Paralelo 22 escrita por Gato Cinza


Capítulo 17
17




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Era alguma coisa entre sonho e a realidade, uma autoindução da parte de Oliver para acessar a mente dela quando estava muito agitada. O cheiro das velas de alecrim, sândalo e lírio se misturava no ar, assim como o perfume picante do amigo em cujos braços ela se aconchegava desde que ele ligou do outro lado do mundo querendo saber o que estava acontecendo por que não conseguia concentrar em nada além de uma necessidade mórbida de chorar até perder os sentidos.

Aquela estranha ligação entre eles chegava á ser um inferno de tortura em certas ocasiões, noutra, porém. Assim que ela disse que a avó tinha morrido, Oliver buscou um voo para sua cidade, mas o tempo ruim onde estava impossibilitava qual quer viagem aérea até segunda ordem e nenhum piloto se arriscaria numa situação imprevisível.

Já era mais de meia-noite quando deixou Nicolas no quarto de hospedes (que tinha duas camas por ser de uso dela e suas irmãs) e foi para o quarto da mãe, onde acendeu as velas e deitou-se do modo mais confortável possível enquanto relaxava e permitia ser alcançada.

Desde que apareceu na sua frente, Oliver não disse nada. Apenas a abraçou e acalentou como faria se estivesse na mesma cama e ela chorou até não ser mais capaz de tal ato, até que sentisse o conforto do silêncio como o presente que era.

Foi acordada por Quitéria ás quatro da manhã, abriu os olhos para ver a irmã agradecendo silenciosamente antes de soprar as velas e se voltar para ela com a expressão desolada. Quitéria tinha chegado com Dandara e Jon no inicio da noite e ido direto para o hospital, depois foram cuidar dos preparativos da cerimonia. Malvina queria ter ido, mas Dandara ordenou que descansasse antes que desmoronasse diante de todos.

Tomou banho, se vestiu e foi comer, sua mãe já estava tomando o dejejum junto com os tios, Artur e Nicolas que parecia mais deslocado do que nunca, não que tivesse como ele entender o que era aquilo, já que ela não havia conseguido dizer nada além de olhar para coisa nenhuma e se deixar envolver por um casulo de tristeza.

Nicolas estava confuso, tinha sido acordado pelo toque frio dos dedos da gêmea-cozinheira que apenas pediu que ele acordasse sem dar maiores explicações. Então seguiu para o quarto onde Malvina dormia. Quando saiu do quarto onde estava, ele se deparou com o Manoel que o chamou para tomar café e a sua esposa que preparava uma refeição rápida na cozinha.

Pouco depois a mãe de Malvina, que não lembrava as filhas em nada, apareceu com Artur que parecia ter acabado de sair do banho mais gelado de sua vida e quando estava começando a achar que era um sonho maluco, Malvina apareceu e sentou ao seu lado, parecia não ter dormido a noite toda.

— E Dandara? – ela perguntou enquanto se decidia por leite ou iogurte.

— Foi levar Jon no hotel para se arrumar, ele se esforçou, mas não tem nossos hábitos noturnos e estava dormitando – Quitéria informou.

— E Artur? Com quem vamos deixa-lo?

— Ele vai com a gente, Dan quer que ele acompanhe a cerimônia – a gêmea respondeu de novo.

— Aonde nós vamos, vovó? – o menino perguntou, entretido com o passar de margarina na torrada.

— Vamos nos despedir de minha mamãe, sua bisavó.

Ele se aprumou, voltando a atenção para Amanda.

— Tia Mavis disse que ela morreu.

Malvina sorriu para a mãe que suspirou antes de começar a explicar ao neto o que ela quis dizer com “se despedir”.

O local da cerimônia ficava fora da cidade, de modo que dirigiram por minutos até lá. O descampado era cercado por mata alta e ruinas do que foi uma vila de pescadores, com o desvio do rio um século e meio antes, os casebres viraram morada de bichos e as árvores ocultaram o descampado por onde um dia correu água. No meio desse descampado estava a pira ainda apagada e todos os presentes na cerimônia, trajavam cores claras.

— O que é isso? – Nicolas sussurrou para ela, ainda dentro do carro ao ver que não estava indo para uma casa-funerária ou um cemitério.

— Um funeral. Ela não queria ser enterrada.

— Existem crematórios.

— Nicolas, existe uma coisa chamada crença e cada fé têm seus rituais. Vovó tinha o dela, respeitamos sua vontade e peço que respeite os ritos de meu povo.

Ele abriu a boca e fechou. Não tinha o que ser falado. Ele havia tentado entender o que estava acontecendo ao ser acordado de madrugada e pelo teor das conversas deduziu que o “enterro” seria de manhã cedo e que o local era no mínimo longe. Ele não havia questionado, não achava muito educado perguntar sobre essas coisas para uma pessoa de luto, agora...

Saíram do carro e seguiu em frente, pelo canto dos olhos, ela observou o modo quase discreto de Nicolas em ver tudo que lhe era novo. A mesa de concreto feito em forma de meia lua estava decorada com as flores, as iguarias e bebidas preferidas de Cleonice. As pessoas estavam em pé e alguns sentados no chão, falavam em voz baixa e alguns comiam e bebiam. Parecia mais uma festa do que um velório.

Alcançaram Dandara que estava com Jon, eles estavam conversando com Vitor, era quase seis da manhã e logo começaria o fim daquilo.

— Minha favorita – Vitor a cumprimentou com um beijo no pulso – Lamento encontra-la nesta situação.

— Gêmea errada, e é realmente lamentável só nos vermos em ocasiões tristes, tio Vitor.

— Malvina! Sempre me confundo – ele a abraçou e deu um beijo demorado na testa – E este rapaz seria?

— Nicolas.

— E onde ela está, Kira?

— Com Silvana – Dirce que passava por eles com uma tocha apagada, informou apontando para a outra gêmea que falava com uma mulher de longas trancinhas lilases.

— Um dia ela acaba me tirando a mulher – ele brincou e seguiu na direção delas, com seus passos preguiçosos.

Dandara encarava Nicolas, ainda com a mesma expressão de quem planeja mil coisas ao mesmo tempo, desde algo brutal á uma fuga espetacular. Jon tinha uma expressão igualmente esquisita, entre homicida e culposa.

— Eu ia apresenta-los, mas pela cara de vocês penso que já se conhecem – ela falou e estalou o dedo na frente do rosto da irmã que piscou.

— O que ele faz aqui? – perguntou acusatória.

— Veio comigo, assim como Jon veio com você.

— Ele não devia estar aqui, Malvina.

— Por quê? O que há de errado com vocês?

— Sua irmã maluca me odeia sem motivos, só.

— Sem motivos? Como pode ser cara de pau desse modo?

— Aqui não – Jon segurou Dandara pelo cotovelo – Ainda é o funeral de dona Cléo, meninas. Sei que não vão querer fazer nada que se arrependam depois.

— Mas ele...

— Meu primo veio com sua irmã, assim como eu vim com você, Dana. Não pode exigir isso sem dar a Mavis o direito de me expulsar também.

— Primo? Vocês são primos? – Malvina olhou de Nicolas para Jon, surpresa.

Ela não havia entrado na vida familiar de Nicolas, apenas na profissional.

— Depois falamos disso – Dandara apontou para ela – Fique com Artur para mim, Jon. Vamos, irmãzinha, já está na hora do fogaréu.

Malvina bufou e deu as costas para a irmã, ocupando seu lugar perto de uma tocheira. As pessoas se calaram e começaram a se mover para perto, formando um semicírculo. Então um homem robusto se aproximou carregando o corpo de Cleonice enrolado em lençol branco e a depositou com cuidado no todo da pilha de madeira, e se afastou até o inicio da linha imaginária formada pelas pessoas e se ajoelhou sendo acompanhado por outros homens.

Nicolas olhou ao redor indeciso e antes que tomasse uma decisão, foi parado por um toque no seu ombro, se virou. Era Jonas.

— Nós somos convidados – falou baixo – Só os iniciados devem se curvar.

Ele sacudiu o ombro para se livrar do toque do primo, e como curioso que era não se privou de saber:

— Iniciados em que?

— Não perguntei – Nicolas revirou os olhos – E se perguntasse Dana não responderia.

Conformado com a estranheza geral da situação, ele se voltou para frente. As quatro, Amanda, Malvina, Dandara e Quitéria seguravam tochas e giravam em torno da pira a incendiando. Quando as chamas consumiam por inteiro o crematório as quatro recolocaram as tochas no lugar e ficaram imóveis encarando a fogueira. Foi um minuto de silêncio antes das mulheres começaram a cantar naquele idioma desconhecido por Nicolas.

Por uma hora o único som além daquele lamento cantado á ser ouvido na clareira era a do crepitar do fogo. Havia no ar um cheiro cítrico vindo os incensos de flor-de-laranjeira e folhas secas usados na pira, se não soubessem que aquilo era um funeral humano, pensariam que era apenas um pé de laranja queimando. A canção de despedida ecoava entre os presentes que choravam, ainda sem todos terem entendimento do que ouviam. Até as crianças tinham parado, sentado e ouviam com pesar o lamento.

Passada a hora de expressão as mulheres se calaram. Os homens se levantaram. Aos poucos voltaram a falar entre si, respeitando o silencio de quem nele queria permanecer e Nicolas secou as lágrimas que nem notou ter caído.

— E agora? – perguntou ao primo.

— Esperamos.

Procurou por Malvina e a encontrou na mesma posição que permaneceu na última hora, assim como suas irmãs e mãe. Ele olhou ao redor, estava se sentindo incomodado agora que as pessoas pareciam ter saído de um estado passageiro de dormência e pareciam notar sua presença. O chamado do filho de Dandara o fez se virar para o primo.

— Pai! Pai!

Ele estava chamando Jonas de pai? Analisou os dois, não havia nada em um que indicasse parentesco direto com o outro. Mas essa coisa de genética era algo que ele já tinha desistido de entender, sua mãe era demasiada branca e tinha sardas, era única da família com tal característica e Jasmim a irmã de Jonas era ruiva. O menino tinha aqueles olhos estranhamente familiares... ele sacudiu a cabeça. Olhos âmbar eram comuns. E se ele era filho de Jonas tinha que ter algo familiar mesmo.

— O que foi Artur?

— Quero ir ao banheiro – disse o menino.

— Agora?

— Agora, rápido.

— Não tem banheiro aqui, Artur. Segura só mais um pouco.

— Mas papai, se eu fizer isso minha bexiga vai inflar e o xixi terá que sair ou eu mijo na calça e todo mundo ri de mim ou retenho substancias que vai estragar meus rins.

— De onde tirou isso? Você nem sabe o que é um rim.

— Tia Mavis falou que os rins ficam aqui – ele colocou as mãos na lombar – E serve para limpar nosso sangue, o que sobra vai para a bexiga que fica aqui e depois jogamos fora pelo xixi.

— Aquela maluca está ensinando para uma criança de nove anos coisa que só aprendi aos treze – ele comentou com Nicolas como se conversassem diariamente – Não diz para sua tia que a chamei de maluca.

— Tá, já posso ir no banheiro?

— Aqui não tem banheiro, Artur.

— Estamos cercados de mato – Nicolas tentou ajudar.

— Em um local que eles consideram sagrado o suficiente para usar como cemitério – Jonas apontou e se virou para o menino que estava andando – Para onde vai, Artur?

— Vou perguntar para uma mulher onde fica o banheiro, homens não sabem de nada.

Nicolas riu baixinho e franziu o cenho para o primo.

— Não sabia que tinha um filho – disse com seriedade.

— Por que isso não era da sua conta e continua não sendo, então fica longe dele e da Dana.

A agressividade na voz do primo não era novidade, novidade foi o tom de ameaça que notou. Por que tanto segredo e hostilidade? Distraiu com o filho do primo e diversas teorias á respeito daquilo, tinha certeza que o resto da família não sabia, do contrário sua mãe teria contado ou pior, perturbado de novo com aquela coisa sobre ele precisar se casar e constituir família. Foi ao pensar na insistência da mãe em querer que ele se casasse que o fez buscar por Malvina, ainda parada no mesmo lugar.

Do nascer ao por do sol. Esse era o tempo do rito solar para os mortos. Por isso comiam de madrugada por que a família do falecido ficava em jejum nesse período. Por isso havia uma mesa com comida e bebida, era para os presentes fazer a última refeição na presença daquele que partiu. Doze horas era o tempo necessário para queimar o que tinha que ser queimado e para o vento espalhar as cinzas. Depois limpavam o descampado e o que sobrava era apenas o silencio sepulcral de um lugar vazio de vida.

A exaustão de todos era visível. Alguns tinham se retirado para seus carros e descansado, outros persistiram em ficar até o fim. Agora cada um voltaria para sua casa e retomaria a vida por que a despedida marcava o fim era para quem partia e não para quem ficava.

Malvina encostou a cabeça no ombro de Nicolas quando o mesmo estacionou diante da casa de sua mãe. Não tinha falado com ele desde que começou a cerimônia e não queria conversar, queria sua cama e uma noite de sono sem ter que se preocupar com detalhes de assuntos que lhe causaria dor de cabeça. Como na noite anterior ele dormiu no sofá, não por senso de cavalheirismo ou respeito, mas sim por senso de espaço.

Assim que fechou a porta do quarto, as velas coloridas de ervas se acenderam. Ela se deitou na cama e começou lentamente se desligar de si mesma permitindo o alcance de Oliver em seu subconsciente. Ela sabia que precisava dormir, seu corpo tinha que descansar. Mas também precisava do conforto que a presença de Oliver proporcionava.

— Olá, Coelhinha...


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