Paralelo 22 escrita por Gato Cinza


Capítulo 15
15




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Três ladrões encontrados mortos a modos de execução (dois tiros no peito e um na testa) num bairro perigoso como São Vicente, na zona norte, não era nenhuma novidade. O que chamou a atenção de Dandara foi o fato de todos os celulares e parafernálias tecnológicas que eles tinham terem sido destruídas por algum tipo de onda eletromagnético de origem desconhecida com força suficiente para fritar tudo que fosse eletrônico num pequeno raio de dez metros.

— Você ter sido assaltada por eles não tem nada haver, não é? Nem o fato de você trabalhar para um inventor genial que tem mais truques que os espiões britânicos da ficção?

— Se não pode provar não deve acusar – argumentou.

— Isso á praticamente uma admissão de culpa, Mavis – encolheu os ombros e baixou a cabeça.

— Eu não serei pega.

— Estamos em casa, aqui não temos quem nos proteja por que somos nós quem protege. Não importa como ou quando faz, só tome cuidado. Conhece as regras, nada de migalhas, um rastro deixado para nos guiar pode ser usado para nos encontrar.

Foi assim que começou aquela sexta-feira, com o sentimento de culpa por algo que ela sabia que estava sob seu controle. Não foi bem sua culpa, ela só tinha ido recuperar suas coisas por que havia algo na sua mochila que podia causar grandes estragos se fosse usada de modo errado, só não calculou que os assaltantes estariam acordados e reagiriam á ela com tiros. Ela só se defendeu.

Depois veio Lídia, a menina de laço verde nos cabelos loiros. Encontrou no elevador chorando por que tinha se perdido e a porta não abria onde a mãe dela tinha a deixado. O instinto natural de Malvina era entrega-la a uma autoridade e deixar que eles lidassem com o problema, contudo, a autoridade seria o porteiro que já tinha que lidar com a má-educação dos adultos apressados que mal lhe dirigiam um cumprimento respeitoso ou os seguranças que... bem, ela não tinha menor ideia de havia segurança naquele prédio além das câmeras. Por isso a levou com ela, deixando apenas a localização de onde estaria a menina se alguém lhe procurasse.

E teve Nicolas que parecia ter ficado mais chato que o natural ao ver uma criança no seu ambiente de trabalho e para ficar mais bizarro a situação a repentina aproximação dele. Por que diabos a beijou? Felizmente seus sentidos estavam em alerta e ninguém os viu naquela intimidade desnecessária.

E tinha um problema do tipo burocrático que ela não entendia e que precisava ser resolvido com urgência, mas Roberto não podia fazê-lo e Sônia que estava incumbida de completar os trabalhos em suspenso de Ulisses a levou consigo para aquela reunião da qual nenhuma delas queria participar. A razão era simples, Fernanda podia ser a secretária de todos naquele prédio sem transpirar ou desalinhar um fio dos cabelos presos naquele coque de bailarina que usava.

A agonia de ficar mais de uma hora na mesma sala que Ulisses que a encarava como se estivesse faminto e ela fosse a vitrine de uma churrascaria. Os jogos de palavra com múltiplos sentidos, os pequenos gestos obscenos que fazia quando Sônia se ocupava em trabalhar e por fim a caneta esferográfica que ela enfiou na mão dele quando, ao se despedirem, ousou apertar sua bunda e sussurrar em seu ouvido o quanto queria fodê-la naquele momento.

Sônia gritou junto de Ulisses, primeiro pelo susto e depois de pânico ao ver o sangue se espalhando pela mão dele, Malvina tinha acertado o espaço entre o dedinho e o anelar da mão esquerda. Seu movimento tinha sido mais por raiva em ser tocada do que por premeditação, a mão dele ainda estava a apertando quando puxou a caneta sobre a mesa e cravou na pele dele ignorando que podia machucar á si também. Em nenhum segundo ela piscou ou desviou os olhos dos de Ulisses e talvez tenha sido por isso que ele reagiu com desespero ao sentir a dor da carne sendo perfurada de modo abrupto.

Ele se recusou ir ao hospital, puxando a caneta da mão, fazendo mais sangue sair. E numa demonstração súbita de coragem, desespero e burrice, pegou uma garrafa de uísque, dentre outras bebidas que tinha no seu escritório improvisado na boate que geria, e lavou a mão, enquanto explicava para Sônia que no banheiro dos funcionários tinha um kit de primeiro socorros. Malvina permaneceu onde estava, enquanto ele a encarava com ódio e a ameaçava.

Depois do curativo feito por Sônia, voltaram para o escritório. A contadora estava chocada pela reação de Malvina e mesmo depois de interroga-la, ainda lhe dirigia olhares de espanto. Assim que entraram na portaria do prédio, ela viu o porteiro a aponta-la e para provar que o destino era bem humorado e que seu senso de humor era sombrio. O homem que virou em sua direção a fez congelar.

Marcelo Campos, seu ex... era difícil nomear o que eles tinham tido. Amante? Namorado? Futuro marido de mentirinha? Noivo falso? O calhorda que a enganou? O cara que lhe jurou amor um dia antes dela encontrar com ele acidentalmente e ser apresentado á sua esposa grávida?

Ele a encarou surpreso e olhou-a de baixo á cima e pareceu em duvida. Enquanto o porteiro dizia alguma coisa e ela, junto de Sônia, seguiram para o elevador. Ela o vigiando pela visão periférica e controlando os pensamentos homicidas enquanto o mesmo se aproximava.

— Malvina? – a incerteza estava impressa na voz grave e vibrante que um dia lhe causara arrepios e agora lhe dava enjoo.

— O que você quer Marcelo? – perguntou sem olha-lo, deixando transparecer na voz o desprezo que sentia por ele.

— O porteiro – ele parecia tenso, ansioso – O porteiro disse que...

— Jorge. O nome do porteiro é Jorge.

— Que seja – falou naquele tom de quem não liga que a fazia revirar os olhos antigamente.

Como pode um dia achar esse tom de desprezo que ele usava pelos subalternos algo normal? Algo que ela poderia mudar com o tempo? Mulheres apaixonadas eram mesmo capazes de pensar bobagens sem fundamentos. O elevador chegou e ela entrou, ignorando a ele e a Sônia que pareceu indecisa ao olhar para o homem lindo ao seu lado. Com um gesto a contadora o convidou para acompanha-las.

— Você trabalha aqui agora? – ele fixou seus olhos azuis nos dela.

— Você tem cinco andares para dizer o que quer comigo – disse olhando o marcador sobre a porta.

— Sempre direta – ela pigarreou e ele parou de enrolar – Daniela, minha mulher, deixou minha filha aqui comigo. Ela é loirinha, está de vestido azul e se chama Lídia, tem cinco anos e o porteiro explicou que ela estava no nono andar com a secretária.

Ela sentiu o peito comprimindo, o ar esvaindo dos pulmões e se forçou a manter a compostura. Era isso então, os olhinhos azuis familiares da menininha combinado com aquele sorriso ingênuo, eram traços dele. Traços que no passado a enganaram á ponto dela se permitir cair na ilusão de uma paixão estúpida por alguém que obviamente lhe escondia coisas. Assim que as porta do elevador abriu no nono andar, ouviram a discussão e seguiram para lá enquanto Pérola choramingava por causa de seu celular.

Malvina queria que sumissem de seu caminho. Queria poder desaparecer. Voltou para sua mesa e teria agradecido imensamente se fosse ignorada. O que aconteceu pelos trinta minutos seguintes até ser tirada se seu estado de semiconsciência pelo toque suave em seu braço. Desviou os olhos e os apertou para focalizar o moreno que a observava com uma ruga de preocupação na testa, ele tentou um sorriso que ficou preso nos lábios, como se fizesse uma careta.

— Almoça comigo?

Sônia contou para ele o ocorrido com Ulisses e concluiu que a razão dela estar em estado de fuga fosse o choque pós-adrenalina. Estava enganado. Malvina estava consciente de tudo ao seu redor, mais do que era seu costume e estava fazendo um esforço hercúleo para permanecer assim, por que sabia que no momento que se permitisse entrar no “modo automático” ela ia caçar e torturar Marcelo e desta vez não haveria quem a impedisse.

Almoçaram em completo silêncio numa cantina que trabalhava apenas com massas. Nicolas tentou falar com ela, mas depois de um longo e incomodo olhar, interrompido pela chegada de seus pratos, ele desistiu da conversa e se concentrou no seu almoço. Como ela não estava normal, nem para o habitual dela que já era anormal, Nicolas lhe deu o resto do dia de folga. Ela apenas assentiu enquanto se afastava.

Encontrou Dandara cochilando no sofá quando chegou em casa, Artur via desenho na televisão e Quitéria estava no outro sofá tentando ensinar Elisabete a fazer crochê. Desde o inicio da gravidez que a irmã tinha se empenhado em usar as horas livres para fazer o enxoval do bebê e quando Amanda elogiou o trabalho manual da filha, Elisabete se sentiu enciumada por que tudo o que tinha feito era escolher nas lojas as peças prontas, e quis fazer pelo menos um sapatinho. Só que ela tinha zero de paciência para aquilo.

— Já em casa? – Quitéria soou debochada, mas dava para notar a curiosidade dela.

— Nicolas não vai precisar de mim.

Foi para seu quarto onde largou a mochila e pegou uma maior, começando arrumar algumas roupas dentro. Não queria ficar ali, queria ir para onde pudesse recolocar a cabeça em ordem e não pensava em coisa melhor do que atenção de mãe para tal.

— Vou passar o fim de semana com a mamãe – anunciou voltando para a sala e digitando uma mensagem para a mãe.

Não demorou para que ela respondesse sua permissão para que ela fosse. Era estranho pedir permissão para a mãe para ir visitá-la? Não. Malvina não conseguia pensar em nada mais desagradável que receber uma visita inesperada numa hora inoportuna, pior quando a visita se prolongava sem se importar para o fato de que o anfitrião pode ter outros planos para ocupar seu tempo. E Amanda não era uma boa anfitriã, de modo que se aparecesse na casa dela sem aviso prévio, corria o risco de ter a porta fechada na sua cara sem maiores explicações.

— Eu posso ir, Tia Mavis? – Artur perguntou animado, já ficando em pé.

— Peça para sua mãe.

— Ela está dormindo – ele disse em voz baixa como se não tivesse acabado de gritar.

— Faz cócegas nela que ela acorda.

Ele se aproximou hesitante e cutucou a barriga da mãe que não se mexeu. Malvina o incentivou a continuar, e ele tentou outra vez e mais uma, sem ter sucesso. Então teve coragem de tentar fazer cócegas mesmo e foi surpreendido por Dandara que o agarrou fazendo lhe cócegas. Artur riu descontrolado tentando se livrar da mãe.

— Vai demorar tanto para o Rafa ter essa idade – Elisabete suspirou acariciando a barriga.

— Ainda bem, por que quando ele não for mais um bebê você vai querer que ele voltasse a ser um para poder niná-lo – Dandara contou, balançando Artur no colo como se ele fosse um bebê.

— Não sou um bebê, mãe – Artur resmungou se agitando até Dandara coloca-lo no chão – Eu quero ir com a Tia Mavis na casa da vovó, deixa?

Com o semblante de quem consegue ver através de uma mentira, a gêmea que todos consideravam assustadora, questionou:

— Quem te perturbou para você estar com essa cara de quem rindo para não chorar?

— Encontrei Marcelo e agora vou dar um tempo longe dele – a verdade, sempre.

— Quem é Marcelo? – Elisabete perguntou, não gostava quando não sabia do que estavam falando.

— Artur pode vir comigo ou não? – quis saber, ignorando a cunhada.

— Vou arrumar uma mochila para ele e Artur, nada de desobedecer a sua tia e nem sua avó...

E pelos vinte minutos seguintes teve que ouvir as recomendações do que Artur podia e não podia. Artur não estava prestando atenção e Malvina também não por que sabia que assim que visse o neto, Amanda ia mimá-lo daquele modo inconsequente que só as avós corujas sabiam fazer, como se fosse a única pessoa no mundo capaz de entender os sentimentos da criança em questão.


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