O escravo e a Criatura escrita por Boss


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Olá! Vendo alguns documentos antigos encontrei essa história e decidi posta-la. Sempre li ( e escrevi) histórias baseadas em mitologias grecoromanas, egipscias, celticas e nordicas então achei que seria legal fazer algo baseado no folclore brasileiro pelo menos uma vez, ai esta o resultado.
Aproveite!



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Estar no meio da noite e dentro de uma floresta fechada deveria ser o bastante para aterrorizar qualquer um, ainda mais nessa parte da floresta em particular onde a maior parte dos fazendeiros foi e nunca mais voltou, mas ele não. Até porque ele não era fazendeiro pra desaparecer no meio do mato e depois... bem e depois quem iria sentir a falta dele?

Não é que não tivesse família, haviam pelo menos três meio irmãos vivos na fazenda, outros três vendidos no mundo e mais três debaixo da terra, então aonde quer que fosse era certo que encontraria alguém da família, por outro lado com tanto irmão espalhado por aí quem iria sentir falta de um único sumido?

Não era um pensamento pra lá de reconfortante, ainda mais se soubesse que para onde quer que fosse teria uma vida dolorosa e sofrida então talvez ele devesse torcer para desaparecer na floresta como os outros, mas bem, ele não era um maldito fazendeiro, não é? Então não ia sumir, então ele estava seguro certo?

Certo? O que ele estava pensando mesmo?

No fim não importava;

Se ele sumisse ou voltasse não importava;

 Se ele vivesse ou morresse não importava.

Haviam tantos que ele não fazia falta.

Por isso que no meio do mato, cada vez mais espeço e onde as luzes da lua e das estrelas eram mais escassas ele não tinha medo de nada.

Quando a lua começou a descer do céu e o brilho das estrelas desapareceu completamente entre as copas exuberantes das árvores e o som de assobios meio humanos meios chiados de cobra se sobrepôs aos coaxar dos sapos e o cantar dos grilos ele decidiu que não valia a pena continuar andando e subiu na árvore mais próxima.

A subida foi desafiadora no mínimo, não havia luz para ajudar a encontrar as brechas no caule e o tato tinha seus limites, ainda assim, com paciência e perseverança ele conseguiu se alojar em uma interseção de dois galhos grossos que lembravam levemente uma rede dura e áspera, mas boa o bastante para passar o resto da noite.

Ele não sonhou, pelo menos achou que não estava sonhando, haviam batuques rítmicos que ele nunca ouvira mas lhe pareciam absurdamente familiares e haviam danças e cores vibrantes em um chão de areia leve que se elevava junto com os pés e pernas enquanto eles trocavam de lugar com as mãos e braços, a voz de um velho ecoava em coro com tantas outras em uma língua que ele nunca ouvira e a luz intensa da fogueira era real o bastante para ele sentir o calor e ouvir o crepitar.

No fim ele não soube o que de fato o acordara, provavelmente a luz intensa direto nos olhos fechados, mas ele tinha de admitir que o silêncio da mata normalmente barulhenta e o calor de um dia de sol foi o que o sobressaltou a sua frente estava acocorado um demônio com cabelos de fogo e olhos negros como a noite.

Ele queria ter gritado, saltado da árvore e corrido até voltar a fazenda de repente entendendo o que acontecera com os fazendeiros que vieram antes dele. Em vez disso ele se sentou de boca aberta encarando o ser que parecia meio aborrecido meio curioso no galho a sua frente. Depois de um momento de silêncio tenso onde ele tinha certeza que o demônio podia ver o próprio reflexo nos seus olhos a criatura finalmente falou.

“Olha só, até parece que pode me ver...” ele disse em um tom reflexivo, como se falasse um pensamento para si mesmo.

“Eu posso” ele conseguiu pronunciar em um sussurro, como se também fosse um pensamento para responder o outro.

Houve um novo período de silêncio, ele pode notar os olhos negros se arregalarem em surpresa com a resposta, a criatura pareceu analisar todo o desconhecido, dos cabelos rentes ao couro cabeludo aos pés calejados.

“As pessoas normalmente não me enxergam, eles podem ouvir meus assobios, ver e sentir os resultados de minhas ações, mas não costumam me ver” o demônio falou como se explicasse sua presença ao outro, ele piscou um par de vezes ainda tentando saber se era sonho ou realidade antes de responder

“Eu não sou uma pessoa, sou um escravo” disse por fim também tentando explicar algo a criatura.

“Ah! Faz sentido então” o demônio disse e sorriu satisfeito consigo, em um movimento rápido ele saltou da árvore com uma cambalhota e caiu no chão de terra preta. Ele teve inveja das acrobacias da criatura, mas continuou calado pensando no que aconteceria a seguir. O demônio seguiu seu caminho entre as árvores e só quando o último resquício de sua cabeleira em chamas sumiu foi que o escravo ouviu um assobio meio humano meio chiado de cobra que era a voz do demônio.

“Eu sou o Curupira”

“E você seria sábio se nunca mais entrasse nas minhas terras”

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Quando se encontraram novamente ele já não era mais um escravo vagando sem rumo em uma floresta densa e assustadora.

Agora ele tinha seu próprio cavalo e até um lampião com uma bela vela para iluminar seu caminho obscurecido pela redoma de poluição que impedia o brilho da lua e das estrelas de forma mais eficiente que qualquer copa de árvore expeça. Já quase não havia mata por essas terras, mato com certeza, muitas plantações de soja e milho e grama para gado, mas não aquelas arvores de troncos grossos e ásperos que poderiam servir de rede por um resto de noite, era meio triste, meio emocionante porque muito havia mudado e nem tudo era ruim.

No meio da escuridão da noite a luz forte de uma fogueira e o calor de uma tarde quente eram facilmente identificados e por um momento ele se sentiu novamente como um escravo perdido quando encarou aquele demônio com cabelos de fogo uma vez mais em sua vida (ou não vida, certas coisas ficaram mais confusas depois daquela noite), o demônio sorriu e por mais que não fosse algo maligno por natureza as sombras o tornaram aterrorizante.

“Olha só, o escravo” ele disse com aquele mesmo tom de pensamento o sorriso nunca abandonado os lábios.

Ele gastou um bom tempo encarando aqueles olhos negros se perguntando se o demônio via o próprio reflexo nos seus olhos da mesma forma que ele via o seu nos olhos dele.

“Não sou mais um escravo apesar de continuar não sendo uma pessoa... Acho que sou um pouco parecido com você Curupira” ele disse por fim, a última parte saindo como uma reflexão tardia.

O sorriso do demônio aumentou e se tornou realmente assustador agora, o cavalo relinchou em protesto e o Negrinho do Pastoreio precisou de muitas palavras gentis para convence-lo a não sair correndo na direção oposta, por que mesmo com esse sorriso e com o alarme do seu fiel companheiro ele não temia o outro.

“Bem, sendo sincero não sei se te parabenizo ou te dou as condolências, então que seja apenas um breve ‘bem-vindo’ certo?” o demônio disse por fim virando-se e ignorando o ex-escravo e seu companheiro completamente.

O cavalo inclinou a cabeça interrogativamente e o Negrinho sentiu que fazia o mesmo em sua mente, parte dele estava feliz em rever uma criatura tão esplêndida e única, parte dele estava surpresa por faze-lo em um lugar tão escasso de mata e uma terceira parte estava se perguntando o que ele estava fazendo ali.

O cheiro de fumaça e o fogo que surgiu com o movimento de mãos do Curupira respondeu sua pergunta e mesmo que não houvesse uma batuta o Negrinho soube que o demônio era o regente daquela sinfonia de calor e crepitar. Ao longe ele podia ouvir os gritos desesperados de alguns fazendeiros e sirenes de vários caminhões de bombeiros, mas ele sabia que nada apagaria esse fogo por um bom tempo.

Diante do fogo o Curupira parecia ainda mais estonteante, como uma criatura realmente vingativa e cruel, mas ao mesmo tempo ele era triste e melancólico como se soubesse que suas chamas e travessuras já não impediriam o inimigo, seus truques estavam obsoletos e, assim como essas chamas, um dia ele iria ser apagado.

O Negrinho não teve tempo de se apiedar do agora colega de profissão, em um movimento de chamas ele pode ver as frondosas copas das árvores e uma mata fechada muito familiar, engolindo em seco ele percebeu o olhar sábio e antigo que Curupira lhe deu antes de virar as costas para ele novamente.

Sorrindo o demônio desapareceu em meio as chamas e quando o cavalo finalmente convenceu o Negrinho a partir ambos puderam ouvir um assobio meio humano meio Chiado de cobra no vento que fez ele sorrir enquanto seguia seu caminho.

“Muito bom revê-lo, mas lembre-se:

Você seria sábio se nunca mais entrasse nas minhas terras”

O cavalo relinchou no que parecia um bufo muito humano, seu colega nunca demonstrou um pingo de sapiência em toda sua existência.


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