem certeza que está bem?

Não.

— Sim. Por que não estaria?

— Você está quieto. Está quieto desde que chegou, ontem.

O garoto abriu um meio sorriso, finalmente encarando o homem ao seu lado.

— Pai, eu sou quieto.

— Está mais quieto do que o normal.

O menino apenas deu de ombros, incapaz de pensar em uma resposta. Bill suspirou.

— Às vezes eu gostaria de saber o que se passa na sua cabeça. Você passa tempo demais preso aí dentro.

— Não gostaria, não. — Louis sussurrou, incapaz de se conter. Mas o pai estava perto demais para que as palavras se perdessem no vento.

— Tão ruim assim?

Sim.

— Às vezes...

— Hoje?

Sim.

— Não.

— Então no que você está pensando?

Havia algo na voz do pai que o tocou. Uma espécie de medo. Ou tristeza. Ou ambos. Louis odiava ver sua família machucada. Os amava de todo coração. Era apenas difícil ser um deles. Ser um Weasley. E era difícil sentir que os decepcionava, mesmo que ninguém fosse efetivamente dizer essas palavras. Sentir que os preocupava e os machucava.

— Frida. — acabou respondendo, porque precisava de uma resposta. Não era de todo uma mentira. A menina estivera muitas vezes em seus pensamentos. Na verdade, fora a catalizadora de tudo aquilo.

— Frida?

— Uma colega da escola...

— Isso é sobre uma garota? — Bill questionou com um sorriso sugestivo.

Louis corou.

— Sim. Quer dizer, não. Não desse jeito. Ela é minha amiga. É minha melhor amiga. — não era uma mentira e perceber isso fez algo se aquecer dentro dele.

O pai continuou a sorrir. Dessa vez, de um modo menos “sugestivo”.

— Sabe, essa é a primeira vez que você fala sobre algum amigo ou amiga.

O rapaz sabia que era verdade. Não falava muito com seus pais sobre a escola. Nada além do essencial. O que era estranho, porque eles o ligavam todo dia. Seus pais bruxos que compraram um telefone e aprenderam a usá-lo, apenas porque seria mais fácil para seu filho aborto se comunicar. Seus pais que checavam diariamente se seu filho clinicamente ansioso estava bem. Eles eram bons pais. Mas Louis era um péssimo filho e mentia para eles o tempo todo.

Deveria sentir vergonha, especialmente após todas as histórias horríveis sobre os pais de colegas que chegavam aos seus ouvidos. Nem todas as famílias bruxas eram tão compreensivas quanto a sua, e ele precisava se lembrar de que era um dos sortudos. Ainda assim, havia algo no garoto que o fazia se fechar, se encolher, desejar simplesmente desaparecer. Sentia que sua simples presença poderia gerar incomodo ou vergonha e não queria trazer mais nenhum desconforto para sua família.

— E como é essa sua amiga? — o homem mais velho insistiu.

— Hum, legal. — o menino disse, passando uma das mãos pelos cabelos loiros.

— Apenas “legal”?

— Bom, não. — Louis sabia que o pai estava tentando estabelecer uma conexão e se sentiu mal por privá-lo disso. — A Frida é inteligente. Muito inteligente. E tem opiniões sobre tudo. E é impossível vencer qualquer discussão contra ela. Ela teimosa e determinada e divertida e teimosa.

— Você já disse isso.

O garoto deu de ombros.

 — Ela é teimosa. — era estranho perceber que ele queria falar sobre a amiga. Queria que o pai soubesse sobre ela. Queria que o mundo inteiro a conhecesse. — Uma vez ela se amarrou a uma árvore, que a direção do colégio havia decidido cortar. Aparentemente era uma árvore centenária, ou qualquer coisa com quem ninguém mais se importava. Mas ela ficou a noite inteira ali, amarrada aquela árvore imbecil, debaixo de chuva. Nós pegamos uma gripe terrível após isso, um milagre não ter sido uma pneumonia, tudo pela teimosia...

— Nós? — Bill o interrompeu, arqueando uma sobrancelha.

Louis sentiu o rosto esquentar e desviou o olhar.

— Bom, eu não podia deixa-la fazer essa estupidez sozinha, certo? E se alguém a atacasse no meio da noite? Se algum cara a atacasse? Deus sabe que não há como impedir a Frida depois que ela enfia alguma ideia naquela cabeça...

Bill riu.

— Então você passou a noite inteira, embaixo de chuva, amarrado a uma árvore?

O filho confirmou com um aceno de cabeça. Fora certamente uma das coisas mais imbecis que fizera na vida. Talvez devesse repensar toda a inteligência que atribuía à Frida.

— Você é um bom amigo, Louis.

Havia uma quantidade tão grande de orgulho na voz do pai que o garoto não soube o que dizer. Afundou uma das mãos na areia, brincando com seus grãos. Não conseguia encarar o ruivo.

— E o que aconteceu com árvore? — Bill Weasley estava decidido a não desistir daquela conversa.

— Continua viva. — Louis estaria mentindo se dissesse que não sentia certo orgulho sempre que passava por aquele maldito carvalho centenário. Era estranho saber que algo estava vivo, mesmo que uma árvore, por sua causa – Em algum ponto a direção da Shoreline aprendeu que é mais fácil ceder às exigências mais fáceis da Frida. Ela causa menos confusão assim. E, bom, nós conseguimos uma longa detenção, por toda essa história.

— É uma boa história.

— Talvez.

— Sua amiga parece uma pessoa bem interessante.

— Ela é, mas também é uma boa amiga. Uma amiga muito, muito boa.

— Fico feliz por ouvir isso. É bom ter bons amigos. — o homem estava sorrindo.

Louis sempre gostara do sorriso do pai. Do como transformava seu rosto, como fazia com que as cicatrizes se transformassem em coadjuvantes pequenas demais para serem notadas. Não se importava com as cicatrizes, crescera sabendo que elas eram um símbolo de coragem – e talvez por isso não se importasse com as cicatrizes que Frida tinha pelo corpo. Elas também eram um símbolo de coragem, não o fato de tê-las feito, é claro, mas o fato de superá-las diariamente. De ainda estar ali, viva. –, mas era sempre interessante perceber como um simples movimento de lábios podia transformar tudo. Quando desenhava o pai era sempre sorrindo, ou com a expressão que o homem assumia sempre olhava para a esposa. Aquele brilho no olhar que estava ali mesmo após mais de vinte anos de casamento. Aquele brilho que ele invejava um pouco.

— É...

— Então qual é o problema?

— Não há um problema.

— Esse crispar no canto direito da boca e esses dedos inquietos me provam o contrário.

— O que? — o garoto se assustou, finalmente voltando a encarar o pai.

— Você faz isso, quando algo está errado, desde que era uma criança. — disse com afeto.

— Faço? — nunca havia notado. — Você fica memorizando as expressões dos seus filhos? — não seria verdadeiramente estranho, afinal ele mesmo fazia isso com as pessoas, achava que era apenas por ser um bom observador e por gostar de pintar em seu tempo livre. Estava sempre memorizando cenas e expressões. Talvez fosse uma característica de família.

— Bom, Victoire sempre foi muito transparente sobre seus sentimentos e preocupações. E é difícil não perceber quando há algum problema com Dominique, porque ela sai por aí bufando como um dragão irritado e destruindo tudo no caminho. Você, eu e sua mãe, tivemos que aprender a ler.

O menino não sabia o que responder.

— Desculpe. — arriscou.

— Não precisa se desculpar. As pessoas são como são. Você foi mais quieto do que suas irmãs desde que era um bebê.

— Não é muito difícil ser mais quieto do que a Toire e a Minnie.

Bill riu.

— Não, não é. — ele concordou. — Então, acho que tenho alguma prática em saber quando há algo errado com você. Você não precisa me contar o que é, se não quiser. Mas estou aqui, se quiser conversar. Às vezes acho que você não sabe disso.

Louis sabia. Abriu a boca algumas vezes, tentando dizer alguma coisa, e então:

— Por que você nunca usa a palavra “aborto”? — surpreendeu até a si mesmo com o conteúdo de suas palavras.

— O que? — o homem parecia igualmente chocado.

Não havia como voltar atrás após o que havia dito.

— Por que você nunca usa a palavra “aborto”? Ou a mãe? Ou as meninas?

— E-e-eu, eu já devo ter usado...

— Não, não usou.

E não havia. Mesmo quando contaram a ele sobre sua falta se magia, os pais não usaram exatamente a palavra “aborto”. Falaram sobre como não era um bruxo. “É sempre sobre o que não somos, sobre o que não podemos fazer. Ninguém nos diz: ‘ei, você pode ser um astronauta ou um médico ou um artista ou um professor. Pode viajar o mundo ou pilotar carros de corrida ou começar uma revolução.’ Bruxos acham que não ter magia é uma sina de morte, uma tragédia, mas não é. Existem um milhão de possibilidades que eles escondem de nós. Isso é enfurecedor!”, as palavras irritadas de Frida ecoaram pela cabeça do rapaz, fazendo um meio sorriso se formar nos lábios dele. Ela estava certa, é claro, sempre estava.

De qualquer forma, o fato era que, grifinórios ou não, não havia Weasley no mundo capaz de dizer aquela palavra. Aquelas malditas seis letras. Havia sempre uma reticência, uma pausa silenciosa, um olhar sugestivo. Ninguém em sua família ousava dizer a palavra em voz alta. Aborto. Como se houvesse um mau agouro no termo. Como se pudesse contaminá-los. Como se fosse algo a ser temido ou para se envergonhar.

— Louis...

— Não é uma ofensa, sabe? É o que eu sou. Da mesma forma que você é um bruxo, e o termo não te ofende, eu sou um aborto, pai. — era a primeira vez que o próprio Louis dizia aquelas palavras em voz alta. Era estranho e assustador e real e bom.

Era um passo para longe das sombras da negação.

— Eu sei.

— E isso não é uma tragédia. — ele ainda não estava totalmente convencido disso, mas estava tentando.

Era um passo para longe das sombras do auto ódio.

— Eu sei.

— Sabe?

O homem parecia absurdamente constrangido.

— Louis, eu sinto muito se te ofendi ou machuquei de qualquer forma. Eu realmente sinto. — havia sinceridade, culpa e dor na voz do pai.

— Eu sei. — e de fato sabia. — Você é apenas um bruxo.

— Isso é ruim?

— Não é bom ou ruim, é só o que é. Você é um bruxo, provavelmente sempre achará que magia é o centro do mundo, porque é o centro do seu mundo, mas não é o centro do meu mundo. E ele não é pior por isso, é apenas diferente. — a última frase seria algo que Louis precisaria repetir a si mesmo mais algumas vezes. Mais algumas milhares de vezes. Sua mente sabia que era verdade, mas seu coração ainda precisava aprender aquela lição.

— Acho que posso aprender a ser um bruxo melhor. Na verdade, devo aprender a ser um bruxo melhor. E um pai melhor.

Louis balançou a cabeça negativamente.

— Pai, não! Está tudo bem.

— É óbvio que não está.

— Está. Sério. Não estou chateado ou magoado com você ou com ninguém. — e não estava, mas talvez estivesse. Era um sentimento conflituoso. Tudo era novo e confuso demais.

— Eu fico feliz por isso, Lou. Mas isso não quer dizer que as coisas estejam bem. Essa é a conversa mais longa e sincera que temos em muito tempo.

Era verdade e isso estava começando a se converter em um cansaço emocional para o menino.

— Isso não tem a ver com você usar ou não a palavra “aborto”. Eu mesmo a disse em voz alta, pela primeira vez, hoje. E só percebi que isso me incomodava há pouco tempo. Não estou ressentido ou magoado, só estou pensando em coisas. Entendo coisas. Descobrindo coisas.

— Coisas?

— Sobre o que é ser como eu.

— Um aborto.

— Sim, um aborto. — o menino sorriu — Sinto muito por não termos tido conversas mais longas nos últimos tempos, mas não é por qualquer coisa que você ou a mamãe tenham feito. Sou só eu...

— Você vai ter que explicar melhor do que isso.

O garoto suspirou.

— Alguma chance de você simplesmente deixar tudo isso de lado?

— Nenhuma.

— Ok. — ele pensou por meio segundo — Você já sentiu vergonha de mim?

— O que? É claro que não! — o homem respondeu energeticamente, como se a simples ideia fosse um crime. — Você acha que eu sinto vergonha de você?

— Esse não é o ponto, pai. — Louis tentou explicar.

— É claro que é. Você acha que eu sinto vergonha de você?

Aquela conversa precisava ser tão difícil?

— Não. Sim. Não. Talvez. Não sei. Não importa. O ponto é que eu sinto vergonha de mim. Sentia vergonha de mim. Bom, estou tentando não sentir. — era fisicamente doloroso admitir aquilo em voz alta, principalmente para alguém que ele sabia que iria sofrer com aquelas palavras. — E isso torna meu julgamento contaminado. Se eu sentia vergonha de mim mesmo, como poderia acreditar que o resto do mundo não sentia?

— Louis...

— Não! Não precisa dizer nada. Eu sei. Sei o que você vai dizer, mas não importa. Isso não é algo que possa desaparecer com afirmações amorosas. É sobre mim e a minha cabeça ferrada. Que pensando bem só é ferrada nesse nível, porque bruxos são uns imbecis autocentrados que se convenceram que eles, e sua magia estúpida, são o centro do universo e todo resto é sem valor e construíram uma merda de sociedade em cima de toda essa estupidez! — no fim ele estava quase gritando.

Louis conseguia visualizar Frida sorrindo orgulhosa em sua cabeça. A odiou por isso. A odiou por ter despertado aquela raiva nele, por tê-lo feito pensar, o arrancado de sua zona de conforto, o obrigado a enxergar as coisas como eram. A enxergar a si mesmo como um sujeito dentro de um contexto político e social. Um contexto que o moldava, torcia e arrancava seu valor. A amou por isso.

— Desculpe. — o rapaz pediu após respirar fundo.

— Não precisa se desculpar, você está certo. — o pai admitiu.

— Não precisava ter falado tão alto.

— Você tem o direito de estar irritado.

— Mas não estou irritado com você. Não especificamente. — talvez fosse verdade.

— Fico feliz em saber. Talvez devesse estar.

O garoto balançou a cabeça.

— O ponto todo, de tudo isso, é que por muito tempo eu estava com raiva apenas de mim mesmo. Raiva e vergonha. E eu acho que sentia que se deixasse que você ou a mamãe se aproximassem, vocês também sentiriam isso. Ou eu teria a confirmação que já sentiam. Porque como não sentiriam? E então havia aqueles momentos nos quais vocês me mostravam amor, preocupação e afeto tão genuínos que eram impossíveis de ser negados e eu só conseguia sentir que não os merecia. — o menino engoliu o nó que se formava em sua garganta. Não queria chorar, mas finalmente falar sobre tudo aquilo era tão difícil e tão libertador...

— Lou, olha para mim. — Bill pediu com a voz embargada. O filho obedeceu. Olhar os olhos azuis do pai, tão cheios de um afeto desesperado, o fez sentir prestes a quebrar. — Você é amado. Muito amado. E merece isso. Você merece amor. E eu entendo o que você disse. Entendo que te dizer isso hoje não será suficiente. Entendo que te dizer isso todos os dias, pelo resto da vida, não será suficiente, mas não duvide de que direi.  Mas você precisa ouvir e eu preciso dizer. Você é amado e merece esse amor. Eu amo você. E quero te ajudar a entender isso. E sinto muito por não ter te ajudado e entender isso antes.

— Pai, você não...

— Não. Você é a criança e eu sou o adulto.

— Eu não sou uma criança! — o rapaz protestou.

— Você é uma criança. Minha criança. Eu falhei com você. Falhei, porque sou um bruxo. E não importa o quão traidor do sangue, eu me considere, ainda sou um bruxo e há uma parte de mim que não conseguiria imaginar uma vida sem magia. Que vê a magia como o centro de tudo. E essa parte está errada e não deveria existir. E eu sinto muito.

Louis sentia que não havia nada que poderia dizer sem desabar em lágrimas e não estava pronto para chorar na frente do pai (ou de qualquer outra pessoa). Ainda não. Então apenas apoiou a cabeça nos ombros de Bill e segurou sua mão, fechando os olhos enquanto apreciava o contanto.

— Eu também te amo, pai. — o menino disse após alguns minutos de completo silêncio. Porque era verdade. Porque fazia muito tempo que não dizia. Porque o homem precisava ouvir. Porque ele precisava dizer.

— Às vezes sinto medo que você vá me escorrer pelos dedos, Louis. — Bill admitiu.

O garoto suspirou, porque havia uma parte dele que desejava isso. Que não queria nada mais do que desaparecer. Fugir de tudo o que estivesse associado à magia – e até mesmo à sua família – e nunca mais voltar. E, ainda assim, estava ligado a tudo aquilo de um modo tão intrínseco que sabia que nunca conseguiria se afastar. No fundo, queria apenas sentir que pertencia. Aquela conversa havia sido um começo. Nem de longe resolvera tudo, mas fora um começo.

— Sinto muito. Vou tentar ser mais aberto. Não garanto que vá ser fácil ou rápido, mas vou realmente tentar. — e iria, porque se dera conta durante aquela noite de como queria desesperadamente um relacionamento mais profundo com sua família. Com aquelas pessoas que ele amava e que o amavam. Um amor que ele merecia.

Bill segurou a mão do filho com mais força. Louis a apertou de volta, para assegurar que estava ali e não iria a nenhum lugar.

— E eu vou tentar estar aqui por você de uma forma mais sólida. E ser um bruxo melhor e menos idiota. Não prometo que vou sempre conseguir, mas vou mesmo tentar.

— Obrigado, pai.

— A sua mãe certamente também vai tentar.

Louis riu. Mas sentiu uma pontada de culpa ao pensar em como Fleur se sentiria quando o marido lhe contasse sobre toda aquela conversa. Certamente se sentiria péssima e culpada. A mãe que tentava quebrar suas muralhas mais do que qualquer um. Que comprara uma quantidade absurdamente exagerada de telas e tintas quando ele comentara que pintar o ajudava com sua ansiedade. Que, após presenciar pela primeira vez um ataque de pânico do filho, conseguira montar em tempo recorde uma lista gigantesca com o contato de meio mundo de psicólogos e psiquiatras trouxas que possuíam algum contato com o mundo mágico – por casamento ou por terem parentes bruxos. Que amava de uma forma tão intensa e leal. Precisaria conversar com ela. Mas não hoje. Estava emocionalmente esgotado e não conseguiria ter nenhuma conversa hoje. Não conseguiria fazer nada além de deitar em sua cama, se enrolar em si mesmo e dormir por 12 horas seguidas.  

— Ela certamente vai.

— Você está bem? — Bill questionou após alguns minutos de silêncio.

— Apenas cansado. Exausto, na verdade.

— Vem. — seu pai disse se levantando e o ajudando a fazer o mesmo — Vamos para casa.

— Sabe, amanhã vai ter um jogo dos Saracens. Você pode assistir comigo, se quiser. — Louis sugeriu, porque sentia que, após tudo o que fora dito, precisava fazer um movimento concreto em direção a alguma mudança.

— Eu adoraria. Rúgbi é um esporte muito interessante.

— Sabia que um aborto foi responsável por popularizar o rúgbi entre bruxos?

— Na verdade, não.

— Angus Buchanan. Ele jogou pela seleção escocesa. — o garoto não sabia por que estava falando aquilo. Apenas sentira vontade de dividir a informação. Manter algo parecido a uma conversa casual.

— Isso é muito legal.

— É mesmo. Frida me fez ler a biografia dele. Minha Vida Como um Aborto. O título é idiota, mas acabou sendo uma leitura bem interessante.

— Talvez você devesse chamar sua amiga para vir te visitar durante o verão.

Não era uma ideia ruim. Na verdade, era uma ótima ideia, afinal Louis já estava começando a se pergunta como passaria todo aquele tempo longe de Frida. Era estranho o modo como a garota entrara em sua vida e se tornara tão importante para ele. Sua melhor amiga. Alguém de quem ele não queria se separar.

— É, talvez.

Bill riu baixinho.

— Sabe, estou orgulhoso de você. — o homem declarou.

Louis o encarou, erguendo uma sobrancelha.

— Por quê?

— Por ser o tipo de pessoa que se amarra a uma árvore, durante uma tempestade, pela sua melhor amiga.

— Não foi grande coisa. — o menino desviou o olhar, sentindo o rosto esquentar. Não era bom com elogios.

— É claro que foi. Tenho certeza que a Frida também pensa assim. E estou orgulhoso. Você vai ter que aceitar o elogio.

O rapaz sorriu minimamente.

— Obrigado então.

Pai e filho inda estavam sorrindo quando adentraram o Chalé das Conchas.

— Tudo bem? — Fleur questionou, tirando os olhos de um livro.

— Tudo. — Louis respondeu. Era apenas meia mentira. Não estava perfeito, mas também não estava terrível. Na verdade, pela primeira vez parecia haver alguma esperança de que as coisas melhorassem.

— Isso é bom. — a mãe lhe sorriu.

— É muito bom.

E realmente era.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! ♥
Beijinhos,
Thaís



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