Altivez Criativa escrita por Juarez Weiss


Capítulo 3
Pária


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo fluiu pelos meus dedos antes que eu pudesse contê-lo.

Espero que gostem.



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Talvez sua tristeza justificasse sua solidão.

 

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Lentamente, sentou-se no banquinho de madeira e se aconchegou. Esticou sua mão para frente, afim de encontrar as letras gravadas no piano: ADAMS. Com a ponta dos dedos, foi contornando cada uma delas, parando finalmente no “s”. Fazendo então uma linha reta na vertical, desceu sua mão e posicionou-a diretamente em cima da tecla que ali estava. Sabia, por costume, que aquele era o Dó principal, e sempre partia desta posição para encontrar o restante.

 

Então, com a mão direita, retrocedeu um tom e um meio tom, deixando o polegar em cima do Si bemol. Com a mão esquerda, posicionou 3 dedos: em Ré sustenido, Sol e Lá sustenido. Respirou fundo e começou a tocar.

 

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Enquanto cego, aprendera que a música agia diretamente na mente, mesmo sem intenção ou até mesmo inconscientemente. Por costume, mantia os olhos fechados enquanto tocava, e uma procissão de imagens e lembranças voavam diante de seus olhos, cada acorde um novo flash, cada flash uma inspiração para continuar tocando. Aprendera a sentir com os ouvidos e ver com os dedos, uma realidade além-mundo, com cores distintas das reais, palavras desconhecidas, sons exóticos.

 

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Ouviu 3 pancadas firmes na porta da cozinha, e interrompeu sua música. Aguardou, atento, uma nova chamada, e assim se fez: 4 novas pancadas. Agilmente, conhecedor de seu território, levantou-se e dirigiu-se para a porta da sala. Após quatro passos, ergueu a mão esquerda e fez contato com algo pendurado no teto: um objeto que, apalpando-se, lembrava o número “3”. Largou então o objeto, avançou três passos e virou para a esquerda. Mexeu a mão direita e encostou na parede, onde continha um número “6” de metal. Avançou seis passos à frente, ergueu a mão e alcançou a maçaneta da porta de entrada.

 

Abriu-a e uma brisa fria atingiu seu rosto, faceira e brincalhona, como uma criança que só estava a espera da porta se abrir para pregar um susto no morador. Após brincar um pouco em seu rosto, a brisa-criança avançou para dentro da casa, firme e sagaz. O morador não tentou detê-la.

 

Sentia que tinha alguém parado ali, no lado de fora, e esperou a pessoa se identificar. Como não houve iniciativa alguma, inspirou profundamente e soltou o ar em forma de palavras ríspidas:

 

- Quem está aí?

 

O som saiu feito chicote feroz, palavras duras e ameaçadoras. A resposta veio em forma de voz feminina.

 

- Eu... eu estava ouvindo o senhor tocar e resolvi...

- Saia daqui se não tem algo importante a dizer.

 

Sentiu a moça a sua frente prender a respiração, assustada. Ouviu então um par de pés triturar algumas pedras no chão ao darem meia volta, e a moça partiu, num andar rápido e envergonhado. O som dos passos foi esvanecendo, e ele ficou na porta, rígido, ouvindo atentamente se os pés voltariam ou se mais alguém se aproximava.

 

Ninguém se aproximaria, ele sabia. A Rua das Lamentações era mal dita por toda a cidade graças à sua fama de grosseria e rispidez. Mesmo as cartas tinham medo de chegar àquele endereço, talvez por receio do encontro ou porque os entregadores decidiram evitar para sempre pisar naquele lugar novamente. Era uma casa feia, mal pintada e descuidada, o jardim era malfeito e enfeiava todo o ambiente, que já era desolador.

 

Houve uma vez em que a vizinhança, num ato de misericórdia nunca antes visto, juntou-se em massa para um mutirão de limpeza daquele local, afim de ajudar o morador e também deixar a vista da rua mais apresentável... acabaram sendo expulsos a vassouradas pelo anfitrião. Um dos envolvidos, inconformado com a falta de respeito do pianista diante de um ato de caridade, cuspiu em seu rosto e chamou-o de delinquente. O que se seguiu, até as velhas senhoras tinham receio de comentar em suas conversas de fim de tarde: com toda a força que pôde concentrar, o artista bateu com o cabo da vassoura direto no rosto daquele homem, fazendo seu nariz quebrar e dando-lhe passagem direta ao hospital mais próximo, onde foi aos berros.

 

Hoje em dia, mais ninguém se aventurava a chegar perto daquele lugar maldito: era como uma casa abandonada, a qual volta e meia se ouvia um piano etéreo sendo tocado, triste, avassalador, profundo. Como uma história de terror, era como um som que precedia uma aparição de outro mundo, um espírito do mal, ceifador de almas... e assim, o pianista foi esquecido, amaldiçoado pelos conterrâneos, alvo de fofocas todo dia recicladas: um pária na cidade.

 

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A moça tinha, de fato, ido embora, e ele fechou a porta sem cerimônias e voltou ao piano.

 

Cada corredor, cada parede, cada móvel ressoava ao som do instrumento, reforçando a solidão e esquecimento ali gravados, talhados na construção, no chão, em seus olhos perfurados.

 

Uma lágrima de raiva contida desprendeu-se dos cílios e escorreu por seu rosto, enquanto bradava um agressivo “1812 Overture”, de Tchaikovsky.

 


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