Maré Negra escrita por Frederico


Capítulo 2
Capítulo 2




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II

Quatro navios formavam a frota do Capitão naquela noite. Velejavam lentamente, com os remos içados e as lanternas apagadas para não chamarem a atenção, e só o vento soprando suas velas negras servia como impulso. Para pessoas normais, a densa escuridão não lhes proporcionaria nada que não a incerteza da rota adiante, mas aqueles eram piratas. Seus olhos treinados navegariam pela lua e pelas estrelas. Deixar-se-iam levar pelo sabor do vento e pela musica que ele fazia ressoar junto aos cascos dos navios, e assim encontrariam seus rumos.
À frente de todos vinha o Diabo Cego, o navio principal de onde provinham todas as ordens. Era uma poderosíssima nau de guerra, com dois mastros altos e amplas velas de tecido negro que lhe garantiam velocidade. Um largo convés de chão de madeira separava a cabine do Capitão, na popa, das cabines dos tripulantes na proa. Remos tripulados espreitavam pelos dois lados da embarcação. Como carranca de proa, um rosto maléfico esculpido em ébano e brasil chorava sangue, enquanto da sua boca aberta pendia uma pesada âncora de ferro. Era seguido pelo Fantasma do Pai, pelo Sereia de Fogo e pelo Beijo do Rochedo, que batia a retaguarda. Todos parte da frota pirata. O Capitão fumava seu cachimbo encostado na amurada quando Pablo Sereno, o imediato, gritou do alto do cesto da gávea.
— Há luz na escuridão, meu Capitão! Um navio se próxima a estibordo.
Todos os piratas imediatamente pararam o que faziam no convés e lhe direcionaram os olhares. Romualdo Tiralíngua puxou a espada da bainha nas costas e montou guarda numa expressão ávida.
Finalmente um pouco de ação, pensou o Capitão. Eles estão sedentos por isso.
Há oito dias que não encontravam sequer um bote tripulado em alto mar, muito menos ouro ou mercadoria a ser roubados ou civis a serem saqueados. O último ataque fora à vila de Violeiros, onde conseguiram alguns reféns e provisões para a viagem, mas nada de ouro. As doze garotas e os dez rapazes cativos logo então partiram acorrentados ao porão do Espectro da Neblina direto para o cativeiro, deixando a frota desde aquele dia com um navio a menos.
O imediato desceu do cesto escorregando habilmente pelo mastro e aterrissou no convés. Ele era do tipo esguio, porém ágil e veloz, fosse pendurando-se nas cordas ou com a espada na mão. Os grandes olhos azuis eram marcantes na escuridão.
— Devo ordenar ao Sereia de Fogo que faça a abordagem, Capitão? – perguntou Pablo.
— Não. Nós mesmos a faremos. – ele respondeu. Então esbravejou: – Homens aos remos! Toda a força a estibordo! Preparar ganchos e suas espadas! Daremos combate ao inimigo, mas poupem os que se renderem. Quero o almirante vivo!
Ele sabia que o navio não cederia facilmente. Fosse um dracar de guerra ou uma galé mercante, haveria guerreiros a bordo prontos para defender sua carga. Mas ele confiava em seus homens, por isso não temeu nem por um momento uma possível derrota.
O vento frio em seu rosto começou a se intensificar à medida que os remos trabalhavam na água escura, levando o navio em direção à sua presa. Homens que antes estavam no porão agora subiam silenciosamente, desembainhando suas espadas e adagas. Os fortes irmãos Torto e Lester Fedido, idênticos um ao outro, haviam se juntado aos remos, enquanto Ernesto Filho controlava o velame, puxando as cordas afim de dar direção, mesmo que lhe faltassem alguns dedos nas mãos. O Capitão caminhou até a proa. Com uma mão agarrou a vela de tecido e com a outra puxou sua própria espada da bainha. O ruído do aço ao raspar no couro o fez sentir-se vivo. Então esperou...
Quanto mais perto chegavam do outro navio, mais altos se tornavam os ruídos vindos dele. Os piratas continuavam silenciosos, mas não menos impacientes. Quando um deles resmungou algo em voz baixa, o Capitão o repreendeu.
Ouviu musica, e quando semicerrou os olhos pode ver que uma espécie de festa acontecia no iluminado convés do navio. Ouviu risadas de homens... e de mulheres também. Sei que tipo de festa estão promovendo aí. É um daqueles bordéis em alto mar. Tiramos a sorte grande. Ele sabia que esses tipos traziam altos prêmios em ouro e em reféns. Principalmente reféns, visto que a maioria dos nobres do reino preferia trair suas senhoras bem longe da terra firme.
Se comparado ao Diabo Cego, aquele era um navio consideravelmente menor. No entanto, era pomposo. Mesmo no escuro e de longe já era possível ver que tinha em boa parte a madeira ornada em prata reluzente, pelos mastros e amuradas.
Quando estavam a poucos metros do alvo, um tripulante de lá os avistou. Ao perceber o que estava por vir, atirou ao chão sua bebida e a mulher nua que trazia no colo e começou a fazer alarde, correndo em direção às cabines, talvez a fim de conseguir um aço ou só um abrigo para se salvar. Do Diabo Cego balroas e ganchos foram arremessados. Com incrível precisão ou acaso um destes acertou as pernas do homem que corria, rasgando uma delas da parte traseira da coxa até o fim da panturrilha, onde se prendeu ao osso e aos músculos com um forte puxão. O grito de dor e o jorro de sangue deram fim às danças. Quando os músicos se deram conta do que acontecia, o Capitão já rugia a ordem, piratas inundavam o navio e um banho de sangue começava.
Não adianta pedir que façam cativos, eles preferem fazer cadáveres, pensou antes de saltar do parapeito de seu próprio navio para o convés do inimigo. Mal deu seus primeiros passos à procura de um adversário, quando viu um homem e uma mulher se rendendo a um dos seus. Mais a frente um soldado perdia o braço da espada na altura do cotovelo ao defrontar Grande Denis. Antes que o homem pudesse pedir por clemência, sua garganta foi rasgada, enviando um jato de sangue quente que sujou as botas do pirata.
— Filho da puta, eram novas! – e completou com um pontapé tão violento na cabeça do morto que quase a arrancou dos ombros.
Correria e gritaria se seguiram no convés.
Poucos homens tinham armas no navio, percebeu o Capitão, e a maioria deles estava desnudo como chegara ao mundo quando foram abordados. Ele puxou uma mulher pelos seus cabelos loiros separando-a do seu amante, que quis tomá-la de volta, só para encontrar a ponta afiada da espada em sua barriga. A mulher foi ao chão com um forte empurrão e o homem continuou em pé tentando se soltar, meio amaldiçoando seu assassino e meio cuspindo sangue. Quando perdeu suas forças e cedeu, debruçou-se sobre o Capitão, que aproveitou a deixa para enterrar mais fundo sua lamina, fazendo-a atravessar o abdômen e sair pelas costas do sujeito.
Ele se livrou do corpo e se preparou para o próximo alvo, mas guardou a espada na bainha quando percebeu que não mais precisaria dela. Em poucos segundos o navio havia sido tomado, com dezoito cativos e onze homens mortos. A tripulação subjugada foi reunida no convés e sentada ao chão de madeira, com mais de vinte piratas os rodeando e ameaçando-lhes com aço. Duas mulheres choravam. As outras pareciam atônitas demais até para isso. Romualdo Tiralíngua aproximou-se da de pele escura, a agarrou por trás e encostou sua faca pontiaguda na bochecha dela.
— Tenho algo que lhe fará sentir melhor. – disse em seu ouvido. Um fio de sangue escorreu pelo rosto e pingou no ombro nu. – Depois que terminarmos nunca mais vai querer beijar outro homem, acredite. Não precisará mais dessa língua chorona. Ha!
O pirata guardou a faca, pegou a mulher pelas duas mãos e antes de começar a arrastá-la, olhou para o seu Capitão. Este abanava a cabeça em negação.
— Sabe que não posso deixar, Romualdo. Largue ela e vá ver se o covarde está escondido na cabine dele.
Tiralíngua não reclamou. Mas não está satisfeito também. Com um chute abriu a porta da cabine e entrou.
— Achei o safado, Capitão! – gritou de lá e saiu para o convés segurando uma cabeça pendurada por cabelos negros. – Bom... Suponho que seja ele. Ha!
Os piratas riram daquilo. Os reféns lamentaram. Era ele.
— Quem fez isso? – esbravejou o Capitão.
Óris Maneta deu um passo à frente.
— Foi eu, Capitão. – ele confessou. Mostrou então a parte de trás do próprio pescoço onde escorria sangue de um ferimento à espada. – Fui atacado primeiro.
O Capitão abriu um leve sorriso ao se dar conta de que o almirante havia lutado pela vida.
— Justo. Era o seu pescoço ou o dele. – olhou ao redor. – Quem é o imediato do navio?
Ele não teve o trabalho de perguntar de novo. A tripulação inteira de prontidão apontou para o coitado que tentava esconder o rosto com as mãos.
— Muito bem, levem-no para a minha cabine. Tenho um presente para ele. Quanto ao restante, podem cortar as gargantas e atirá-los ao mar. O navio agora é nosso.
E assim foi feito. Um grito aqui, uma resistência ali, mas no fim, doze dos dezoito boiavam na água negra do mar, enquanto três garotas e dois garotos eram poupados e acorrentados ao porão. Pablo e Barba Rala levaram o prisioneiro vivo, enquanto o restante dos piratas começou a soltar as balroas a fim de desacoplar as embarcações. Depois de averiguar o navio tomado o Capitão pulou de volta para o seu Diabo Cego e foi encontrar o refém.

Era um tipo magro e alto, de cabelos escorridos e olhos caídos. Estava sozinho, de joelhos em frente à escrivaninha. Uma única lamparina pendurada na parede iluminava o recinto, o bastante para mostrar que o rosto do homem estava em ruínas, com molduras roxas no olhos, inchaços por todo lado e sangrando no nariz e na boca. Aparentemente ele resistiu, concluiu. Como seu antigo capitão o fez. Bravo.
Trazia grilhões que atavam seus pulsos um ao outro, pesados o bastante para arquear suas costas para frente. O Capitão pegou dois copos e uma garrafa no armário, puxou uma cadeira e se sentou na frente do prisioneiro.
— Vai ter que soltar essa adaga se quiser beber comigo. – disse ao homem. – Eu só te machucarei se fizer alguma idiotice. Vamos lá, me entregue.
Uma adaga de bronze escorregou pela manga do homem e caiu pesadamente no chão de madeira. O Capitão a apanhou e a pôs no seu devido lugar, ao lado do machado de batalha pendurado na parede.
— Qual é o seu nome? – perguntou ao se sentar novamente.
— Tenho a honra de ser Sor Gordo Swordfish, vice-almirante do majestoso Alvorada do Prazer. – disse de cabeça erguida e fitando seu interrogador.
— Honra? – pergunto com desdém. – Você quer dizer que era vice-almirante. Agora não é mais. Além disso, seu puteiro vai ser rebatizado e daremos novas funções a ele. – o homem franziu o cenho ao ouvir aquilo. O Capitão continuou. – Mas ao contrário da sua antiga tripulação, você pode ser mais útil a mim. Eu disse que lhe daria um presente. Pois bem, concedo-lhe sua vida. O que acha?
— É muita bondade sua. Nem sei como expressar minha gratidão.
— Pode agradecer me fazendo um pequeno favor.
Por um momento o homem estreitou os olhos, desconfiado, e ficou ponderando aquilo.
— De onde eu venho não se dão presentes esperando favores em troca. – forçou um gracejo. Alguns dentes faltavam no seu sorriso ingrato.
— De onde eu venho não se dão presentes. – rebateu. – Não se engane, Sor. Se prefere acompanhar seus amigos até o fundo do mar, traria mais prazer aos meus homens do que sua falsa gratidão traria a mim. Diga e eu lhes dou a ordem.
O homem se encolheu. O Capitão pode ver em seus olhos a apreensão. Ele sabe que falo sério.
­- Sendo assim, no que posso lhe ser útil?
O Capitão encheu um copo e entregou ao homem. Ele bebeu tudo de uma vez.
— Tenho razões para acreditar que Bernardo Terceiro deu voz de prisão a mim e ao meu bando de foras da lei. Estou certo, Sor Gordo?
— É o que dizem por aí, sim senhor.
— Sei também que Porto Impávido pôs homens no mar atrás de nós. Não é?
— Correto novamente. Dom Pedric cumpre ordens do Duque. – o homem estendeu o copo vazio para ser cheio novamente. Os grilhões de ferro tilintando enquanto se mexia.
O Capitão o fitou por um momento.
— Lhe darei um bote e um remo, Sor Gordo. Navegará até a costa mais próxima e espalhará a noticia pelas terras de Forte D’ouro de que os piratas dos quais você foi cativo e fugiu se dirigem a Ilha dos Cegos. Conhece a Ilha dos Cegos, eu presumo.
— Todos conhecem Maré Negra e sua triste alcunha.
— Muito bem. Faça como eu disse e depois pode voltar até mim. Vai poder então pegar o neutralizador para o Amarratripa que acabou de beber. Agora vamos lá pra fora. Você parte à primeira luz do dia.
O homem arregalou os olhos, apavorado. Cuspiu o que tinha na boca e tentou vomitar o que havia bebido ao mesmo tempo em que amaldiçoava o Capitão.
— Amarratripa? Você disse que me deixaria viver, cão do inferno. Pirata sujo, mentiroso! Você não tem honra!
Ele insiste na honra.
— Cuidado, Sor. Não chame o inferno sobre si se não puder sustentá-lo. Você tem cerca de um mês até que suas tripas parem de funcionar por completo. É tempo de sobra para fazer o que lhe pedi e voltar até mim.
— Mas como eu vou te achar? Estamos na merda de um navio!
— Eu sei que conseguirá. Sua vida depende disso. Além do mais, se tudo ocorrer como planejo, pode me encontrar em Maré Negra assim que eu massacrar a frota de Dom Pedric. – abriu um sorriso. - Se eles não aparecerem... Bem, saberei que você não cumpriu com o combinado.
— Isso não faz sentido! – ele respondeu desesperado.
Eu sei. Estou torcendo pra que venha a fazer. Você deveria fazer o mesmo.
O Capitão abriu a porta da cabine e chamou.
— Pablo! Arrume o bote de Sor Gordo. Abasteça o suficiente para a sua longa viagem, mas não exagere na cortesia.
— Eu nunca exagero, Capitão! – respondeu o imediato enquanto punha de lado uma pedra de amolar e embainhava a espada na cintura.
Sor Gordo Swordfish saiu da cabine. Pasmo demais para expressar sua indignação, somente seguiu o pirata Pablo Sereno até o parapeito a bombordo do navio para iniciar os preparativos de sua viagem.
O Capitão fechou a porta da cabine e se sentou na cadeira de madeira atrás de sua escrivaninha. Suspendendo seus pés sobre ela, pegou uma garrafa de conhaque de alcatrão de uma gaveta e tomou um longo gole no gargalo. Deu um profundo suspiro e passou a mão pelos cabelos negros, a única herança da falecida mãe. Olhou ao redor. Um pequeno sofá tomado por pulgas, uma estante e um baú de madeira completavam o pequeno espaço da cabine. Sobre a estante, algumas garrafas e botijas continham líquidos que dançavam com o balançar do navio. Armas de guerra jaziam penduradas nas paredes. Espadas, adagas, sabres e um machado.
Naquele momento de calmaria após a pequena batalha, pegou-se pensando em seus pais, em seus antigos amigos, em sua casa. Qual delas? Lembrou das coisas que havia feito e das quais deixou de fazer. Pensou nas mulheres que amou. Hilda. Mais alguns minutos e meia garrafa da bebida quando começou a sentir os olhos pesados.
Então adormeceu.
No sonho ele era mais novo, muito mais novo. Corria por um infinito matagal úmido e denso no meio da noite. Sabia que estava sendo procurado, pois podia ouvir seus perseguidores gritando provocações em seu encalço. Tinha uma espada na mão, mas havia se esquecido de como usá-la. Correu por muito tempo sem parar, mas sempre que olhava para trás podia ver um fogaréu que consumia a floresta e iluminava a noite, crescendo e crescendo, queimando e queimando como se estivesse sendo alimentado por toda a madeira do país.
Foi quando se deparou com um homem no meio do caminho. Era atarracado e peludo, cheio de cicatrizes pelos braços e rosto. De machado em punho começava a se aproximar.
— Eu conheço você! – disse o Capitão. – Escara... Escara...
— Velho, sim! Você sabe muito bem quem eu sou. – respondeu o pirata. – Mas e você? Sabe quem realmente é?
— Eu... Eu sei muito bem. – ele respondeu.
— Quem é ou quem se tornou? Fugindo de novo? Eu acho que você é um covarde! – ele deu uma gargalhada. – Dê valor a todos que se sacrificaram por você, moleque!
— Você não tem o direito! – interrompeu golpeando o homem com sua espada o mais forte que podia, porém sem acertar uma estocada se quer. O pirata virava fumaça à sua esquerda para reaparecer à sua direita, sempre se esquivando, se recusando a morrer. De repente ouviu um grito, e tudo aquilo desapareceu. Atrás de si a luz e o calor começaram a crescer novamente. O fogo o abraçava com seus tentáculos mortais, mas estranhamente não o feria. Incomodava, mas não o podia matar.
Acordou com o bater na porta. A aurora havia chegado.
Do convés ele observou o bote de Sor Gordo sumir no horizonte enquanto seus homens contavam a pilhagem do recém batizado Prazer da Madrugada e se dividiam para ocupá-lo e para reparar os danos sofridos no ataque da noite anterior. Agora eram cinco novamente em alto mar. Após dar as ordens e as coordenadas rumo a oeste o Capitão caminhou até a abertura do porão do Diabo Cego, debaixo do castelo de popa. A passagem para a escada que levava até o fundo do seu navio era trancada por uma barra de ferro transpassada sobre as duas portas de madeira. Retirou a barra, a pôs de lado, abriu a passagem e começou a descer os degraus.
A luz da manhã iluminou o porão e tudo que estava ali. Barris de cereais, carne seca, bebidas, piche, sal e fumo de corda. Caixas de madeira com espadas e inúmeras quinquilharias em ouro, prata e bronze. Havia animais, excremento e palha. Umas galinhas, três porcos mortos, escaldados e pendurados, e alguns reféns. A maioria se amontoava no chão do modo mais confortável que suas correntes permitiam. Alguns estavam pendurados pelas mãos, seminus e com ferimentos de chicote infeccionando há dias no ar putrefato que pairava no ambiente. Outros estavam sentados e acorrentados ao pilar central, com as costas viradas para ele e as mãos atadas para trás. O Capitão chegou perto de um desses e parou à sua frente.
— Miguel Villanova. – disse ao magro e esfarrapado rapaz. Ele tinha os cabelos louros e as feições do rosto incrivelmente parecidas com as de seu pai.
— Quem está aí? – o menino ergueu a cabeça e a inclinou para a direita a fim de ouvir melhor. Seus brancos olhos vagavam perdidos sem saber sobre onde repousar. – Meus olhos doem... Por favor, não posso mais aguentar. Por que estão fazendo isso comigo? Onde está meu tio? Quando voltarei a enxergar?
Miguel chorava e se lamentava. Tentava esfregar os olhos com os ombros já que não o podia fazer com as mãos, mas era inútil. Envolta deles a pele mostrava horríveis veias roxas quase se tornando pretas pela coagulação do sangue.
— Muitas perguntas. – respondeu o Capitão. – Isso é veneno de Sapotouro, garoto. Quando absorvido pela corrente sanguínea paralisa o local por alguns dias. Depois disso a aparência melhora, mas a região atingida fica totalmente atrofiada. Nunca mais voltará a enxergar.
Aquilo foi demais para Miguel. O menino desistiu da lamentação e se entregou ao desalento de uma vez por todas. O Capitão continuou.
— Ouça, rapaz, você vale um bom resgate e esse é o único motivo de estar aqui. – mentiu. - Se continuar colaborando lhe concederei algumas horas por dia no convés pra que possa respirar um ar mais puro do que este aqui embaixo. Se não, o devolverei ao senhor seu pai em dez partes diferentes. Contanto que ele não morra antes de você. Ouvi dizer que a Peste não difere nobre de plebeu.
Ele não obteve resposta. Ao invés disso retirou-se para a sua cabine deixando seu refém no breu do cativeiro. Tinha consciência de que o garoto não saberia distinguir a escuridão do porão da sua mais nova companheira, a escuridão da cegueira. Mesmo assim fechou as portas e as trancou firmemente com a barra de ferro pra que nenhum mísero feixe de luz pudesse entrar ali.


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