Invisíveis. escrita por Blue Cupcake


Capítulo 1
Único




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INVISÍVEIS

Blue Cupacke

Jonas acordou com os primeiros raios de sol da manhã. O céu estava com poucas nuvens mas um vento gelado lhe atingia até os ossos. Ele se cobriu mais com cobertor puído, esfregando os olhos tentando espantar o sono.

O chão era duro e frio, porém ele não sentia isso graças às várias camadas de papelão. O lugar onde dormia era protegido da chuva pela cobertura de toldo de uma loja antiga, há muitos anos fechada, o prédio abandonado. Ele olhou em volta, checando se estavam todos bem.

O velho louco, a quem todos chamavam assim, não aparecera para dormir aquela noite. Aquele homem era um mistério, jamais contara sua história ou como viera parar ali, apenas ficava juntando tampas de garrafas que achava nas ruas, enquanto pedia trocados nos semáforos. Ninguém sabia ao certo o porquê, mas haviam boatos de que o filho do homem, provavelmente sua única família, costumava colecionar as tampinhas quando criança, antes de abandoná-lo.

Carlos, um homem negro e corpulento parecia até indefeso de olhos fechados, ainda dormindo profundamente.  Começavam-lhe a surgir os primeiros fios brancos, mas ainda assim era o mais temido e amado por todos. Conseguia acabar com qualquer briga que surgisse no grupo com sua voz grave e imponente, e, momentos depois, ouvir a história de cada um, demonstrando atenção e certo afeto pela comunidade. Ele perdera a esposa, única família que ainda possuía, e acabou por afundar. Todos sabiam que ele carregava uma foto 3x4 da mulher no bolso da camisa esfarrapada para qualquer lugar que ia. Um dia, Felipe, o encrenqueiro, sumira com a foto enquanto ele dormia, caçoando do homem. Felipe acordara com Carlos apoiando uma faca em seu pescoço no dia seguinte e, após molhar as calças, a devolveu.

O rapaz de dezessete anos era, definitivamente, um problema. Com sobrancelhas muito arqueadas, olhos verdes e uma expressão desafiadora, recebia antipatia de quem quer que fosse. Fugira de casa muito novo, escapando do pai violento, e já fora preso algumas vezes, no período mais longo, por três meses. Era o único do grupo que praticava pequenos furtos e sempre aparecia com um celular, joias ou dinheiro no bolso. Na maior parte das vezes, era pego pela polícia. Namorava uma menina estranha, Clara, que às vezes aparecia por ali. Ela claramente era usuária de drogas, os outros perceberam, ao ver que ela nunca conseguia parar de coçar os braços, arranhando-os. Tinha cabelos pretos curtos e arrepiados, e usava roupas sujas e esfarrapadas normalmente. No entanto, sempre que vinha ver o namorado, colocava um vestido roxo que parecia quase limpo. Os dois geralmente jantavam algo juntos, bebiam muito e depois iam fazer farra pela cidade. Naquela manhã eles estavam ali, dormindo agarrados sob o cobertor. Clara tremia um pouco, de frio ou do efeito de alguma substância. Jonas admirava o rapaz, de certa maneira. Filipe nunca usara drogas e tentava claramente afastar a menina disso, muito embora suas tentativas fossem falhas.

Dona Helena se levantou pesadamente, indo até o arbusto mais próximo para vomitar. Provavelmente tinha enchido a cara na noite anterior, assim como ia encher hoje. Todo o dinheiro que a senhora de 67 anos conseguia, usava para comprar pinga barata. Quando estava sóbria reclamava de tudo, e, quando bêbada, reclamava um pouco mais. Ela largara o marido abusivo e, sem emprego e sem lugar para onde ir, fora acabar ali no bando, junto a eles. Em uma noite de bebedeira, atirou garrafas na casa do ex-esposo e berrou todos os xingamentos possíveis. Felizmente, Carlos apareceu para acalmá-la e levá-la embora antes que alguém chamasse a polícia. Foi o único dia que Jonas viu Dona Helena chorar, não sabia se de raiva ou de desgosto.

—Bom dia Dona Helena. – Disse Jonas, quando a velha voltou. Ela fez um esforço pra se deitar de novo, resmungando da dor na coluna.

—Vai chover de novo. – Rabugenta, apontou pras poucas nuvens no céu. – E vai alagar tudo essa merda de novo.

—Não vai, não. – Jonas murmurou, revirando os olhos.

—Tem algo pra comer aí, rapaz?- Pediu. Jonas lhe atirou um pedaço do sanduiche que tinha comprado no mercado no dia anterior. – Cê é um anjo. – A velha agradeceu e se aquietou por uns momentos.

—Você viu a Cristina? – Jonas perguntou. – Ela voltou ontem?

—Voltou, mas já saiu. Essa pentelha me acordou, fazendo a maior barulheira com as sacolas pra pegar as balas. Tá vendendo já... – Jonas assentiu.

Cristina era uma menina com pele cor de avelã e olhos negros profundos. Tinha um cabelo crespo, que mantinha preso num coque alto, era magricela e possuía um jeito tão descontraído que não conseguia irritar ninguém, exceto Dona Helena, que sempre se irritava com todos. Era a pessoa mais próxima de Jonas, e a que ele conhecia mais a fundo. Sua mãe sempre fora muito pobre e, desde pequena, ela vendia balinhas nos sinais. Essa mínima forma de renda lhe garantia sustento, até que sua mãe faleceu e ela, maior de dezoito anos, não tinha mais para onde ir. Apenas continuou fazendo o que sempre fazia e então conhecera o grupo por meio de Carlos, que a tratava como uma filha que nunca teve.

—Se bem que aquelas balas ela daria de graça pra você. – Sorriu a velha, maliciosamente. – E outras coisas.

—Você não tem o que fazer, Dona Helena? – Jonas perguntou-lhe, seco.

—O povo fica indignado com verdades. – Resmungou ela, mordendo o sanduíche.

Conforme a manhã passava, os outros iam acordando. O primeiro foi Carlos, que desejou bom dia com sua voz grave e logo saiu- Jonas tinha a teoria de que ele estava tentando arrumar um bico em algum lugar. Depois Felipe acordou e começou a comer o banquete que tinha comprado no dia anterior – provavelmente com um dinheiro roubado. Clara, a quem ele acordou com um beijo na bochecha, logo começou seu hábito de coçar os braços. Ela queria se levantar e ir a algum lugar – provavelmente se drogar para se acalmar- mas Felipe segurou sua mão e lhe pediu pra ficar, com olhos muito emotivos. Ela ficou inquieta e Jonas desviou o olhar da cena, sentindo que não deveria estar assistindo aquilo.

—Bom, - Dona Helena pigarreou e se levantou. – Depois dessa novela, vou conseguir meu pão de cada dia. Ó, sua namorada está chegando. –Disse, antes de ir embora.

Jonas virou-se para olhar e viu Cristina atravessando a rua. Assim que os olhares se encontraram, ela lançou um sorriso a ele.

—Oi! – Deu um beijo estalado na bochecha de Jonas. – Tudo bem?

—Tudo. Senta aí. – Ele abriu um espaço no papelão pra ela. –Vendeu muito?

—Cê nem acredita! – Ela sacudiu a caixa vazia na frente dele. – ou, tu lembra daquela patroa que passa todo dia, do carro prateado e do crucifixo no espelho? – Jonas fez que sim. – Ela me tratava como se fosse um inseto... E advinha?

—Ela comprou as balas? – Jonas chutou. 

—Mais do que isso. – Ela tirou algo de uma sacola plástica, três regatas cor de rosa surradas. – Olha o que ela me deu.

Jonas segurou o riso.

—Disse que tinha ido na igreja ontem e que precisava ajudar o próximo. – Cristina ergueu uma sobrancelha. – Depois de me chamar de vagabunda dois dias atrás, me deu essas coisas velhas pra ir pro céu. Nem pra ser um casaco pra esquentar... – Cristina olhou para o presente, desgostosa. – Eu vou é queimar essa porra, vai que tem uruca.

—Eu faria o mesmo. – Jonas sorriu e então, os dois caíram no riso.

—É ilegal vender coisa no sinal, vou chamar as autoridades! – Ela imitou em uma voz finíssima. – Arranje um emprego decente, vagabunda! Mi mi mi... – Ela revirou os olhos. –Ela deve ter tanto dinheiro... Até enfiado no rabo, pra falar desse jeito.

—Você, definitivamente, tem muita paciência com essas pessoas. – Jonas observou.

—É, é meu ganha pão... Já você não precisa disso, não é mesmo? – Cristina lhe deu uma cotovelada leve. – Você é “A expressão artística das ruas”, hein?- Jonas riu. – É Cult. E todo mundo acha lindo.

—Talvez um dia você possa fazer os malabarismo comigo, assim não tem que aguentar esses perrengues. – Jonas sugeriu.

—Mas nem pensar, eu iria é acertar os carros, e não quero polícia pro meu lado. – Ela fez o sinal do espírito santo.

—E o que você vai fazer quando estiver cansada de vender balinhas? – Ele ergueu uma sobrancelha.

—Vou fazer que nem Dona Helena. – Respondeu-. Vou bater nos vidros até que a pessoa me dê moedas e vou comprar umas biritas.

Os dois caíram no riso.

Ele sentia-se muito confortável com Cristina, não sabia por que. Apesar de ter conhecimento que a menina era apaixonada por ele, ele a via como irmã mais nova, com quem sempre podia contar e dar umas risadas da vida difícil que levavam. Ela, por outro lado, quando via os olhos castanhos claros dele, derretia-se por dentro. Às vezes, quando já tinha cumprido a meta do dia, ia vê-lo fazer os malabarismos, observando secretamente o homem sem camisa e com os dreads balançando, os olhos focados e a mente concentrada em não deixar os objetos caírem.

Cristina o conhecia como ninguém. Ele tinha uma história parecida com a dela, desde que se via por gente, passava necessidade. A mãe tinha falecido ao dar a luz e o pai o criou, fazendo bicos aqui e ali. Quando o homem começou a envelhecer e não ter mais pique, os dois acabaram na rua, o velho e o menino de onze anos. Um dia, o velho chegara animado, e acordara Jonas.

—Moleque, olhe o que eu consegui!

O pequeno Jonas abriu os olhos e viu a expressão animada do pai. Ele segurava um bilhete muito colorido.

—Que é isso? – Perguntou, bocejando. O pai tinha um sorriso imenso nos lábios.

—O circo está na cidade, moleque. – explicou. – Eu juntei uma verba e taí seu presente de aniversário atrasado.

—O que tem lá? – Jonas segurou o bilhete com muito cuidado, olhando-o curiosamente.

—Eu nunca fui. – Admitiu o pai. – Mas ouvi dizer que tem tigres, equilibristas e... Elefantes! E uma bela moça que anda na corda bamba...

O jovem Jonas olhava extasiado para o pai e, ao mesmo tempo, sem saber como agradecer o pai por dar-lhe algo que ele mesmo nunca tinha tido.

—É hoje à noite. – O velho explicou. – Eu vou te levar até a porta e te espero lá depois. Assista tudo atentamente e lembre-se de me contar cada detalhe depois, Jonas!

E ele contara. O velho ficara imaginando e sonhando a noite inteira, assim como o jovem. Jonas decidiu que alguma coisa ele ia aprender daquilo.

Anos depois o pai falecera e Jonas, sendo maior de idade, assim como Cristina, foi deixado na rua. Aprendeu a conseguir dinheiro fazendo malabarismo em semáforos e percebeu que as pessoas gostavam daquilo, e não lhe davam olhares – tão - feios ao lhe pedir dinheiro.

Jonas olhou em volta, o movimento de carros começando.

—Acho que é minha hora. Tenho que ir.

—Não entendo porque vai tão cedo. – Resmungou Cristina. – Nem tem tanto carro a essa hora.

—Ah... As pessoas são mais simpáticas. – Respondeu-lhe. Pegou seus materiais e saiu, caminhando em direção à avenida.

Tinha uma razão para ele ir tão cedo, mas ele jamais compartilharia com Cristina, ou com qualquer um dos outros.

E a razão estava chegando em seu carro vermelho.

Ela tinha olhos grandes muito azuis e um cabelo louro cacheado. Estava sempre com uma mochila rosa no colo, o que significava que ela ia à faculdade. O pai dela dirigia o carro, gordo e sempre com uma expressão carrancuda e falando no celular, estressado com alguém.

Quase todo dia, aquele carro parava no sinal e ele começava seu show. Sempre que possível, quando terminava, agradecia olhando para ela, que prestava atenção todas as vezes. Era o primeiro carro que ele pedia. Ele chegava perto da janela e olhava-a nos olhos, sem conseguir desviar.

O pai, pensando em outras coisas, abanava a mão e murmurava para que a filha pegasse algumas moedas e entregasse a “esse cara”. Ela abria o vidro e, sorrindo com seus dentes perfeitos, lhe dava bom dia com os lábios avermelhados. Então, estendia a mão pra fora e lhe entregava as moedas, sem medo que a pele dos dois se encostassem, como tinham as outras pessoas.

Um dia – Ah, ele sonhara com aquele dia tantas vezes. – ela tinha feito o usual, mas logo após o bom dia, lhe disse:

—Foi muito bom hoje, parabéns!

Jonas sentiu que sua fala tinha travado, mas conseguiu responder:

—Obrigado.

E então o sinal abrira e ele viu o carro indo embora, os cabelos cacheados dela de costas, pelo vidro de trás.

Nesse dia, ela parou de vir no carro, para a frustração de Jonas. Este se encontrava só com o pai dentro, xingando o trânsito. Jonas se perguntou o que teria acontecido, até que dois dias depois a viu andando pela rua, indo a pé à universidade. Ele estava na calçada, sentado, descansando depois de duas horas de apresentação seguidas. Ele olhou para o lado e a viu, vindo em sua direção na calçada. Usava uma calça jeans clara, blusa florida e tênis. Carregava dois cadernos no braço e trazia a mochila nas costas.  

Assim que ela se aproximou, Jonas acenou com a mão. Esperava pelo menos um sorriso de reconhecimento.

Ela o olhou de forma gélida e continuou a andar olhando para frente, quase como se não o tivesse visto ali. Jonas a olhou indo embora, os cachos louros batendo nas costas.

Nesse dia, sentiu que ficara invisível para ela, mas ele estava enganado.

Ele, Carlos, Dona Helena, Felipe, Clara, o velho louco e Cristina... Todos eles.

À todos os olhares que não fossem deles mesmos, eles sempre foram e sempre serão invisíveis.


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Notas finais do capítulo

Bom, isso é uma viagem que eu tive enquanto andava de carro pela cidade e me deparava com grupos iguais ao de Jonas.
Todos os personagens saíram da minha cabeça, assim como suas histórias de vida.
Espero não ter sido fantasiosa, pois a minha intenção com essa história era trazer esse triste relato da realidade.
Críticas?
beijão,
blue cupcake



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