Psiquê escrita por Camélia Bardon


Capítulo 1
"Is there any just cause for feeling like this?"


Notas iniciais do capítulo

Primeiro: eu escrevi esse spin-off de uma tacada só. 4 mil palavras num dia é de colocar a casa abaixo xD juro pra vocês que sei nem onde eu tô. Para quem caiu de paraquedas: a one-shot a seguir é "continuação" da drabble deixada nas notas da história. É necessária a leitura para compreensão, sim?

Como vão vocês? Como me pediram, tem aqui uma versão estendida da história, do ponto de vista de menina Elise. Vocês vão descobrir mais um pouco dessa menina bruta e esquisita que a gente tanto aprendeu a gostar de uma hora para a outra!

Boa leitura!



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Quando cheguei ao Instituto, em 1982, eu ainda não tinha um “nome de super-herói”. Por motivos de a) eu não era uma super-heroína (nenhum de nós era, mas dizer aberrações é um tanto descortês) e b) eu não tinha amigos que me ajudassem a escolher um. Eu riria, se não fosse trágico.

Minha mutação não era do tipo útil em missões. Para ser sincera, procurei o Professor após descobrir que eles poderiam ser úteis para qualquer caso menor pós-missões. Ele afirmou, fez um dos discursos de paizão dele sobre todas as mutações serem relevantes, me colocou num quarto, e cá estou eu desde então. Mofando.

Segurem a emoção. Já conto sobre o que faço de legal. Sei que vieram aqui descobrir o que diachos eu tenho a tratar com o Ligeirinho.

Primeiro, uma apresentação formal. Elise Holocene, de Inverness, ao seu dispor. Obrigada. Se me perguntar o porquê de eu ter um sobrenome equivalente aos últimos 11 mil anos da Terra, vou fingir que não é comigo. Estamos conversados.

Pois bem.

Fiquei um ano sozinha, com um colega de classe aqui e ali. Nada digno de ser chamado de amizade, a genuína e colorida como me venderam. Mesmo no Instituto, eu recebia uns olhares bem tortos pela minha aparência. Porque, rufem os tambores, senhoras e senhores: eu sou albina.

Por essa não esperavam, né? Eu sei.

Mas o meu reinado de esquisitice, cabelos brancos e rebeldes e olhos lilases não durou muito. Só um ano.

Creio que vocês já saibam do Apocalipse, mas vou dar uma refrescada na memória de vocês mesmo assim. Estamos falando do primeiro mutante, mais velho que uma uva-passa, que queria fazer a limpa na Humanidade e moldá-la a partir daí conforme os parâmetros de perfeição mutante dele. Meio nazista, né? Ainda bem que esse já foi... bem, e os X-Men salvaram o mundo, viva! Custou uma Mansão.

É. Foi bem feio. Ela explodiu (a grande questão é: quando que essa Mansão não está explodindo? Haja recursos para manter esse lugar de pé, céus!). Por sorte, um garoto novo salvou todo mundo ao som de Eurythmics. Sabem de quem estou falando. Passado o Apocalipse, o Professor voltou com suas novas aquisições: o Mercúrio e a Tempestade.

Os safados conseguiram desbancar o meu reinado de cabelos brancos. No. Mesmo. Dia.

 

❀❁❀

1983

 

Vamos voltar a falar sobre a minha mutação. Dentro de um ano, eu tinha me tornado meio que na psiquiatra oficial de mutantes.Eu enxergo sentimentos através de cores. E posso alterá-los conforme minha vontade.

Já devem ter ouvido falar na Teoria das Cores, ou Psicologia das Cores – vermelho para sentimentos fortes, como paixão e raiva; azul para sentimentos leves, como segurança e frio... bem, ela é verídica. O cérebro humano associa as cores existentes e as transforma em sentimentos ou sensações. E eu posso vê-las. Como? Enxergando as cores do resto do ambiente de maneira mais desbotada. Quando emoções se manifestam, elas giram em torno da pessoa como uma aura brilhante. Então, basicamente, sempre sei como todo mundo se sente. E posso ajudar alguém a descobrir os próprios sentimentos, ou ajudar a consertá-los.

É claro que sentimentos são mais complexos que isso. Por exemplo, eu poderia fazer alguém se apaixonar por outra pessoa. Mas fazer alguém amar outra pessoa depende do quanto a paixão inicial vai mudar seu curso. Tem de haver uma predisposição do sentimento. Senão, ele não vai “vingar”, não importa quantas vezes eu refaça o feito.

Então, para passar o tempo e não mofar de vez, eu faço algumas consultas gratuitas, dependendo do caso. Algumas o Professor manda para mim, outras vêm sozinhas. Esses casos, geralmente são os mais complicados de se ajeitarem.

E o Ligeirinho foi um desses.

No único dia que deixei de restrição (ao menos, para o Professor) para as “consultas”, ele bateu à minha porta. Com uma muleta. Eu achei que estava sendo ameaçada de morte. Abri apenas uma fresta da porta, e ele, por sua vez, abriu um sorriso sem-graça.

— Olá. O Professor disse que eu podia falar com uma tal de Elise para...

— Hoje não é dia de consulta — fui logo cortando, com um suspiro. — É meu dia de folga.

— Eu sei. Por isso eu vim. Não queria que soubessem que eu estou aqui. Missão supersecreta, sabe?

— Quanta insolência!

Essa foi realmente a única coisa que consegui pensar em dizer, no momento. Peter franziu a testa, e ficou me encarando, até que se impacientou.

— Inso o quê? Você fala engraçado.

— Como é que é? — arregalei os olhos, chocada por algo entre o insulto e a falta de informação. Listei os sinônimos: — Insolência. Inconveniência. Audácia, desaforo, presunção...

— Está bem! Já entendi. Nossa, foi mal aí — ele soltou uma risada nervosa. — Mas... dá um desconto pela perna quebrada?

Fitei-o de cima a baixo, avaliando o que me era possível. Ele deixou transparecer a intimidação ao transitar suas cores de cinza para tons fortes de amarelo e preto. Uma aura de abelha. Tive de segurar a risada para manter a pose autoritária. Cedi, abrindo a porta para ele entrar. Pelo pouco esforço que teve para entrar, supus que já tivesse quebrado a perna um bocado de vezes.

— Hum. Só dessa vez. Mas não vá achando que ser parte dos mocinhos vai te dar passe VIP para todo lado por aqui.

— O que quer dizer com “ser parte dos mocinhos”? — indagou ele, sentando-se na cadeira e deixando as muletas de lado, com cautela. — Eu cheguei não tem nem dois dias...

— Ah, você sabe. Os mocinhos. Os com poderes legais e úteis. Os que salvam o mundo. E as notícias correm rápido como o garoto que é apressado — abri um sorriso cínico.

Peter assentiu com a cabeça, subitamente sem-graça.

— Suponho que o discurso de toda mutação ser relevante não colou para você, né?

Ele teve sua resposta pelo meu sorriso maldoso.

— Entendi. Mas para salvar o mundo, a gente precisa ter alguém em quem se apoiar.

— Então somos basicamente os atletas de base e vocês ficam no topo da pirâmide? Sem ofensa.

— Se eu disser que sim, você vai fazer aquela cara de quem vai me comer com ovos no café da manhã?

Dei de ombros, me sentando em minha cama. Ele imitou o gesto, junto a uma longa respiração.

— Por que você fala engraçado desse jeito?

— Por que você não diz o que veio fazer aqui? — rebati a pergunta. — Escocesa.

Pensei que, com o humor ácido, ele desembucharia logo o que tinha a dizer. Pelo contrário. Pareceu que o bicho-do-mato se sentiu mais confortável ainda para me amolar.

— Legal. Então o seu nome de super-herói é Monstro do Lago Ness?

Foi minha vez de ficar sem-graça. Comprimi os lábios, pigarreando logo em seguida.

— Poderia até ser. Minha cidade natal é Inverness. Mas eu não tenho um nome de super-herói. Não sou heroína, já disse.

— Eu também não tenho um. Estou pensando — ele sorriu, mas me pareceu mais um arreganhar de dentes. — E ele existe? O Monstro?

Suspirei, impaciente. Peter resmungou um “desculpe”, quase inaudível se eu não estivesse atenta para acabar logo e voltar a ler meu livro.

— É que eu queria ficar mais tranquilo aqui dentro — Peter bateu a ponta dos dedos indicador e médio nas têmporas. — Esse Apocalipse foi um cara complicado. Eu preciso te pagar alguma coisa?

— Você pode me pagar com o seu silêncio, o que acha desses termos?

Gargalhando, ele se ajeitou na cadeira. Consegui sorrir também. A tendência seria troca de farpas, então. Nada mal.

— Termos ótimos, madame. Só mais uma pergunta. Dói?

— Claro que não dói! Não estou te colocando dor. No máximo, umas cócegas.

— Ok. Essa foi uma pergunta idiota. Ponto para você. Vai lá, faça o seu truque.

Fiz que sim com a cabeça, preparando o terreno enquanto ele me observava. Tinha muito azul-escuro. Preto e cinza. Acordos gerais: resolva o problema, não faça perguntas sobre o problema. Abrindo minha paleta mental, dei uma empurradinha no preto, que saiu do plano da aura. Agora era trabalhar o cinza e o azul-escuro. Tentei misturar os dois até obter uma tonalidade de azul mais clara. Foi a hora das cócegas.

— Que bizarro — comentou ele, se remexendo na cadeira igual uma lombriga.

— Eu sei. Já está acabando.

Adicionei um toque sutil de vermelho para força mental e verde para um recomeço saudável. Examinei o resultado, satisfeita. Nada de furos ou falhas. Dava para o gasto. Fiz um gesto com a mão, indicando já ter terminado.

— Tudo sob controle? — perguntei, para desencargo de consciência.

— Está. Que coisa mais estranha. Que é que você colocou aqui, drogas? Pode falar, é maconha? LSD? Eu juro que não conto para ninguém! — ele ria de nervoso, tentando entender.

— Drogas? Tá doido? Claro que não!

Ainda desconfiado, ele pegou as muletas e colocou-as contra o peito, usando-as logo em seguida para se levantar. Permaneci estudando seus movimentos até que ele parasse na porta, matutando sobre o que dizer a seguir.

— Cabelo legal. O branco e tal. Quase legal que nem o meu.

Filho de uma mãe...

 

Com uma semana de intervalo, os treinos dos mocinhos começaram para valer. No entanto, o bicho-do-mato continuava com aquela cara de quem tinha comido e não gostou. Me senti na liberdade de me sentar de frente para ele, lançando primeiro um olhar para o prato de carne moída e, depois, ergui uma sobrancelha.

— Achei que ia estar animado por voltar a correr...

— Ah, não, a perna quebrada... parece até seráfico, agora.

E depois sou eu quem fala engraçado... que diacho que é seráfico, meu Deus?

— A carne moída da cantina estava estragada?

— Não! — ele riu sem perceber o tom alto da voz, que ecoou pelo refeitório inteiro.

— O que foi então, Maximoff?

E aí, como se tivesse levado um tapa, ele ficou sério na mesma hora. Parecia até outra pessoa.

— Na verdade... tem algo que me perturba.

— Ah, é? Tipo, é sério ou algo do tipo “a menina que eu quero me rejeitou”?

— É sério, palhaça!

Gargalhei com um tom a mais de maldade. Mais um dia de folga.

— Vamos tratar isso como adultos. Em uma locanda.

Eu tinha certeza que ele não saberia o que era uma locanda. Fiz de propósito, mas ele era meio doido, nem questionou. Ou talvez só estivesse muito desesperado mesmo.

Geralmente, os remendos psicológicos duravam mais que uma semana, mas aí a pessoa também tinha que parar de cutucar a ferida, senão não havia nada que eu pudesse fazer para ajudar. Eu o ouvi contar sobre todo o trajeto da infância, descoberta dos poderes e traumas, como se fosse uma velha amiga. Quer dizer, agora isso queria dizer que eu era amiga dele? Pelo visto, sim.

Nem todas as pessoas funcionavam do mesmo jeito. Algumas se sentem mais confortáveis guardando os problemas para si do que dividindo eles com outras pessoas. Pelo número de pausas durante a narrativa, reparei que Peter fez um esforço enorme para colocar aquilo para fora. Talvez ele não tivesse amigos, afinal. Quantos anos ele teria? 20? Não, pelos cálculos, um pouco mais. 25? 25 anos sem um amigo? E sem um pai? Talvez fosse a hora de parar com as trocas de farpas por um segundo.

— Obrigada pela confiança — falei, sincera. — Sabe... sei quem daria uma ótima figura paterna.

— Quem?

— O Professor. Ele é como um pai para mim — mordi o lábio, pensativa. — Enquanto procura o seu pai, pode ter um postiço...

Dito e feito. Naquele mesmo dia, eu fui conversar com o Professor no escritório dele. Expliquei a situação sem mencionar nomes – afinal, era a história dele, não a minha. Mesmo tudo resolvido, e os dois conversando separadamente depois, tive a impressão de que ele escondia algo. Rápido do jeito que ele era, poderia ter rodado o mundo inteiro e eu nunca saberia. Certas coisas sempre seriam um segredo. Peter saiu do escritório com um sorriso triste estampado no rosto, sentou-se ao meu lado e pôs-se a encarar os próprios pés.

— Eu pensei num nome de super-herói.

— É? Em uma semana?

— Pois é — ele riu fraco. — Adivinha.

— Eu sei lá. Só tenho cara de bruxa, ainda não sou vidente.

— Uma dica: é da mitologia greco-romana.

Franzi a testa e repassei todos os deuses possíveis na minha cabeça.

— O único que consigo pensar é em Hermes. Por causa das sandálias aladas e tal. Passei perto — arrisquei.

— Na mosca. Mas Hermes parecia herpes, aí eu troquei para Mercúrio por fins óbvios. Não ia pegar bem. O que você acha?

— Eu acho condizente. Gostei. Até porque ele é patrono dos ladrões também, né?

Ele resmungou, mas riu do meu comentário. Nada como fazer piada do passado, com sabedoria.

— E... pensei em um para a madame também.

Foi minha vez de voltar meu olhar para ele, curiosa. Peter exibia agora um sorriso travesso. Por isso eu sempre pensava que ele era mais novo, mesmo com o cabelo branco do metabolismo acelerado.

— É? Em uma semana? — repeti, com um tom brincalhão.

— Eu sou muito inteligente — ele devolveu o sorriso, e ergueu uma sobrancelha, convencido. — O que pensa de Psiquê?

— A deusa? O que você tem com mitologias, hein?

Ele assentiu com a cabeça e riu, aguardando uma resposta. Certo. O que eu sabia sobre ela? Eros apaixonou-se por uma mortal, sua mãe Afrodite obrigou-o a fazê-la se apaixonar por uma criatura mítica e temível, quando na verdade teria se apaixonado por Eros. E na psicologia humana, a psique é a palavra usada para descrever a alma ou o espírito, de um modo que ela destoasse da religião.

Não era o que eu fazia com as cores?

Com um sorriso, confirmei com a cabeça.

— Boa ideia. Acho que tenho um nome de super-heroína, então.

— Pois é. Se não fosse eu quem tivesse sugerido, iria dizer que estava me copiando. Cabelo branco, nome de deus grego/romano...

— E se não fosse eu que tivesse aceitado, diria que estava tentando entrar na vida de dupla comigo — gargalhei.

— Imaginação sua!

Ah, eu me senti tão vitoriosa ao ver aquela cara vermelha...

 

❀❁❀

1989

 

De uma hora para a outra, os X-Men já não eram mais aberrações. Eram celebridades. E, por mais que eu detestasse admitir, isso me preocupava para um santo caramba. Imaginar que eles eram tão novos e podiam não voltar um dia? Quer dizer, meu instinto de mãe apitava igual não sei o quê. Missões urgentes eram uma coisa, agora... fazer no intuito de receber parabéns? Era de uma irresponsabilidade enorme. Mas, como não era eu quem ditava as regras por ali (e nem eu quem saía por aí cortando cabeças de monstros), guardava a opinião para mim.

Menos para a única pessoa a qual eu dividia minhas opiniões. Até porque ele também fazia parte do grupo que saía em missões.

— Só estou dizendo que pode ficar perigoso um dia desses. E se você escorregar e morrer?

— Escorregar e morrer! — ele riu alto, encostando as costas numa das árvores do jardim. — Não acha que está exagerando um pouco, Liz?

— Não. Não acho — cruzei os braços, ainda de pé, olhando para baixo. — Você mesmo disse que se escapar da própria corrida e bater a cabeça, pode morrer. É a sua palavra contra a sua.

Ele abriu a boca para responder, mas percebeu que ele tinha mesmo dito isso. Então, só suspirou e liberou espaço para mim na grama. Foi o que fiz, mas abri minha cópia de Fahrenheit 451 e encostei em seu ombro, fingindo de nada. Precisava de um apoio.

Pelo menos era o que eu dizia para me convencer.

— Eu não vou morrer. Estou enlaçado por aquela promessa, lembra?

— Ah, lembro — ri com maldade. — Aquela com todo o clichê possível. Até parece que somos adolescentes. Vamos entrar nos anos 90, algo me diz que esse papo todo de celebridade vai atrair um monte de menininhas gritantes e chatas para você ficar à vontade. Aí eu vou estar livre para ser a esquisita que ninguém quer, para variar.

A tal promessa consistia em, se ele alcançasse os 40 (o que ainda faltava oito anos) e continuasse solteiro, casaria comigo para não ter que dividir a herança com ninguém desagradável. Já passávamos tempo suficiente juntos para saber que a companhia um do outro não era nada complicada. Mas isso foi antes. Antes de eu admitir ter guardado alguns sentimentos com relação a ele. Agora, ser a segunda opção parecia um tanto... do tipo que despedaçaria meu coração inteirinho.

O pior foi antes ter dito “casar com você? Mas nem morta!”. Lembrete do dia: sob hipótese alguma, cuspam para cima.

— Não esquenta — pela contração em seu ombro, suponho que ele tenha aberto um sorriso. Já tinha até decorado a cena. Podia repassar ela mil vezes na cabeça. — Ninguém vai te substituir.

Quase suspirei. Ao invés disso, tentei me concentrar em vão na leitura do meu livro.

 

❀❁❀

1992

 

O salvamento dos astronautas foi um sucesso. Mesmo que todos tenham ficado preocupados – e com razão – com a Jean na volta. Quer dizer, ela deu um susto em todo mundo. Até as cores dela tinham mudado. Comentei o fato com o Professor antes do discurso orgulhoso de praxe, e logo depois ele instruiu o dr. McCoy a exames e procedimentos padrão.

E o Peter... se comportou como de praxe. Com seu falso jeito pretensioso. Eu não duvidava do que ele dizia ser verdade, mas o jeito que ele falava... não sei como aquelas garotas não deram um soco na fuça dele.

— Ah, eu salvei todo mundo — narrava ele. — A Jean ajudou, mas... mais para o final.

Ele não ia ter tempo para mim pelo resto do dia. Tudo bem. Não precisava de exclusividade. Só dei de ombros e contribuí com a boa reputação, forçando uma gargalhada:

— Vá pascer, Maximoff!

Em retorno, ele me olhou de uma maneira estranha. Evitei espiar suas cores. Eu deveria ter feito isso, porque logo depois veio o acidente com a Fênix Negra. Pensei ter jogado uma praga quando Peter literalmente escorregou e entrou em coma.

A cena mais horrível foi ver dois corpos sendo tirados do jato, um envolto em panos fúnebres (eu viria a descobrir que se tratava da srta. Darkholme mais para frente) e o dele, inerte. De início, meu coração acelerou e apenas soltei um arquejo sufocado, pensando o pior. Por que sempre tinha de pensar o pior?

O dr. McCoy me permitiu ficar de olho nele enquanto ainda não se recuperava. Se minhas cores também se mostrassem, exibiriam uma dose extra de rosa e vermelho, uma pitada de azul e cinza, que ele tanto tinha. Só saí de perto da maca para comer e tomar banho, porque minha cama agora era a cadeira que tinha lá. De qualquer maneira, os eventos seguintes não se prolongaram por mais de três dias. Quando ele acordou, eu dormia em cima de sua mão. Quase levei um tapa, mas ao menor movimento já despertei.

— Nunca mais eu duvido do escorregar e morrer — ele riu fraco, enquanto eu ainda estava com a cabeça apoiada em sua mão.

— Não, isso foi horrível, minha consciência pesou, fiquei achando que foi minha culpa...

Com muita dificuldade, ele se virou para mim, inabalável.

— Ficou aqui esse tempo todo?

— Bom, fiquei — senti minhas bochechas esquentando. Me apressei para não me delatar: — Quem mais ficaria? Você é doido!

Peter abriu um sorriso, o que fez abrir um ponto em sua testa, e ele fechar o rosto numa carranca novamente. Meu instinto foi automático: correr um dedo para segurar o ponto. Ele permaneceu me encarando, curioso. Me levantei por um minuto para pegar novos equipamentos de costura e voltei a ficar ao seu lado.

— Olha, de todos os meus sonhos com garotas bonitas, nenhum deles incluía costura de testas — no máximo que pôde, ele riu.

— Você tem um padrão de beleza bem exótico para me considerar bonita — ri, sem graça, e ajeitei o travesseiro para ele conseguir se sentar. Dei uma correção em seu nervosismo aparente, substituindo por calmaria. Costurar a testa devia doer. Eu não queria estar no lugar dele.

— Sempre achei. Só não disse por que achei que iria me socar.

— Por que eu iria te socar se me elogiasse? — pisquei, confusa, mas logo retomei a atividade.

— Porque... ai! ... porque se eu começasse a te elogiar, eu não iria mais parar.

Foi minha vez de franzir a testa.

— Eu acho que você bateu a cabeça muito forte, Maximoff — eu ri, mais de nervoso do que outra coisa.

— Não foi esse o caso — assim que terminei de costurar novamente a ferida, ele usou a força que tinha para segurar meu pulso com delicadeza para onde minha mão estava antes de ele acordar. E então permaneceu com a mão ali, deslizando-a para entrelaçar os dedos uns nos outros. Permaneci atônita, observando tudo e tendo ciência de minha respiração ofegante pela surpresa. — Penso assim antes de bater a cabeça, também. Bem, bem antes.

— Ah... — ah, garoto... para quê brincar com o meu coração desse jeito?

— Não! Não mesmo!

— O que? — ok, agora eu me perdi.

— Eu sei exatamente o que está pensando. Está dando um jeito de se autodepreciar de novo. Conheço você há quase dez anos. Sei tudo que você está pensando.

— Nem tudo — suspirei e me desvencilhei de leve de sua mão. — Nem tudo. Acho que foi muita emoção para só cinco minutos. Vou te deixar descansar agora, está bem?

E lá foi a última tentativa dele. Que coragem.

— Você não é minha melhor amiga, Elise. Confio minha vida a você. E você é a única pessoa que eu esperava ver aqui. Eu... adoraria que pudesse se enxergar como eu a enxergo. Sem piadas, dessa vez.

Engoli em seco, no entanto me permiti retribuir o sorriso, de escanteio.

— Vai ter que tentar mais vezes...

— Não tem problema. Sou bem insistente, e tenho a vida toda.

Não era possível. Anos e anos a fio e ele me dava uma dessas agora? Eu não ia reclamar agora, ia? Mal reparei seu esforço em alcançar minha altura, de onde eu estava. Peter teve de apoiar-se num cotovelo, mas por sorte meus sentidos aguçaram-se a tempo de recordar de que ele tinha acabado de despertar de um coma. Não era bom grandes emoções. No entanto... já que era para ser delicada, eu seria ao menos essa vez. Arrependimentos seriam guardados para depois. No momento, eu teria de me concentrar em não me tremer toda.

Eu tinha a plena ciência de ele já ter beijado dezenas de garotas, e eu sequer ter atingido a marca de um. Mas se fosse para ser assim, que fosse com ele. Ao menos, se fizesse algo de errado, não seria ridicularizada.

A primeira sensação foi sentir seus cílios batendo em minha bochecha como asas de borboleta. Sorri de leve com a comparação, bem como ele, antes de cortar a distância entre nós.

Era macio. Parecia veludo. Era para parecer veludo?

Por instinto, meu dedo correu por sua bochecha, apreciando o calor da pele corada. Já ele conseguiu me provocar um arrepio por optar o caminho pela nuca, segurando-se em meu cabelo. Carinho, carinho é bom. Até que ele usou daquilo para aprofundar o beijo. E tudo que eu fazia era sorrir, feito tonta.

E isso que eu só aceitaria morta. Como era a letra daquela música, mesmo? I just died in your arms tonight?

 

Demorou algum tempo para que se desse um nome àquele relacionamento. Porque, afinal, outra coisa me ultrapassou. Coisa, não, pessoa, com nome e sobrenome bem conhecidos por estas bandas: Erik Lensherr. Quando o vi aproximar-se do filho, soube que era a hora de conversarem. Foi uma explosão de laranja, verde e amarelo, do qual eu não deveria participar.

O mais engraçado é que, após uma narrativa épica, após nove anos tentando, a grande chance de Peter Maximoff foi tomada pelo próprio pai. E, francamente? Que honra a minha em fazer parte da vida de alguém tão incrível. E insolente.

— E o que pensa sobre isso, madame Psiquê? — indagou ele, rindo, finalmente.

— Eu penso que agora o senhor vai ter de arranjar outro objetivo de vida.

— Não acho que seja necessário...

Não era um casamento. Mas um segurar de mãos já me parecia o paraíso.


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Notas finais do capítulo

A saber: a música que ela menciona no final é [I Just] Died in Your Arms, do Cutting Crew, que também foi a música que me inspirou na hora de escrever a história. Para quem quiser: https://www.youtube.com/watch?v=2wf-MNzSbpA

Espero que vocês tenham surtado de diabetes e gostado tanto quanto eu gostei de escrever ♥ E novamente, qualquer dúvida é só contatar a tia. A gente se vê numa próxima!