Entre nós e as luzes escrita por Clarisse Hugh


Capítulo 1
Cinco vezes p.a. - Região Norte




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Círio de Nazaré, Belém – PA

 

— Atena, pelo amor da Santa, larga já desses livros e venha me ajudar! Peste!

A loira, de alguma forma, encontrou um meio de revirar os olhos enquanto finalizava rapidamente a leitura daquela página, devorando cada linha com a fome de conhecimento que latejava em seu peito e encontrava expressão na velocidade em que corria a vista pelas linhas escritas.

Apesar da leitura interrompida, quando fechou o livro tinha em seus lábios o mais belo dos sorrisos (e a mente profundamente mergulhada na história).

— Pronto, tia. Em que posso ajudá-la? Quer que eu fique na recepção de novo?

— Isso, minha filha! Os hóspedes todos estão chegando hoje e você sabe que não posso contar cem por cento com Perséfone no que diz respeito aos trâmites administrativos, especialmente não com os jardineiros trabalhando lá fora. Ela insiste em interrompê-los para mexer ela mesma nas roseiras! Mas, o que posso fazer? Toda errada ela não está, pois se não sou eu intervir também na arruaça feita em minha horta, aquelas cozinheiras desatentas estragariam toda a minha plantação de tomates, veja se pode!

A loira ri dos costumeiros excessos e afobação de sua parente mais próxima e devolve o exemplar de capa dura em sua organizada estante antes de encaminhar-se para seu mais novo afazer.

— Pode ficar tranquila, senhora Deméter, vou auxilia-la nos registros das entradas. Se precisar de mais alguma coisa, sabe onde me encontrar...

Deixou o cômodo ajeitando seu vestido de alcinhas florido, sem se esquecer de pegar os folhetos atualizados da programação do Círio para distribuir aos recém-chegados no hotel.

~*~

Depois de cinco check-ins seguidos nos últimos trinta minutos, Atena se permitiu pegar sua revista escondida na gaveta para distrair-se um pouquinho enquanto mais pessoas não se aproximassem. Mal havia finalizado o editorial, quando ouviu sua prima exclamar, do lado de fora:

— Hades, você voltou!

— Eu disse que retornaria, não? – O homem pálido exibia um cabelo escuro, cheio e cacheado, e sua voz, mesmo que baixa, era profunda como o negro em suas vestes.

— Então este é o famoso Hades... – Atena murmurou consigo mesma, logo dando a Perséfone um pouco de privacidade e voltando sua atenção aos demais membros da pequena comitiva que acabava de chegar.

Uma mulher régia acompanhava o hóspede que ganhara os afetos da filha de Deméter na última temporada. A senhora ostentava marcas do tempo em seu rosto e os cabelos cuidadosamente brancos, numa postura elegante e altiva que, de algum modo, cativou a jovem recepcionista imediatamente.

A impressão de altivez causada foi tão grande, que Atena não percebeu o terceiro visitante se aproximando do balcão até que este lhe dirigiu a palavra.

— A reserva está no nome de Reia. Reia Legrand.

Num susto, com medo de sua distração ter causado uma má primeira-impressão no novo cliente, a garota virou-se rapidamente em sua direção, já com um pedido de desculpas prestes a escapar-lhe dos lábios, somente para deparar-se com um rapaz entretido em seu celular. Paulista, só pode ser, pensou antes de abrir a planilha com as reservas e tentar, a todo custo, ocultar o desagrado que aquela postura lhe causava.

— Boa tarde, senhor. É um quarto triplo, certo?

— Aham.

— Os senhores já conhecem o Morada dos Deuses? Gostariam que eu lhes apresentasse as instalações?

— Hades já veio aqui uns tempos atrás, então acho que não será necessário.

— Certo. E quanto à programação do Círio? Vocês vieram para a festa? Temos aqui várias indicações sobre os melhores lugares para visitar e...

— Nah, minha mãe é que se interessa por isso e ela já ‘tá por dentro do negócio. – Essa foi a terceira resposta que recebeu sem que o homem tirasse os olhos da tela do pequeno aparelho e, se pudesse, ela já estaria a ponto de socá-lo.

— Bom, aproveite sua estada, então. Apartamento 23.

A fala foi proferida no tom mais seco possível e isso, finalmente, fez com que confusos olhos verdes a encarassem.

— É impressão minha, ou senti um certo descontentamento da sua parte, Loira?

Apesar da postura defensiva, seu olhar a percorrera de cima a baixo, ao menos tanto quanto era possível com ela do outro lado do balcão.

— Imagine.

O sarcasmo era pungente em cada sílaba.

Num breve correr de olhos por si próprio, o recém-chegado reparou no celular ainda desbloqueado em suas mãos e acrescentou, com desdém:

— Ah, sim, porque a leitora da Capricho aqui está numa posição excelente para julgar o meu joguinho como entretenimento inferior...

— Oi?! Bom, senhor, devo ressaltar que eu não disse uma única palavra, mas se a carapuça serviu...

O objetivo de tentar manter uma boa primeira impressão acabara de ir ladeira abaixo.

— Aff, só Hades mesmo pra me obrigar a passar por essas merdas...

Tentando manter um último resquício de postura profissional, estendeu bruscamente as chaves do quarto para o mal-educado diante de si:

— Seja bem-vindo, senhor... – deu uma rápida vislumbrada na tela de registro aberta antes de quase cuspir o nome – Poseidon.

E foi com grande prazer que retornou a leitura, levantando a revista apenas o suficiente para que o engraçadinho verificasse que era um exemplar científico, e em inglês.

Sobrancelhas arqueadas por detrás do papel envernizado, os olhos cinzas brilhavam com escárnio e algo acendeu-se dentro de Poseidon.

~*~

— Atena, me ajude a entregar essas velas e já te libero para acompanhar Perséfone a festa.

— Você fala como se eu estivesse animada para ir...

— Mana, não fala assim! Você sabe que mamãe só me deixa ir se você for junto, mas não quero que você passe a noite infeliz!

Não havia como negar qualquer pedido a sua querida prima. Ela era a primavera em pessoa, de tão doce e delicada, e o mínimo que Atena lhe devia era fazer-lhe companhia numa festa que só acontecia uma vez ao ano. Até porque, algo lhe dizia que um certo jovem tímido também estaria lá e ela logo se veria livre para escapar para algum cantinho e ler.

Recolheu um punhado de velas compridas e se encaminhou à entrada para distribuí-las aos romeiros que sairiam em procissão.

Faltavam apenas umas seis unidades em suas mãos quando ele se aproximou, de mansinho e cabeça meio baixa.

— Oi.

— Olá. – respondeu a contragosto, repetindo internamente que faltava pouco para se ver livre de pessoas incômodas como aquele mauricinho besta.

— Seu nome é Atena, né? – ela fez que sim, virando-se de lado e entregando uma vela para uma senhorinha sorridente – Você poderia me dar uma vela, por favor, Atena?

Tentando não demonstrar seu choque com a repentina boa educação do turista, entregou-lhe o cumprido bastão de cera sem dizer nada.

— Obrigado.

Jurou para si mesma, um pouco debilmente, não se deixar levar por aquela súbita simpatia, enquanto via-o se afastar.

~*~

As chamas em procissão protagonizavam um belo espetáculo. Depois de muito caminharem junto com o grupo principal, Perséfone e Atena afastaram-se um pouquinho e viraram à esquerda em um cruzamento que os demais seguiram em frente. Era ali que findava sua caminhada de fé e se iniciaria o momento de celebração. As duas compartilharam um sinal da cruz silencioso e seguiram quietas a rua de paralelepípedos até um grande galpão iluminado.

Era Outubro, portanto as noites já se faziam quentes e todos os presentes riam, brindavam e dançavam, numa profusão de cores e vozes que enchia os olhos. Perséfone foi logo se encaminhando para um ponto ao lado da arquibancada, de onde ficava na ponta dos pés, procurando algo ao redor.

Não foi muito difícil para uma leitora perspicaz logo entender os sinais e localizar Hades, com sua costumeira camiseta preta, no meio da multidão. Apontou simplesmente para aquela direção e trocou um olhar cumplice com sua prima, que logo sorriu largamente e seguiu ao encontro esperado. O doce mirar que compartilharam compensou cada segundo.

Atena ficou por ali mesmo. Encostada na estrutura de madeira, ouviu uma música animada e chegou a fingir uns passos, balançando para um lado e outro, mas logo desistiu, pescou seu celular na bolsinha de palha e procurou o livro mais recente que tinha baixado para ler.

Era uma história de mistério. Tinha convicção de estar mordendo os lábios suavemente enquanto descia a barra de rolagem, mas também pouco se importava, pois acreditava não estar sendo propriamente observada. Engano seu.

— Achei que você desaprovava o uso de celulares, Loira.

Bruscamente retirada da história, Atena demorou alguns segundos para se situar e compreender quem estava ao seu lado, trajando uma camisa azul escura que muito realçava seus olhos e o bronzeado fácil que sua pele adquirira. Antes, porém, que fechasse a cara por completo e o momento passasse, Poseidon já foi remendando:

— Estou brincando, não precisa ficar brava. Inclusive... Me desculpe por hoje mais cedo.

Em defesa do moreno, parecia quase fisicamente doloroso para ele pedir desculpas, mas Atena era turrona demais para deixa-lo se safar tão fácil assim.

— Achei que eu era apenas uma menininha fútil te julgando...

— Eu sei, fui um babaca. Não que justifique nada, mas eu sou bem temperamental e estive chateado a manhã toda. Queria ter ficado em São Paulo e não tinha percebido o quanto estava sendo egoísta em ignorar o quanto minha mãe me queria aqui com ela. Resumindo, um completo imbecil.

— Não se dê esse crédito todo. Você é, no máximo, um idiotinha.

— Tá bom, tá bom. Eu mereci. Vamos começar de novo? Prazer, me chamo Poseidon.

Ela até poderia retrucar, mas era uma noite bonita demais para desperdiçar brigando.

— Atena.

O cumprimento das mãos foi preciso, intenso, como tudo oriundo deles parecia ser.

— Então quer dizer que você é irmão de Hades. – ela arriscou um palpite pela dinâmica que pudera observar entre os dois.

— Sim. E eu sei que não temos nada a ver, mas Reia jura que possuimos o mesmo “olhar penetrante e a presença de espírito dos Legrand”.

Após observar-lhe de canto de olho por alguns segundos, Atena anuiu a cabeça, concordando como quem não quer nada.

— Não posso dizer que ela esteja de todo errada.

— Você acha meu olhar penetrante, Loira?

— Não abuse, paulistinha.

~*~

Os dois permaneceram, surpreendentemente, na companhia um do outro durante um bom tempo. Em algum momento, haviam optado por sentar-se nos assentos de madeira da arquibancada e ficaram ali, um pouco em silêncio, um pouco conversando sobre os mais diversos assuntos: de amenidades até o que pensavam da religiosidade, provavelmente motivados pela festividade sendo celebrada.

A questão é que não importa muito quais foram os tópicos que os conduziram até ali, pois a realidade é que, de duas pessoas que começaram se estranhando completamente, os dois estavam agora compartilhando sorrisos sinceros e olhares demorados.

Foi neste clima que, quando um forró bem mansinho começou a tocar, Poseidon estendeu-lhe a mão. E ela aceitou.

Moreno,

Me convidou para dançar um xote,

Beijou meu cabelo

Cheirou meu cangote

Fez meu corpo inteiro se arrepiar

 

O casal levantou-se, dirigindo-se apenas até a borda da pista de dança e foi lá que ele pousou a mão em suas costas. De forma delicada, ainda quase como um pedido de desculpas.

Ela normalmente não aceitaria dançar, especialmente com um estranho. Mas ele a rodopiava suave pelo salão, trazendo seu corpo para perto, e havia confiança em seus braços firmes. Uma afirmação sem palavras de que ali ela encontraria compreensão e talvez algo mais.

Quando ele colou seus corpos de vez no refrão, seus cabelos claros se prolongaram no ar por um instante após o giro e Poseidon não resistiu, sorvendo desejosamente o aroma de seu pescoço antes de olhar-lhe com ternura e depositar-lhe um beijo no topo da cabeça.


Fiquei sem jeito
E ele me acolheu junto ao peito
E foi nos braços deste moreno,
Que eu forroziei
Até o dia clarear

 

Ela estava preparada para lidar com mais uma malcriação, talvez até para uma carícia mais ousada, mas aquele doce gesto deixou-a sem jeito e Atena viu-se tímida como há muito não se recordava estar.

Quase como se adivinhasse, ele não chamou seus olhos naquele momento, cinza no verde. Não. Deu-a espaço e teu carinho começou no fechar dos olhos, deixando leituras e adivinhações para depois.

Ela, por sua vez, cedeu mais do que admitiria estar disposta, deitando a cabeça em seu peito, suspirando. Ele, que era apenas uns centímetros mais alto que ela.


Iô iô iô iô iô
Me encantei por seu olhar
Moreno chega mais pra cá
Meu dengo vem me xamegar

 

Muitas pessoas começaram a ir para suas casas em algum ponto da noite, mas os dois jovens permaneciam naquela toada, ainda que a canção houvesse mudado inúmeras vezes.

Perséfone e Hades também seguiam extremamente dedicados um ao outro e aquele foi um anoitecer especialíssimo para os irmãos Legrand.

Para Atena, aqueles olhos – espelhos da alma, espelhos do mar – eram tão hipnotizantes que temia bambear as pernas caso ele seguisse encarando-a com tamanha intensidade, mas também não tinha nem sequer um pingo de desejo de pedir-lhe para parar.

— Acho que descobri seu truque, Moreno.

— É? Qual?

— Você tira todas as recepcionistas do sério no primeiro encontro só para ter a oportunidade de vir com esse papinho e tirá-las para dançar.

— Nah. Não com todas. Só as loiras...

Aquela piscadinha marota tomou-lhe o ar por alguns segundos e ela achou melhor concentrar-se novamente nos rodopios.


Iô iô iô iô iô
Seu jeito de balancear o corpo inteiro
Faz meu coração bater ligeiro
Assim eu vou me apaixonar

Já quase amanhecia lá fora quando os dois apoiaram-se na parede de tábuas do galpão: os pés, latejando de tanto dançar; as mãos, escorregando dos ombros para encontrarem outro par de mãos. O ósculo na tez se repetiu, mas desta vez Atena manteve a cabeça alta, tudo em si muito sublime, e lábios salgados encontraram os teus.

Um romeiro solitário caminhava pela estrada e, ao avistar no horizonte a grande estrela, soprou sua vela, ainda acesa, e tudo então iluminou-se.


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