Vampires will never hurt you escrita por manasama677


Capítulo 11
Capítulo 11 - I never told you what I do for a living




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Helena ponderou sobre o que seria melhor: aguentar quieta a investida de Martinelli ou empreender algum esforço em se soltar. Ao calcular que seu corpo não aguentaria uma nova onda de violência sexual, a jovem reuniu forças para empurrá-lo e desatou a tropeçar alguns passos, já que correr não era mais possível. Mas Martinelli logo a alcançou e, agarrando seus cabelos, cobriu-a de socos nas costas, cabeça e ombros. A agitação fez com que Helena se sentisse mais uma vez arranhada por alguma faca que havia escondido no vestido – ela literalmente as costurava nas roupas que vestia – e esse deux ex machina foi responsável por lhe garantir mais alguns segundos de afastamento: com a faca, Helena cortou o próprio cabelo que Martinelli agarrava e, quando ele tentou agarrar a manga do seu vestido, a própria fragilidade da renda garantiu sua soltura. Alguns metros a separavam dele, àquelas alturas.

 

— Sua vadia estúpida! Não vai fugir tão fácil assim de mim!

 

Sua ira dobrou quando, ao tentar estender a mão para apanhar a caçadora, Martinelli terminou com ela rasgada na palma pela faca com que a menina havia acabado de se armar. Em compensação, quando ele a alcançou, atacou-a com um violento chute nas costas que a derrubou de bruços no chão.

 

— Maldita! Agora você vai ver!

 

Helena mal teve tempo para levantar, e Martinelli já estava sobre ela.

 

— Agora, você me pertence! Não se atreva a resistir!

 

Mas ela tentou resistir, o que afinal não deu muito certo: batendo a frágil mão de Helena contra o chão de pedra duas vezes, ele rapidamente a desarmou.

 

— Está assustada, querida? - ele perguntou com um sarcasmo ferino e vitorioso.

 

Ela não respondeu; não sentir nenhuma faca ou outra arma inusitada qualquer espetando seu corpo era resposta o suficiente.

 

— Quem disse que você precisaria lutar contra mim? Eu te amava, e ainda te amo… quero dar a ti a mesma eternidade que será minha… Mas tu, ingrata, tu não te cansas de me trair! Veja isto! - ele expôs o corte de faca a ela, e em seguida a agrediu com aquela mesma mão, fazendo o rosto dela ficar totalmente manchado de sangue em uma das bochechas. Depois, como tomado por outra personalidade, continuou: - Apesar disso, mesmo com todos esses revezes, é uma maldição que eu não consiga me esquecer do teu corpo…! Oh, minha preciosa e adorada Helena! É verdade que a princípio eu brincava consigo, mas agora, diante da oportunidade de encarar um infinito prazo de existência, não cogito mais vivê-lo sem ti!

 

Ao contrário do que ele dizia, no entanto, suas mãos ganhavam o pescoço da garota, como que no intento de enforcá-la.

 

— Este pescoço tenro e branco… quisera eu mordê-lo e eliminá-la de uma vez para todo o sempre, até a última gota de sangue! Mas não posso fazê-lo, não sem morrer junto contigo! Aceito qualquer missão, dou fim a qualquer um, mas enfraqueço diante de ti. E, ainda que me mate de raiva, você continua sendo essa vadia que beija deliciosamente bem…!

 

Helena desviou-se de suas tentativas de beijá-la por alguns segundos, depois ele tomou seu rosto com brutalidade e forçou seus lábios nos dela, ganhando uma mordida como resposta. Martinelli rebateu a defesa dela com um soco que fez mais um corte no lábio inferior da garota, e fez reborbulhar a hemorragia que ela tinha no nariz. Ela rolou para o lado, para desentupir o nariz, é verdade, mas também para tentar se levantar. Ele pacientemente esperou que Helena escalasse as paredes e se apoiasse nelas até ganhar a sustentação máxima: pernas relativamente eretas e costas curvas, as mãos agarradas nas pedras irregulares que montavam aquele corredor escuro. Mais uma vez refazendo a postura, Martinelli encaixou sua cabeça no ombro de Helena e sussurrou, de maneira quase sedutora:

 

— Minhas felicitações por conhecer o prazer da vida eterna.

 

Helena, cansada de corpo e mentalmente esgotada, ia-se deixando morder. Ela sabia que um vampiro recém formado ou provisoriamente constituído por meio de poções não daria conta de se controlar em suas primeiras alimentações. Com isto, ela esperava encontrar a morte imediata e evitar a violência, pois não suportava mais a dor.

 

“Não há mais chances para mim”, foi a última coisa que ela pensou antes de cair de joelhos, enfraquecida. Martinelli tentou agarrar seus cabelos ou seus ombros para mantê-la ereta, isso não ficou claro, mas também não é importante levantar essa questão – qualquer o ponto que ele tenha tentado agarrar, falhou – Helena passou direto rumo ao chão. Em vez de se importar se ela estava viva ou morta, ele sorriu. Agarrou um de seus braços, pois ela havia caído de bruços, e a virou de volta de peito para cima. Alinhou suas pernas e braços juntos, como uma criança faz ao colocar uma boneca para “dormir”. Ela apenas ficou na posição articulada por ele, sem resistir nem esbravejar, mas definitivamente não estava se fingindo de morta. Ele percebeu isso, e interagiu com ela:

 

— Neste mundo nunca mais caminhará animal mais belo do que tu.

 

Helena fechou os olhos, e se lembrou de uma conversa onde seus familiares associavam sua beleza a uma eventual fraqueza de corpo e espírito:

 

“Talvez sua delicadeza tenha manchado a reputação dos Lee Rushs.”

 

— É chegada a hora de tornar eterno esse dom.

 

Martinelli, convencido de que conseguiria fazer dela uma escrava para toda a eternidade, aproximou suas presas do pescoço da jovem. Naquele momento, ela não tinha ideia nenhuma em mente, apenas virou o rosto para o lado, para não ter de encará-lo. No entanto, este ato a salvou: a exatamente alguns centímetros de sua cabeça, estava a faca que ele havia tirado das mãos dela minutos atrás, brilhando discretamente à meia-luz. O brilho refletiu em seu rosto, e então ela abriu os olhos. Não teve dúvidas, agarrou sofregamente aquela última chance que a Providência lhe deu e externou em palavras aquilo que fervilhava em seu coração:

 

— Eu decidi que não seria mais o ponto fraco da família.

— O qu…?

— Talvez a sua vida não seja...mais tão eterna assim...meu caro Martinelli.

 

Ao término da frase, Helena, usando as duas mãos, já tinha rasgado de um lado a outro a garganta do ex-noivo. Muito surpreso e furioso, ele tentou proferir palavras de baixo calão para ofendê-la, mas tudo o que conseguiu fazer foi se afogar no próprio sangue. Helena o empurrou de cima dela, e tentou se arrastar para o quarto mencionado por Arthur, repetindo para si mesma, entre arquejos e ruídos afogados de agonia:

 

— Lado direito, terceira porta…

 

Martinelli agarrou seu pé e ela, num urro furioso, recolheu a perna por um segundo e depois a esticou novamente, acertando o rosto do ofendido, que por fim tombou, de garganta aberta. Ela passou uns três segundos olhando para aquela ferida pulsando e jorrando de um jeito indecente e para o seu proprietário agonizante, como se quisesse mentalizar a veracidade daquele feito. Estava acabado, ela tinha vencido.

(…)

 

Vince, o atual líder dos Seingalts, estava em seu gabinete quando um de seus irmãos apareceu comunicando as mortes dos seguintes irmãos: Johann, que morreu tentando atacar a filha de Karl Lee Rush; Adam, que investiu pateticamente contra o mesmo alvo e terminou com uma flecha na boca; Bertrand, que arrastou a filha de Karl Lee Rush com ele para uma das câmaras e lá foi apanhado enquanto tentava possuí-la.

 

— Bertrand não poderia morrer de outro jeito – Vince comentou, com um sorriso irônico – Mas me parece que todos os mortos desta casa têm uma coisa em comum: tentaram atacar a preciosa filha de Karl Lee Rush. Deveras interessante.

— Permita-me continuar.

— Em frente, Charles.

— Anna tentou atacar um caçador e foi ferida, morrendo minutos depois. Arthur estava com ela nesse momento.

— E o que fez o covarde? Fugiu chorando?

— Basicamente. Arthur! O que esperar dele?

— Que fado! Diga-me que alguém, pelo menos, deu cabo desse inútil!

— Ramon e Emma seguiram no encalço dele com esse intuito.

— E que novas trazem?

— Não voltaram ainda. E algo me cheira mal nessa história.

— De fato, não os vejo há algum tempo.

 

Vince exibiu ao irmão uma estranha máquina circular semelhante a uma bússola. Nela, deslocavam-se pequenos pontos de luz em diferentes tons de neon, cada um representando um irmão. O vampiro chamado Charles curvou-se sobre o artefato e listou, pontuando cada elemento com um agitar do dedo indicador:

 

— George, Luke, Christopher, Benjamin, Alfred, Ian… Arthur. O donzelão ainda é vivo.

— Como pode ser possível que Emma e Ramon estejam fora da lista e Arthur continue vivo?

— Não quero irritá-lo, mas… Bom, Arthur enamorou-se de uma caçadora dos Lee Rushs, como tem se espalhado nas últimas horas. E parece que foge em companhia dela.

— Uma caçadora, qual delas? A filha do mestre geral? A que estava com Bertrand?

— Não, a outra. A que estava com nosso pai quando ele foi executado pelo caçador Richard van Gloire.

Sem dizer uma palavra, Vince tocou no lábio inferior e, parecendo muito concentrado, esfregava a ponta do indicador de um lado para o outro.

 

— Vince?

— Pensei em algo improvável. Ora, eu não me atreveria a dizer algo tão patético em voz alta.

— Do que se trata?

— Tu acreditas que Arthur, aquele Arthur, seria capaz de matar Ramon e Emma?

— Arthur? Não.

— Mas a caçadora, sim. Não poderia?

— Ouvi dizer que ela foi bastante ferida, e que o próprio Arthur a tem protegido.

 

Vince tocou na testa, exasperado.

 

— Ah, aquele verme...!
— Que providências pretendes tomar quanto a isso?

— Onde está Julius Martinelli? Lucius, seu mestre?

— Não sabes? Ambos mortos.

— Como?

— Julius Martinelli procurava a caçadora de nome Helena. O outro, parece que teve um encontro com o principal dos Lee Rushs.

— Essas mulheres dos Lee Rushs estão conseguindo me deixar irritado.

 

— O que devemos fazer?

— Onde estão os outros?

— Estão na sala de jogos.

— Fazendo o quê?

— O que se faz numa sala de jogos?

 

Vince olhou para a cara do irmão como se estivesse pensando qualquer coisa, exceto jogar. Abanou a cabeça depois das ideias impróprias e levantou-se.

 

— Quantos Lee Rushs ainda existem? Quantos Martinellis?

— Não sei.

— Pois se informe e me diga.

— S-sim. Mais alguma coisa?

— É uma coisa surpreendente que Julius Martinelli tenha sido derrotado – Vince comentou, para ninguém em específico – Após fazê-lo derrotar o último Lee Rush acreditando que eu o transformaria em um de nós, eu esperava assassiná-lo pessoalmente. Esse é o tipo de trabalho que eu detesto que façam por mim.

— Depositava tanta expectativa assim nele?

— Ele comandava um exército de ghouls, que agora devem ter ficado inativos sem o mestre vivo. Um verdadeiro desperdício de talento! É isso o que me aborrece, eu dei poder demais a quem não sabia como usar.

— Podemos fazer os nossos.

— Não temos mortais indefesos num raio de quilômetros. E, antes que chegássemos à estrada atrás de algum viajante, a luz do sol nos encontraria.

— É verdade.

— E aquele bastardo do Arthur, que poderia nos ajudar nesta missão, me acha de escapar ao lado de uma caçadora!

— Tu me pareces um tanto preocupado.

 

 

Vince estreitou os olhos e encarou o irmão de um jeito que Charles percebeu imediatamente que a alternativa mais segura era ir embora dali.

 

— Vou avisar os outros de que devem vir para cá.

— Não, espere. Tenho outra ideia.

— Do que se trata?

 

(…)

 

Margarida e Sean estavam perdidos, perdidos mesmo, pelo castelo. Poucos metros os separavam do gabinete onde Vince se encontrava com seu irmão Charles, e eles não faziam a menor ideia disso.

 

— Creio que o pior possa ter acontecido – Sean, esbaforido de tanto caminhar com Margarida nas costas, disse.

— Não podemos desistir de Helena! Ela nos ajudou!

— Eu sei, filhinha, mas tu hás de concordar que apenas caminhamos em círculos e nem sinal dela. Será que estamos sendo vítimas de algum tipo de delírio, que estamos sempre a ver o mesmo cenário? Que diabos, parece que estou passando pela vigésima vez neste mesmo canto!

— Você não tem uma sensação estranha?

— Sensação? Estranha?

— Sim – Margarida prosseguiu seu raciocínio, olhando atentamente para os dois lados.

— Mulher, eu estou para me aliviar nas calças; não me invente histórias.

— Sinto como se estivéssemos sendo observados!

— Era tudo o que eu não queria ouvir!

— É sério! Melhor nos escondermos.

— Onde faríamos isso?

— Vamos para algum lugar… hmmm…

— Seria muito estúpido irmos para um quarto?

— Com certeza! Não sabemos quantos deles ainda existem! Eles podem estar esperando para atacar em seus quartos!

— E se fôssemos para algum lugar que nenhum deles pensaria em estar?

— Como por exemplo?

— Ah, não sei! Um quarto de empregadas!

— Pelas teias de aranha, este lugar não sabe o que é ter uma empregada faz muito tempo!

— Tem razão. Isto quer dizer que, se houver quarto de empregadas, eles estarão vazios!

— Que surpresa, você raciocina.

— Há, há, há – ele riu com ironia – Vamos!

 

Mas, antes que eles dessem o primeiro passo, Vince e Charles saíram por uma porta a cerca de quatro metros de distância deles. Havia próxima a eles uma escultura de uma criatura metade sereia, metade besta infernal, que lhes serviu de esconderijo. Margarida ia abrindo a boca para emitir um comentário, mas Sean a impediu de falar, quase sufocando-a com a mão. Os corações que martelavam contra o peito eram as únicas coisas cujo barulho eles não podiam controlar; em todo o resto o silêncio deles era sepulcral.

 

 

— Certo, cuidarei disso imediatamente – eles escutaram Charles dizer.

Vince, que estava com ele na entrada, voltou para dentro do gabinete enquanto Charles ia embora. Para sorte e sobrevivência dos dois, o vampiro tomou a direção oposta à que eles estavam.

— Espere, não vá ainda – Sean sussurou – Ele ainda pode nos ouvir.

— Estou com medo.

— Vai ficar tudo bem.

Quando sentiram que o monstro estava a uma distância segura, os dois tiraram os sapatos para não fazer barulho e correram.

— Eu não sei se tenho mais medo dos vampiros ou se daqueles horríveis parentes da Helena! Acho melhor não procurar por eles, eles nos lançariam como iscas de novo na frente das feras sem pensar duas vezes.

— É verdade! - ele assentiu. Depois, pensativo ao ver a dificuldade dela em caminhar, sugeriu: - Tome esta faca e corte suas anáguas. Elas pesam muito e te impedem de correr.

— E como vou botar as caras lá fora depois?

— E tu preferes isto ou nunca mais pôr as fuças na rua, filhinha? Ora, te decidas.

— Grosso! - ela retrucou, contrariada, cortando as saias e ficando apenas com a parte de baixo da combinação. Ao fim do processo, ela entregou o vultoso amontoado de tecido a ele.

— Precisamos esconder isto em algum lugar.

— Eu seria louca se dissesse que acho que seria melhor ficarmos com isto?

— Ora, mas eu já disse para tirar isto de ti para evitar o peso!

— Cortemos o pano em tiras. Isso pode nos ajudar a, não sei, fazer uma corda. Corda pode nos ajudar, certo? Podemos amarrar os vampiros! - agitada, ela quase fez uma posição de luta.

— Não quero parecer pessimista, mas eles são muito fortes. Rasgariam todo este pano como se estivessem a romper finas peças de gaze.

Margarida rolou os olhos e fez biquinho. Contrariada, embolou o pano todo e o escondeu atrás de uma estátua ligeiramente semelhante àquela que os tinha salvado há pouco.

— Como eles conseguem ter esse tipo de gárgula horrorosa no corredores mais escuros do castelo? Que assustador!

— Como eles se assustariam, se eles próprios são monstros?

— Hum! Faz sentido.

— Como está teu pescoço? Sentes como se o enrijecimento da pele estivesse avançando?

Margarida fez um movimento com a cabeça como se quisesse estalar o pescoço. Um lado foi movido com sucesso. No outro, ela sentiu a pele repuxar e gemeu de dor.

— Não sei dizer. Ainda me sinto estranha…!

Sean pegou as mãos dela, tirando-as do alcance do pescoço, e cuidou ele mesmo de tatear a chaga. Ao fim do exame disse, sem um grama de otimismo:

— Vai dar tudo certo. Confie.

— Helena se sacrificou para obter a poção, e no entanto não estamos conseguindo ajudá-la…

— Acalme-se. Nós a encontraremos!

— E se eles a mataram?

— Neste caso, temos que escapar daqui em segurança para que o sacrifício dela não tenha sido em vão!

 

(…)

 

 

George, Lake, Christopher, Benjamin e Alfred, os irmãos remanescentes de Vince e Charles, muito contrariados, interrompiam sua jogatina para escutar o que o irmão mais próximo do líder do clã tinha a dizer.

 

— Trago más notícias, como o bem sabem. Bertrand, Emma, Anna, Johann, Adam e Ramon estão mortos.

 

Cerrando os olhos e inspirando profundamente, ele por fim suspirou e acrescentou:

 

— Alexander também não aparece no nosso oráculo. Ian é outro que não deu notícias.

— Você deve estar preocupado com a morte de seu irmão favorito! - riu-se George, um rapaz de vestes desalinhadas e barba por fazer; ares de ébrio.

 

Charles meio que enrubesceu:

 

— Não digas tonterias. A morte de todos me preocupa.

 

George, de troça, fez uma imitação fria dele anunciando a morte dos primeiros irmãos; por fim, uma teatralmente chorosa acerca do anúncio da morte de Alexander. Isso levou todos os irmãos presentes, exceto Charles, é claro, às gargalhadas.

 

— Sejais prudentes! Cuidado com os arrulhos! Querem por acaso facilitar nossa localização aos caçadores? - ele advertiu, sussurrando.

— Ora! Tu não sabes que o caçador que bater nesta porta estará morto? Infernos! Estamos em um, dois, três… - Benjamin, tão bêbado quanto George, não conseguia dar conta de saber quantos irmãos tinham ali.

 

Isso, mais uma vez, causou um riso geral.

 

— O vinho deixou-me um tanto afetado – ele se desculpou.

— Silêncio! - Charles rosnou, muito duro.

— O que Vince tem para nós que ele mesmo não pode fazer? Não é ele o líder da família? O que faz de tão importante que todos morrem e eu não posso ver aquela cabeça irritante e pretensiosa rolando e pegando fogo? - Alfred inquiriu.

— Ele tem planos para nós, como eu ia dizendo.

— Ia? Pois nada ouvirei – Christopher deu meia volta para sair, mas Charles agarrou seu braço e o conduziu a uma cadeira na qual ele, afinal, se sentou.

— Ouçam, é verdade que ele considerou a possibilidade de enfrentarmos os caçadores, mas agora que somos tão poucos, ele trabalha com a possibilidade de fugirmos.

— Gracejas conosco? - Lake perguntou, cético.

— Vince, fugir? Estamos falando do mesmo indivíduo? - Alfred também se manifestou, considerando aquilo impossível.

— Não é hora para brincadeiras. Os caçadores são numerosos, estão com armas cuja quantia desconhecemos e pela velocidade com que nos matam, no mínimo estão com muita sorte ou carregam artefatos sagrados consigo!

 

Todos ficaram muito sérios de repente, concentrados ao redor da mesa de carteado em que antes jogavam.

 

— E qual é o plano dele? Porque eles devem ter invadido tudo, incluindo as passagens secretas! - Lake deu de ombros, equilibrando uma carta de pé entre o dedo indicador e a borda da mesa.

— Então...seria caso de um de nós ir até a passagem secreta e fazer os preparativos. Quando tudo estivesse pronto, esta pessoa chamaria o restante. Não temos muito tempo até o nascer do sol, urge que nos decidamos logo quem o fará.

— Você – todos disseram ao mesmo tempo.

— Mas quero saber de Vince, o que fará ele? Eu não me arriscarei sem saber que ele pretende fazer alguma coisa – disse Alfred – Ele não me dará ordens de cima para baixo! Não sou tolo de cumprir incondicionalmente aquilo cujo retorno sequer faço ideia!

— Vince pretende lutar sozinho em nome da família.

Nenhum Seingalt se esforçou para esconder a surpresa.

 

— Por que aquele morcego pretensioso se julga capaz de enfrentar os caçadores sozinho, enquanto nos despacha como a um bando de inúteis? Eu me recuso a obedecer tão ultrajante comando! – Alfred mais uma vez o contestou.

— Se anseias tanto assim por uma missão – Charles objetou – cuide daquele traidor chamado Arthur! Ele, neste exato momento, encontra-se foragido em companhia da maldita caçadora dos Lee Rush!

— A filha do caçador Lee Rush engatou um romance com aquele maricas? Mal posso acreditar! - riu-se George, cutucando Lake, que estapeou seu braço, insatisfeito com aquela proximidade.

— Não se trata da filha do caçador em si, e sim daquela agregada da família que estava em companhia de nosso pai quando Richard van Gloire, o caçador, o matou.

 

Os vampiros fizeram movimentos com a boca que indicavam sua completa insatisfação diante daquela notícia, mas não chegaram a emitir palavras.

 

— Já o disse antes a Vince, que também não ficou nem um pouco feliz.

— Nada que me surpreenda – Christopher deu de ombros – Filho de uma mortal, paixão por mortais; parece-me uma combinação óbvia!

— Não compreendes tu a gravidade desta traição? É justamente aquela caçadora a quem todo nós devemos, por honra de nosso pai, executar! - Charles o tomou pela lapela. Parecia realmente irritado – Nós o encarregamos de matá-la, mas, em vez de fazê-lo, Arthur interessou-se nela!

— É bela, afinal, a mulher?

— Que importa, imbecil???

— Olhe, quer saber? - Christopher o interrompeu, soando muito despreocupado – Arthur e a caçadora não vão longe.

— Como tens tanta certeza?

— Ramon e Emma estavam no encalço dos dois. É impossível que tenham escapado desse confronto vivos, ou, pelo menos, incólumes.

— Como disse antes, os dois foram mortos – Charles rebateu.

— É impossível! Nosso “mapa” deve estar errado.

— Vince confirma não sentir mais a presença deles.

— Uh, isto é grave.

— Nós seremos os próximos a morrer se não seguirmos os planos de Vince.

— E, nestas condições, tu me impões que eu procure aquele perdedor do Arthur? - Alfred questionou – Ora, que vão aos diabos Arthur e a caçadora que ele escolheu para desposar! Não têm nem nunca terão minha bênção! Tanta coisa para se preocupar agora, por que iria eu me importar em caçar um farsante que sequer chegou a ser um de nós, de qualquer maneira? Puseram-no cara a cara com uma mulher, e que mulher de agradáveis atributos! O que ele fez? Não a quis. Ora, errastes ao assumir que esta decepção personificada pudesse em algum momento fazer algo por nós. Aceite a derrota e sigamos adiante!

— Eu não consigo me conformar com tantos irmãos mortos! E algo me diz que Arthur entregou aos Lee Rush o caminho da vitória! Só isto justificaria tantas mortes seguidas! - acusou Charles.

— Ele realmente não se conforma com a morte de Alex – George provocou.

— Nossos irmãos merecem ser vingados.

— Fugindo, não nos vingaremos de nada – Lake argumentou.

— E se morrermos, vingaremos menos ainda – Benjamin, que estava quieto, se manifestou – Não sei por que, mas a fuga me parece uma opção melhor. Confio em Vince, acho que ele tem um bom plano.

— Estamos perdendo tempo – Charles, ansioso, encarou um relógio de parede que anunciava a alta madrugada.

 

— Cuide dos preparativos para que nossa viagem se torne segura – pediu Benjamin.

— Sim, pode deixar isto a meu encargo.

— Mas, enquanto isso, o que faremos? - quis saber Lake.

— Preparem suas capas, luvas, máscaras e até armaduras. Teremos que percorrer um longo caminho até um espaço seguro. Não podemos de forma alguma entrar na rota do sol!

 

(…)

 

Arthur se arrastou até chegar ao quarto combinado para encontrar Helena. Temia entrar e não vê-la ali, ou mesmo encontrá-la morta; o coração palpitava de expectativa e as pernas fraquejavam ao imaginar os cenários possíveis. Ele não parecia otimista. Ferida como ela estava, não havia argumento para que Helena estivesse viva. No entanto, ele esmiuçou com seus olhos fracos todo o corredor que o levou para lá e não a viu. Reconheceu o que pareciam ser gotículas de sangue, só que isso poderia ter perfeitamente outro sentido. Exceto a possibilidade de alguém tê-la arrastado e feito o pior (hipótese que ele nem sequer ousava mentalizar, pois seu coração se partia ao imaginá-la de novo se encontrando com Martinelli), não havia outro argumento para ele não encontrar sua amada ali. Como as migalhas de pão do conto de fadas, aquilo era um indicador de sua presença, ele o sabia. Ciente de que não teria tempo para rodeios, empurrou o que faltava para terminar de abrir a porta. Um enorme rastro de sangue pintava o chão, como se alguém severamente ferido tivesse sido arrastado por ali. O desespero o fez verter às lágrimas:

 

— Não chegamos até aqui… para morrermos separados…! Não é, Helena?

 

 

De imediato, ele reconheceu as delicadas pernas de Helena ao longe, e suas fartas saias manchadas de vermelho. Ela estava largada no chão, pois sequer havia conseguido subir na cama.

 

— Arthur…! - ela murmurava – Você prometeu… que estaria aqui…!

 

Helena não parecia ter se dado conta de que ele tinha acabado de chegar.

 

— Que tola eu fui!… - ela dizia, numa voz afogada e quase inaudível – Ele disse aquilo… apenas para me proteger!

 

Arthur, após engatinhar até ela, sacudiu seu ombro. Assustada, ela se voltou para ele muito bruscamente, erguendo os punhos fechados para se defender de qualquer ataque.

 

— Vais mesmo atacar um rapaz ferido? - o jovem perguntou, em um tom bem humorado que não condizia com seu estado – Que indelicadeza.

— Oh! Você! - Helena exclamou, dispensando o primeiro, e possivelmente o último sorriso que Arthur Seingalt veria em seu rosto.

 

A menina tentou se levantar para abraçá-lo, mas, para evitar que ela se esforçasse, Arthur estendeu a mão em tom de censura e deitou-se ao seu lado, tomando uma de suas mãos e apertando-a entre as dele.

 

— Conseguimos – ele disse, com não pouco esforço.

 

 

 

— A porta...não deveria estar aberta – Helena observou, racionalmente.

 

Arthur fechou os olhos e suspirou ante esse vacilo. Quis se levantar para encerrá-la, mas dessa vez foi ela que não o permitiu ir.

 

— Tudo bem… muito em breve, não estaremos mais aqui…

 

Como ela se esforçasse para não chorar, Arthur lhe perguntou o que tinha.

 

— O que será de mim… de minha alma… após tantos malfeitos?

— Nós viveremos juntos para sempre, seja onde for. Contanto que a encontre, que me importa o destino de minha alma? Veja, trouxe algo comigo.

 

Helena voltou com certo esforço sua cabeça para a direção dele. A posição era desconfortável e, ela percebeu, afogava-lhe ainda mais as perfurações no corpo. Ela sentia que seus pulmões perdiam a finalidade, e então respirava ruidosamente.

 

— É da minha família. Não sei que coisa me ocorreu para trazê-lo comigo assim que soube que virias… mas quero que seja seu – ele disse entre pausas, pelo esforço semelhante de também estar à beira da morte.

 

Ela sentiu correr por seu dedo um metal gelado e circular. Era um anel de grande quilate.

 

— Cacei os Seingalts toda minha vida… Encerro meus últimos momentos com um símbolo deles entre meus dedos. Que ironia, meu Deus…!

— Desculpe, não foi minha… intenção...

— Que importa? Irei morrer. Que poderia eu receber de um Seingalt… senão o anel de compromisso de um deles?

 

Arthur sorriu graciosamente. A tensão abandonou seu rosto, e então ele cerrou os olhos. Disse, com pesar, como convencido da grande mentira que dizia a si mesmo:

 

 

— Não, não diga que irás morrer… nossa vida só começa agora.

 

 

Esforçando-se para respirar, e mais, fazendo de um tudo para manter a cabeça voltada para a direção de Arthur Seingalt, Helena exclamou, sem pausas, ainda que com a voz trêmula:

 

— Eu não esperava encerrar esta noite casada!

 

Seu sorriso triste converteu-se naquela expressão apaixonada que precede um beijo de amor. Arthur também teve reavivada a lembrança que antecedeu a invasão do quarto que abrigava os dois antes da chegada de Julius Martinelli e seu então aliado Karl Lee Rush. Mesmo sob protestos da amada, o jovem arrastou-se para perto dela, pois tinha a intenção de selar o compromisso colando seus lábios nos da amada.

 

O beijo ficou apenas na intenção.

 

Helena sentiu uma rápida corrente de ar abanar seu rosto e instintivamente tentou se deslocar para o lado, ainda que suas condições físicas impedissem um milímetro de desvio. Arthur, sem saber o que o aguardava, fora prontamente atingido pelo golpe fatal e certeiro de uma foice, que fez um rasgo diagonal no seu corpo, do ombro até a metade das costas. Ferido de morte e sem a menor sustentação, ele tombou em cima do corpo já mortificado pela dor de Helena, o que a fez produzir um lamento estranho semelhante a um grito. Seu pranto foi histérico quando ela sentiu o calor do sangue de Arthur envolver toda a curva de seu pescoço e cabelos.

 

— Encontrei isto em um corredor que dava acesso para este lugar. Acredito que deva ter sido displicentemente abandonada por uma leva de caçadores infelizes, como poderei sabê-lo? Não me importa. Que encontro fortuito, Srta. Lee Rush. Há muito que gostaria de lhe falar.

 

Arthur, em seus últimos espasmos, tentava cobrir com seu corpo a figura amiudada e reduzida daquela que considerou seu maior tesouro. Falhou. Um chute para arrancá-lo de cima de Helena o fez remoer a dor pelos próprios ferimentos. Helena, livre de Arthur, pôde finalmente vislumbrar o rosto pálido de seu assassino: o vampiro Vince, atual líder do clã Seingalt.

 

— Arthur, Arthur…! – disse o monstro, contemplando a face do jovem irmão que, aos poucos, ganhava a inércia dos mortos – Nasceste como uma falha, e como tal encerraste teus dias. E tu – ele se dirigia agora a Helena – que travaste este combate inelutável, o que dizes a respeito de tua desdita? Trouxeste a ti o infortúnio, e para ele arrastaste também este meu pobre e tolo meio irmão! Que seja; pelo menos, desta vez, não arrebanhaste mais de um dos nossos, ou dos mais fortes. Esta batalha inútil na qual insististe em permanecer em companhia dos teus já nos causou inestimável prejuízo, e não vou negar que a cumprimento por isso. Porém, não se deve lutar contra aquilo que lhe faz frente. Serei generoso, no entanto, considerando que tua vida aqui se extingue. Não: não se preocupe – ele acrescentou, à agitação que Helena demonstrou, como se temesse ser machucada – Eu não preciso feri-la. Já me satisfaz saber que meu pai eliminou o teu noivo caçador Richard van Gloire, e que eu, filho dele, encerrei a vida imprestável de Arthur, o teu mais novo amante e traidor do nosso clã. Este é o seu destino – matar-nos com êxito, sim, mas também perder qualquer um dos seus homens para um Seingalt. É uma recordação deveras amarga para se levar para o túmulo, e eu permitirei que se lembre muito bem disso em seus últimos minutos.

 

Helena voltou o rosto para Arthur e cerrou os olhos ao ver que ele não tinha mais nenhuma vida na expressão pétrea que ostentava. Ele definitivamente perecera.

 

— Arthur! – a moça sussurrou, reabrindo os olhos e tentando tocar o rosto do amado – Oh! De novo não…! Não isto novamente…!

 

Vince apenas sorriu do pranto de Helena, cruzando os braços friamente e contemplando-a em seus momentos finais.

 

— Que vil, que vil és! – seriam suas últimas palavras, se ela não estivesse se afogando no próprio sangue e lágrimas – Que o Profano o leve!

 

O rapaz, que já se preparava para dar meia volta e sair, a encarou do alto, com aquela postura superior de nariz arrebitado e queixo erguido. Pose de quem já se acreditava vitorioso.

 

— Na residência do Maligno, é lá que nos encontraremos, Srta. Lee Rush.

 

Dito isto, ele foi embora cerrando a porta discretamente.

 

 

 

Os negros e longos cabelos do novo líder dos Seingalt e sua pele translúcida se destacavam na escuridão. Os passos que ele não se preocupava em minimizar anunciavam sua presença, mas não mais do que suas vestes vistosas, com um gibão bordado à moda de Luís XV e sobrecasaca com folhas de ouro nos punhos e abotoaduras. Aqueles trajes, pesados e antiquados para a época vigente, e que eram quase um uniforme da família Seingalt, estavam novos como se ontem houvessem sido fabricados; mas a graça e a beleza do estilo era neles um demarcador de quem eles eram e da ameaça que representavam.

 

O rapaz estava impaciente por dar de cara com dezenas de metros de corredores intocados e sem movimento, mas essa tranquilidade acabou quando ele viu uma roupa caída chamuscada no chão, no meio do nada, tomada por um mundaréu de cinzas. Vince cerrou os olhos tentando lembrar qual dos seus muitos irmãos usara aquela roupa mais cedo, e sim, o nome de Ian lhe veio à mente. Que lhe teria sucedido? Uma perfuração no peito com um pedaço de estaca chamuscada ainda afincada naquela direção seria a sua resposta. Quem teria feito aquilo? Ainda estaria nas proximidades? Seu olhar de lince percorreu todos os arredores mais próximos e, uma vez se sentindo seguro, atravessou a galeria aberta que o conduziria à sua câmara particular. Charles entrou em seu esconderijo pouco tempo depois dele, provocando-lhe um enorme susto.

 

— Ian está morto – disse ele.

 

Sem nada manifestar de pesar, o líder apenas assentiu com a cabeça. Com movimentos pacificadores para ajeitar as longas madeixas, ele tentava afetar tranquilidade.

 

— Eu já sei. Será o último – assegurou.

— Precisamos pensar em como será nossa existência fora daqui. Este lugar se tornou inseguro para todos, uma vez que caçadores tomaram conhecimento dele.

— Voltaremos a estar seguros se pusermos fim à vida de todos os insolentes que se atreveram a nos enfrentar.

— É um verdadeiro massacre!

— Os outros já foram comunicados do plano de fuga?

— Até onde sei, alguns se arrumam conforme sua recomendação e tomam a direção da masmorra. Mas temos alguns retardatários.

— Alfred e George.

— Vejo que conheces bem nossos irmãos.

— Eu sabia que teríamos problemas com eles. Rebelam-se inutilmente e se expõem como idiotas. O caso é que não terei tempo para lamentá-los. A propósito, caso encontre qualquer um deles, informe que eu pessoalmente cuidei do traidor.

— Arthur?

— Sim. Imagine que estava com a isca dos Lee Rush, protagonizando uma cena das mais pitorescas!

— Não diga!

— É o limite do atrevimento!

— E o que fez a ele?

— Encontrei uma foice no caminho e desferi um golpe em suas costas. Ele, que já estava ferido por todos os lados, não resistiu.

— E a caçadora? Esta sim merecia um tratamento ainda pior, pois foi a responsável por van Gloire executar nosso pai!

— Deixei-a lá, para que amargasse a capitulação de seu mais novo amante.

— E nada fizeste a ela? Poderia tê-la violado, como retaliação.

— Se bem conheci Julius Martinelli, ele deve tê-lo feito à larga. Ora, alguém o fez, o estado de suas roupas não indicava outra coisa. Além disso, violações não fazem meu estilo. Se não conquisto as mulheres, não as tenho; é um ideal de civilidade de carrego.

— Ainda devotas alguma fidelidade àquelas humanas que conheceste, não é?

 

Vince fez-se sério de repente. Ele definitivamente odiava ter seu passado revisitado sem consentimento.

 

— Mas, o que diabos fazemos aqui conversando tranquilamente como se nada houvesse? – mudou bruscamente de assunto, para evitar a ira que este assunto lhe provocava.

— É verdade, precisamos nos apressar.

 

 

Alfred e George ainda subestimavam a seriedade que seus irmãos colocavam no plano de Vince. Ficaram os dois na sala de jogos, ainda sem acreditar que os outros tinham partido rumo ao esconderijo que o irmão mais velho sugeriu.

 

— E se caçadores descobrirem que há uma passagem lateral que ruma para a direção do calabouço, o que sucederá a quem lá se esconder? Eles se arriscam de duas formas: por esta passagem e pela única porta que os separa do dia claro, aquela que vem de cima – Alfred lembrou, explicando afinal por que não seguiu com os outros.

— Fala daquele portão subterrâneo no centro do pomar? – George, com a voz arrastada, quis saber.

— Sim, haverá reflexo do dia se abrirem aquela passagem, ou não? Decididamente morrerão se qualquer um desses acessos se tornarem conhecidos aos caçadores. Há inclusive uma manivela que causa a abertura daquela entrada por dentro. Eu me lembro que era um lugar para onde nosso pai mandava os traidores, aqueles vampiros de baixa casta que tinham parte com caçadores. Punha-os ali e depois ia conferir as cinzas quando chegava a noite seguinte.

— Então, o que Vince planeja ao mandar todos para um lugar tão perigoso?

— Talvez ele pretenda matar os outros, não salvá-los.

— Insisto: por que ele faria isso?

— Não o sei. Talvez queira se livrar de nós.

— O que não faz sentido, pois ele ficará sozinho.

— E será que isso importa? Tu não te lembras de quando ele ficou enamorado daquelas três cortesãs mortais? Nosso pai deu fim nelas, e ele se ressente em saber que um dos irmãos colaborou em informar nosso pai do seu caso amoroso. Ele até hoje não sabe qual, talvez esteja usando a ocasião para descobrir quem foi.

— Disse-me ele, exaustivamente, não se importar mais com isso.

— E tu acreditaste?

— Não sei, não me importa. Não o temo. É indiferente para mim.

— Na minha opinião, ele esteve apenas esperando, esperando friamente, como é bem de seu feitio. Talvez já tenha descoberto quem o entregou e queira acertar as contas com o traidor esta noite.

— Sacrificando todos os outros?

— Sacrificando todos os outros, sim! E se ele quiser se livrar de nós para ir atrás das mortais novamente?

— Não entendo até hoje como os demais o nomearam o novo líder. Se formos resgatar esta história, há de se convir que foi um desatino!

— Ele era o favorito de nosso pai. E pior: ele acreditou de fato que Vince o perdoou pelo assassínio de suas três prostitutas! Parece-me que Vince voltou-se ao nosso pai não porque foi resgatado à sanidade, e sim porque tinha planos de liderar o clã futuramente. Bem sabes que a frieza paciente é uma de suas mais notáveis características.

— É o que temos quando podemos esperar pela eternidade; as grandes paixões, os ímpetos inflamados, isto é coisa de quem não tem tempo a perder, e nós o temos, à larga!

— Tínhamos! Tínhamos! Agora, precisamos decidir o que fazer, e rápido. E, se Vince tem planos de trair nossos irmãos, precisamos comunicá-los disto!

— Os outros que paguem por sua lealdade cega. Eu realmente não me importo!

— Se é verdade que Vince tem planos de eliminar nossos irmãos, não o deixarei em paz.

— E o que pretendes tu fazer contra ele?

— Temos as adagas mágicas do clã Seingalt, os tesouros adquiridos em confronto contra os clãs de caçadores inimigos ao longo das eras.

— Ora, não me venha com essa!

— Falo a sério. A situação é extrema! Não sei o que nossos irmãos esperavam quando seguiram conforme o plano de Vince, mas decididamente estão em perigo!

— E então?

— Então, tomo as adagas e uso uma delas contra ele! Não é possível que ao menos uma delas não tenha eficácia contra ele!

— E tu sabes os poderes que elas possuem?

— Sei que são duas. Uma, a de cabo vermelho, tem o poder de encerrar a vida daquele que for tocado por sua lâmina.

— Aquela que faz o imortal tocado por ela explodir em chamas.

— Sim, essa mesma. Já a verde…

— Eu me lembro que nosso pai comentava que ela tinha um terrível poder, mas nunca fez questão de esclarecê-lo.

— Sabe de uma coisa? Percebi que Ramon portava a adaga da destruição imediata. A vermelha. Ele a levou quando foi atrás de Arthur e sua caçadora. Talvez isso explique porque ele e Emma não tiveram chances, Arthur deve tê-la tomado dele e invertido a situação em seu favor.

— Seria uma boa teoria, se não estivéssemos falando de Arthur. É mais fácil Emma e Ramon terem tido algum tipo de desacordo entre eles pela posse da arma, ou as suas velhas discussões amorosas de sempre.

— Ninguém pode afirmar que os dois estiveram juntos quando morreram.

— O “sinal” deles desapareceu quase que imediatamente ao mesmo tempo.

— Vince saberia dizer isso melhor, afinal o oráculo está em sua posse. No entanto, não podemos mais confiar nele para coisa alguma. Mas vamos cuidar dos caçadores primeiro; ao menos nisso, nós e Vince estamos de acordo.

 

(…)

 

Os Lee Rushs já estavam há algum tempo sem confrontar nenhum inimigo, o que julgavam preocupante. Intrigava-os, sobretudo, não reconhecer em nenhum dos inimigos que deram cabo Vince, o vampiro que os desafiou logo que chegaram ao castelo. Com certeza haviam outros além dele! Talvez algum andar do castelo escondesse ghouls, carniçais! E se estivessem pendurados ao teto? Tudo era argumento para olhar para todos os lados, estudar cada passo. Karl, especialmente, era o mais paranoico de todos. Ele se queixava continuamente de que seus companheiros de empreitada deveriam ser mais rápidos, ou mais cuidadosos. Quem agia de uma forma, recebia dele críticas de que deveria proceder do outro modo. Vincent era o maior alvo de suas observações, visto que, ferido, não conseguia acompanhar o ritmo dos demais.

 

— O mestre sabe que fui atacado.

— E, por saber disso, me questiono se é seguro tê-lo conosco!

— Posso assegurar que nenhum deles me mordeu, se é o que o senhor deseja saber – afirmou o rapaz, já meio impaciente daquela desconfiança toda.

— Ofegas demasiado. Quem me garante que não estás a te transformar em um deles?

— Horas nos separam do momento em que fui atacado. Ora, se eu estivesse sofrendo algum tipo de transformação, seria o primeiro a saber! Insulta-me com sua desconfiança, Sr. Lee Rush.

— É verdade, senhor meu pai – Angela tomou partido do noivo – Vincent confrontou a vilã com coragem, e se não fosse ele, eu não teria a oportunidade de feri-la!

 

Mais uma vez, ela engoliu as palavras quando seu pai a encarou com aqueles olhos semicerrados, ofensivos e desconfiados, algo que ela nunca tinha visto voltado em sua direção, e sim na de Helena.

 

— Senhor— disse Bernard, tentando amenizar a discussão, e buscando ele mesmo esquecer dos últimos acessos nervosos do velho Karl – Precisamos estar atentos a tudo; não podemos provocar entre nós o menor alarido. Um segundo de desatenção poderá desencadear uma tragédia. Meu sangue e o de Vincent já chamam o inimigo para perto de nós; precisamos ser cautelosos.

— Eu, caçador há mais de quarenta anos, tenho que escutar um rapazote vir me dizer o que eu devo ou não fazer!

— Não foi minha intenção ofendê-lo, senhor. Mas…

 

Antes que Bernard concluísse seu raciocínio, um tapa do pai o acertou na nuca.

 

— Era um mosquito!… – bradou o velho, soltando em seguida uma gargalhada tão histérica e imprudente quanto sua fala.

 

Indignado e ciente de que o silêncio era precioso, Bernard nada disse, mas a risada de alguns caçadores aliados suscitou sua fúria.

 

— Pare de agir como uma criança estúpida! O senhor parece ter perdido o juízo, age como doido! – o rapaz rosnou ao pai, que fez-se lívido e de cara trancada.

— O que disseste, seu maricas!?

— Disse o que ninguém tem coragem de falar! Estás senil, ou a falta de Helena o fez perder o correto governo das ideias!

— O que disseste? Tu vais aprender a respeitar o teu pai! – Karl voltou-se para o filho com a fúria redobrada.

 

Sem que ninguém conseguisse separá-los, os dois começaram a se engalfinhar. Alertas de todos os lados vinham para que os dois fizessem silêncio, mas eles brigavam como dois cães ferozes e não ouviam ninguém. Angela, que tentou, com a ajuda de Vincent, segurar o pai, tomou uma cotovelada no seio e afastou-se, aos prantos. Seu próprio noivo foi acotovelado no nariz e sentiu jorrar dele uma catarata de sangue. Isolando-se a um canto, percebeu que algo ali havia sido quebrado. Não se animou mais a fazer qualquer coisa. Dois guerreiros cuidaram de separar a confusão, e Bernard estava tão furioso que mesmo segurado pelo tórax, ele ainda tentava acertar o pai com os pés.

 

— Eu vou me lembrar da tua rebeldia – Karl ameaçou, com a boca sangrando – Se tu prezas pela tua vida insignificante, nunca mais durma debaixo do meu teto!

— Já chega! Parem os dois! – um dos homens determinou. Sendo ele imenso e de físico avantajado, ninguém se atreveu a desobedecer.

 

 

 

Um muro de combatentes se fez entre Bernard e o pai. Um companheiro do filho de Karl Lee Rush sugeriu que eles tomassem outra direção e se dividissem novamente. Angela, quando viu Vincent seguir o mesmo caminho e indicar com a cabeça que eles deveriam acompanhá-los, ficou apreensiva de estar a sós com o pai e seus aliados, por isso o acompanhou.

 

— Até tu, traidora, me viras as costas? Ah, o que posso dizer mais? Trair é do teu feitio! – ele acusou, com todas as letras.

— O senhor não sabe mais o que está dizendo – ela se aproveitou da confusão do pai para escapar ilesa dessa.

— É mais uma? Mais uma a dizer que estou louco? Pois eu nunca estive melhor!… Estou enxergando até aquelas coisinhas pequenininhas que ninguém mais presta atenção…

 

Angela ficou em um silêncio apreensivo. Vincent, ainda assoando o nariz de todo o sangue (ele tinha que fazer isso continuamente agora), meneou a cabeça, revoltado. Em silêncio, pôs o braço nos ombros da noiva e a conduziu para junto dos aliados de Bernard.

 

— Essa vem comigo! – Karl, em três passos, alcançou a filha e a agarrou pelo braço, puxando-a para si.

— Sigamos todos por esta direção, então! – Angela tentou propor, para que os ânimos não se exaltassem novamente.

— Eu já disse que vou para este lado aqui! – Karl protestou, pegando um vaso de cima de uma coluna de mármore e o arremessando ao chão.

— Senhor, por Deus!

 

Vincent tentou conter o futuro sogro de quebrar mais coisas. Este arrancou de suas mãos o lenço com que ele enxugava o nariz e o agitou para cima, com um semblante tolo, quase infantil.

 

— Ahá! Doeu? E então, doeu?

 

O jovem, que escondia sua irritação melhor do que Bernard, contrariou todos os seus planos e sinalizou à noiva que seguissem o pai dela de novo. Angela, indignada com sua falta de coragem, colocou as mãos na cintura, comprimiu os lábios e arregalou os olhos. Sua linguagem corporal era a de quem perguntava: “Sim, vai segui-lo como um cãozinho obediente?” Vincent deu de ombros e fez uma cara de “fazer o quê”. Mas Angela não se conformou com isso, ainda mais quando seu pai mandou mais esta:

 

— Ela está com medo de mim! Hahaha! Eu já até sei o porquê!

— Vincent, por favor – ela sinalizou ao noivo que seguissem o irmão.

— Eu também acho mais prudente seguir por ali – disse o guerreiro alto que já mencionamos, indicando a trupe de Bernard.

 

Confiante de seus atributos, os outros também acharam mais prudente seguir Bernard e seus asseclas. Karl ficou possesso:

 

— Vão mesmo me abandonar aqui?

— Não era o senhor que manifestou tamanho interesse em seguir por aí, quebrou até um vaso para demonstrar o quanto esse caminho era seguro? – Bernard falou de longe, agitando as mãos com sarcasmo.

— Ora, seu moleque…!

— Chega de confusão aqui! – o guerreiro alto determinou.

— Olha aqui, seu!! Você não fique achando que…

 

Sem dizer mais nada, o homem deu dois passos até o patriarca dos Lee Rush e cobriu sua cara inteira com a mão em concha. O velho caiu quase todo desmontado no chão, e protestou ao oferecimento de ajuda de um dos seus aliados.

 

— Já mandei fazer silêncio! É por isso que eu odeio velhos! – disse o homem.

 

Sem conseguir enfrentá-lo, Karl seguiu junto com a trupe de Bernard, calado e amuado.

 

(…)

 

— Tenho certeza de que escutei ruídos naquela direção – disse Sean, alegremente.

— É verdade? Acho que meu estado mal me deixa ouvir as coisas.

— Tu ainda consegues caminhar?

— Sim, consigo.

— Deixe-me ver como isto está agora – o ex-mágico tocou no pescoço da moça novamente e, com as pontas dos dedos, vasculhou desde o ponto abaixo da orelha até a curvatura da clavícula.

— E então?

— Não sei, posso estar sendo tomado pelo otimismo, mas me parece que a pele não está mais tão rígida quanto antes.

— Verdade? – Margarida perguntou, dando saltinhos de alegria.

— Acalme-se! E não te agites. Não te esqueças de que estamos aqui, ainda cercados dos monstros que provocaram este ferimento.

— Oh! É verdade. E o barulho que ouviste, de que lado ia? O que arriscas?

— Não acho seguro averiguar. Podem ser os malditos sanguessugas, ou, pior do que isso, a família de Helena. Mantenhamo-nos escondidos aqui, em paz. Nada parece vir nem aqui, nem daquele lado. E é melhor que tudo continue assim.

— Mas pode ser Helena e ela pode estar em perigo!

— E o que poderíamos nós fazer?

— Ajudá-la! Ajudá-la, Sean! Ela inteligentemente tomou teu cinto e nos soltou daquela pilastra! Enfrentou aquele velho miserável por causa do antídoto que, você mesmo disse, está me curando! Portanto, se Helena estiver em perigo, é nosso dever salvá-la!

 

Sean ficou pensativo e, achando que ele não tomaria providências, Margarida se precipitou do corredor em que estava para a vista de lindas grades rendadas. Agarrou o parapeito da sacada e vasculhou com seus olhos curiosos todo o entorno.

 

— São eles!

— Filhinha, considerando a situação toda, “eles” é um termo um tanto quanto amplo! Explique-se!

— Os parentes da Helena!

— Essa não! Verdade?

— Sim. Discutem algo ali embaixo.

— Não olhe! Vamos tomar outra direção.

— Helena pode estar com eles! Ela foi atrás deles naquela hora.

— Não acredito que ela possa ter chegado a eles e, se chegou, com certeza não foi bem recebida.

— Você é muito pessimista, Sean.

— Pessimista, nada! Eu só conheço esse tipo de gente!

— É verdade. Ela não está com eles. O que terá acontecido a ela?

 

Sean, para não magoar Margarida, nada disse. Mas, pela expressão que ele tinha no rosto, se ela o encarasse naquele momento, saberia ler todas as palavras que ele tinha em mente.

 

 

 

— Sabe o que acho melhor? Buscarmos a saída. Talvez Helena tenha encontrado uma porta escondida – Sean mentiu, para incentivar Margarida a segui-lo.

— Ela disse com todas as letras que morreria em combate hoje! Pelo pouco que conheço dela, afirmo que ela jamais se retiraria daqui covardemente assim.

 

Sean fez uma cara como se essa palavra – covardemente – lhe doesse.

 

— Sem falar que a lealdade desmedida dela aos seus parentes não a permitiria ir embora. Enquanto estivesse viva, ela não iria deixá-los aqui, à mercê das feras! Se tiver pernas para caminhar e braços para combater, não os abandonará, disso estou certa!

— Pois saibas que estás sendo tão imprudente e teimosa quanto ela!!

— Justa! Este é o nome certo para a minha “teimosia”.

— Espere! Aonde pensa que vai?

— Vou falar com eles para saber de Helena, óbvio!

— Nem pensar! – Sean falou em um volume relativamente alto, atraindo a atenção dos parentes de Helena assim mesmo. Ele revirou os olhos ao se dar conta disso.

 

Margarida, com seus passos saltitantes bem característicos, desceu as escadarias impune e despreocupadamente, como se monstros das trevas não pudessem desabar de um lustre daqueles na direção de seu pescoço a qualquer momento.

 

— Espere, mulher! Céus! Que maçada! Esta criatura não tem juízo!

 

Os Lee Rushs olharam para a direção dos ex-circenses e Bernard, especialmente, fez um muxoxo, exasperado por aqueles dois ainda estarem ali, vivos, quando muitos de seus guerreiros já tinham morrido – alguns pelas mãos do próprio Karl.

 

— Onde está Helena? Não mintam! Tenho certeza de que ela os encontrou em algum momento!

— E quem tu pensas que és para nos cobrar alguma satisfação? Uma artistazinha de circo! – desdenhou o rapaz.

— A melhor contorcionista que os senhores haveriam de conhecer, se tivessem a oportunidade de conferir meus espetáculos, se querem saber!

— Roubaste nosso antídoto em companhia daquela puta! - Karl rugiu, furioso.

— Se o senhor estiver falando de Helena, saiba que ela vo-lo pediu! Não o destes a ela porque não quisestes!

— E ainda é cínica, essa bisca!

— Não vi nenhum dos senhores responder o que Margarida perguntou – Sean escondeu a ex-colega de trabalho atrás de si mesmo, tomando a frente.

— Ela escapou em companhia de seu amante, o meio-vampiro! – Bernard levantou a blusa e mostrou o corte superficial que tinha no ventre – E ainda por cima quase me matou, a desgraçada! Ah! Se eu a pegar...

 

Sem esconder a alegria por aquela informação, Margarida tomou as mãos de Sean e o encarou com um sorriso de orelha a orelha.

 

— Ela o encontrou!

— E tu ainda te satisfazes de nossa desgraça? Qual tua participação nisso, vadia? – Karl, feroz, fez-se lívido. Sua saliva grossa produziu uma chuvarada na direção da roupa de Sean, que enxugou os respingos com o pulso da blusa, enojado.

— Inferno! Pare de me babujar e me diga precisamente há quanto tempo Helena se aliou ao demoninho, para que eu possa ter notícias deles, senão esta outra peste não me deixa em paz! – ele se referia à sua companheira, Margarida.

— E ainda assumem a traição assim, de cara limpa! – Bernard, indignado, vociferou – Então, nem sequer negam que sabiam que Helena estava a pretender coisas com aquele mensageiro do inimigo!

— O que sabíamos ou deixávamos de saber, não é de vossa conta! Tenho às mãos as notícias que queria, o senhor e sua família passem bem e eu vou-me embora na mais santa paz!

— Não é tão simples assim! Os traidores merecem ser punidos! – um dos aliados dos Lee Rush determinou.

— Traidor foi quem nos lançou aos carniçais, a mim e a Margarida, para morrermos, sem que nada tivéssemos feito para suscitar tremenda desumanidade!

— Estivestes com Helena, a traidora! – Karl quis reivindicar seu protagonismo naquela discussão.

— Pois, se ela o traiu, foi muito bem empregado! Eu mesmo o trairia mil vezes, seu violador de merda!

 

Margarida cobriu a boca, achando que aquela acusação daria grande efeito. Pois Karl Lee Rush passou por ela direto:

 

— Se eu não consegui matar a ela, a traidora, darei fim a ti, o aliado daquela maldita!

— Vais ter que passar por cima de mim primeiro, seu abutre velho! - Margarida avançou, valente, ficando à frente de Sean.

— Ninguém vai matar ninguém aqui! – Vincent tomou a frente, assoando o nariz ensanguentado – Deixe-os ir, mestre; assim, os vampiros terão mais com o que se distrair.

— Mas olha, que filho de uma… – Margarida ficou ofendidíssima com sua indiferença.

— Filhinha, não te importes com isto; partamos em busca de Helena, é o que tu querias – Sean tentou apaziguar a agitada companheira.

— Para o inferno, traidores! – Karl gritou, agitando o punho enquanto os dois se distanciavam.

— Que o senhor tropece e despedace a dentadura nas pedras! Demônio! – Margarida, arrastada pelo amigo, xingou de volta.

 

Os dois não tiveram oportunidade de regressar ao corredor do qual saíram. Reconheceram no fim daquele caminho dois vultos que caminhavam elegantemente em seus trajes antigos à moda francesa, ornamentados com arabescos e flores. Eram George e Alfred, os dois vampiros que discutiam sobre ir na contramão dos planos do irmão mais velho. Margarida, que ia avançar naquela direção, teve o braço violentamente puxado pelo amigo, que cobriu sua boca com rudeza antes que ela pudesse exclamar a mais módica sílaba. Para não anunciar em palavras ruidosas a ameaça iminente, Sean tentou se comunicar através de mímica, ao que a moça não entendeu nada. Arreganhou os dentes fazendo questão de expor as presas imitando um vampiro. Margarida franziu o cenho e semicerrou os olhos, por fim balançando a cabeça e dando de ombros como se quisesse dizer que, mais uma vez, nada compreendeu. Quando ele imitou uma boca mordendo o pescoço com o uso dos dedos foi que a garota arregalou os olhos, inspirou fundo e ficou quietinha.

 

Os dois voltaram para a sacada principal e tentaram avisar, com gestos exagerados, que os vampiros estavam nas proximidades. Os Lee Rushs seguiam batendo boca por motivos sem importância, como discutir por que caminho iriam e quem mandava mais do que quem, o blá-blá-blá passeava por esses dois pontos. Sean, sempre prático, ao ver que não iam mais poder fazer nada a não ser se esconder, puxou Margarida para vir com ele até o corredor seguinte àquele, buscando asilo no vão vizinho da galeria onde os vampiros se encontravam. A garota estava tão apavorada com a possibilidade de ser pega que não ousou esboçar qualquer ato de rebeldia àquela proteção.

 

— Eu bem que te avisei que estaria na câmara secreta de Vince, a maldita lâmina! Ele achou mesmo que não fôssemos dar conta de encontrá-la! – Alfred vangloriou-se ao irmão aliado, que vinha com uma garrafa bojuda de bebida na mão direita.

— Olhe, meu caro Alfred, eu só estou aqui pela aventura! As suas intrigas com Vince pouco me importam, venho repetindo isso à larga desde que eu soube de seus planos duvidosos. Quero apenas saber que desfecho aquele morcego inventou para os nossos pares; eu não o perdoaria se ele fizesse qualquer coisa que colocasse nosso já ameaçado clã em risco!

— Quanto a mim, não aceito que Vince nos subestime a ponto de achar que só ele tem nível para lidar com os caçadores!

— Bravo! Bem se vê que tu sim, tinhas brio para conduzir o clã!

— Quero testar na carne macilenta daquele traidor os poderes desta lâmina! E quero ver também se ele tem coragem de dizer frente a frente comigo que eu não tenho condições de lutar em nome da família!

— Tu te irritaste mesmo com isto! – riu-se George, bebericando do conteúdo que trouxe consigo – Pois veja, ali temos alvos demasiados para experimentares teu novo brinquedo!

— É vergonhoso! Parece que estão em uma excursão! Veja como discutem em voz alta! Caminham com passos indiscretos! Não têm a menor cautela ao transitar por nosso espaço! É este o respeito que Vince impõe? Eu me recuso a ficar aqui de braços cruzados apreciando tamanho disparate!

— Pois imponha-se, irmão! Mostre a Vince como um verdadeiro Seingalt não se deixa apezinhar!

 

Alfred ia puxando o fôlego para dizer alguma coisa quando o outro, puxando-o pelo braço, sugeriu:

 

— Não te anuncies; assim fizeram os outros que morreram. Apenas ataque!

— Por certo que sim. Dê-me isto – falou Alfred, tomando da mão de George sua garrafa.

— Ei! Espere!

 

Antes que ele sonhasse em protestar, a garrafa já tinha ido parar na cabeça de Vincent, que tombou imediatamente ao chão sem ter a oportunidade de expressar qualquer surpresa ou reação ao ataque inesperado.

 

Os Lee Rushs, aparvalhados, olharam para todos os lugares para saber de onde o ataque veio, menos o lado certo. Angela não se importou com o perigo que havia em volta: ajoelhou-se em torno do noivo e tateou seu corpo todo com o desespero de quem já sabia que o diagnóstico seria fatal. O objeto em si, uma garrafa de vidro cheia, já seria um desastre na cabeça de um ser humano se lançada com êxito daquela distância por uma pessoa normal, é de se imaginar o estrago que ela provocaria ao ser impulsionada por um indivíduo com uma força sobrecomum. Vincent havia caído de bruços; quando Angela o desemborcou de lá, deparou-se com uma imagem aterradora: a parte lateral direita de seu crânio havia sido esmagada pela garrafa, enquanto o resto se esfacelara nas pedras. Foi tirá-lo do chão para que sangue, ossos e tecido cerebral se misturassem num composto confuso e macabro, desperdiçado através de uma enseada que tomava toda a parte superior de sua cabeça.

 

A noiva de Vincent soltou um grito do fundo da alma enquanto o soltava de volta onde o encontrou. Em uma situação normal, quando ela via um de seus companheiros mortos, era automática sua reação: apanhar à cintura o que houvesse para atacar o inimigo, mas, desta vez, o sofrimento foi maior do que quando perdeu seus irmãos mais velhos, maior do que quando viu seus tios perecerem, maior do que a possibilidade de perder seu pai no quarto de Bertrand mais cedo. Era a dor incalculável de quem sabia que estava perdendo o companheiro de uma vida, aquele com quem sonhava dividir para o resto de seus prováveis poucos dias o fardo, o legado e o ofício do nome que carregava. Vincent, o único homem que teve coragem de se dirigir ao velho e temido Karl para pedir a mão de sua filha em casamento, acabava de morrer, e com ele morriam também as esperanças de que outro rapaz viesse a repetir o mesmo feito, agora que a idade avançada da donzela sequestrava a antiga candura de seus traços; ela, que via em Helena a frescura dos anos que para ela já haviam passado, poderia ter perdido essa concorrente, mas não outras da mesma idade e valor estético. E era isso o que lamentava: saber que não existiria outro Vincent, aquele homem justo que poderia sim sair em defesa de Helena às vezes, mas por afrontar a injustiça, e não por lhe ser cobiçoso como todos os outros. Por mais que o acusasse do contrário, sabia que o noivo devotava a ela uma fidelidade que ela mesma não fora capaz de lhe dar – e isto seria uma pedra a mais no muro de suas lamentações.

 

Mas havia um tempero a mais em seu pranto, algo que ela nunca teve a coragem de confessar. Para que o leitor tome consciência do fato a que este narrador se refere, retornemos à cena em que Richard van Gloire, o caçador ora prometido a Helena Lee Rush, anunciava aos aliados a chaga que trazia em seu pescoço. Helena, então confiante de que o noivo havia executado o líder dos Seingalt com 100% de sucesso, o puxava pela mão no intuito de que abandonassem o cenário do combate, até que o rapaz profere as trágicas palavras:

 

— Meu pescoço! Aquele desgraçado me mordeu!

 

Helena, voltando-se para a prima sabendo que era responsabilidade dela armazenar os antídotos, águas bentas, bálsamos e emplastros, solicita o remédio que reverteria a condição do jovem. Mas Angela, que havia pessoalmente tirado da bolsa de Vincent o único antídoto que ele levava em meio aos outros remédios que tinha, o apontou assim mesmo como seu portador.

 

De início, seu propósito com isso era guardar o vidrinho para a própria proteção, num ato egoísta. Porém, quando soube dos detalhes da captura da prima pelo líder Seingalt em pessoa, sua ideia deu um passo a mais: ela queria esconder o veneno já pensando na hipótese de a prima ter sido mordida. Para que o noivo não suspeitasse de que ela tinha removido o item de lá, sua desculpa era que ali estava um prendedor de cabelo dela e, inocente de sua pretensão, Vincent obviamente permitiu que a noiva vasculhasse sua bolsa. Foi um instante apenas, no qual ele jamais suspeitaria que algo tão importante havia sido retirado. Mas depois que Angela viu quem havia de fato se ferido, ela rememorou todo o flerte irritante entre Helena e o cobiçado caçador e teve aquele pensamento funesto do qual se arrependeria para sempre: com ela, ele não fica.

 

Vincent, este pobre inocente que envelhecia a olhos vistos culpando-se sempre pela morte do estimado amigo, mal poderia imaginar que a responsável pela sua desdita estava ali, fazendo algazarra junto com todos os desesperados que lamentavam a perda do aliado como se não tivessem opção. Essa Angela, que friamente escondeu o veneno que salvaria a vida do noivo da prima, usou da mesma frieza para ocultar do futuro companheiro seu ato cruel. Enquanto Helena, histérica, falava em mil formas de voltar para casa rápido, ela também pensava em voltar para casa, mas para devolver com urgência o composto ao armarinho onde os Lee Rushs colocavam seu estoque de medicinas. Desta forma, ela conseguiria conservar em segredo o saldo tenebroso de sua inveja. Que gosto macabro teve quando o rapaz, num ato desesperado, disparou contra o próprio peito para conservar a integridade dos outros membros do clã! Ali viu que Helena nunca mais seria feliz! E era isto: mesmo que Richard tivesse que partir para sempre, era isso que importava! Eram aqueles olhos aquosos, aquela postura prostrada, aquele semblante desesperado, era isso que combinava com aquela leviana que havia cometido o disparate de se colocar entre ela e o belo caçador que cobiçava silenciosamente! Ainda que escutasse Vincent chorar todas as noites no quarto ao lado, havia alcançado a paz e logrado o êxito de sua vida – aquela depravada da Helena nunca mais conheceria a felicidade das bodas!

 

Mas, ah! Ela subestimou a volubilidade e liquidez dos interesses adolescentes! Ignorou o quão efêmero poderia ser o “para sempre” de uma jovem de quinze, dezesseis anos! Nem um ano se passara desde este evento e lá estava ela, a voluptuosa, a lúbrica, a deleitosa de sua prima, interessada em outro homem! E este era um demônio anormal ainda mais belo que o outro! Mas pior do que tudo: um inimigo de sua família! Ah, nesse caso ela não precisaria mover um dedo! O próprio velho Karl se lançaria em cima da pequena em busca de satisfações! Arrancaria o couro de suas costas na lapada, e a ela bastaria se lançar na sua rica cadeira de espaldar, escutando a sinfonia do chicote ao vento, o estribilho do choro incessante, as histéricas e inúteis palavras de Helena clamando piedade! Ela jamais o teria, mais uma vez suas intenções depravadas seriam despedaçadas!

 

E, frente à coletânea mais sombria de pensamentos, Angela foi finalmente fustigada pela constatação de que estava ali, sob seus joelhos dobrados em desespero, o castigo por seu maior pecado: Vincent, que nunca soube da verdade, jazia morto, ali, diante dela, equiparando-a àquela infeliz de sua prima! Condenada! Viúva! Desesperada! E foi só naquele momento, depois de toda a odisseia de maldades que fez contra o noivado da prima acreditando-se apaixonada por Richard van Gloire, que se apercebeu de algo que nunca havia lhe ocorrido: ela o queria muito…! Como ela queria esse Vincent, que na sua calmaria, na sua complacência, a acalmava de seus descontroles, gritarias e intrigas… Este, que morreu sem ter conhecimento de sua mentira e que fora tão vilmente por ela traído e diminuído, tinha um valor que ela descobriu tarde demais. Agora, não havia mais volta, e a verdade jamais, jamais, o tranquilizaria. O remorso por algo que nunca foi sua culpa, aquele mesmo que consumiu e envelheceu seu corpo e espírito em uns vinte anos, seria enterrado junto com ele!

 

 

— Mas quem foi o maldito que fez isso? – bradou Bernard, o primeiro a quebrar o silêncio, tocando na sua sacola de setas banhadas em água benta e sacando um arco providencialmente atado ao seu braço esquerdo.

— É pena eu não ter outra dessas – disse Alfred, o vampiro, referindo-se à garrafa.

— Não seja por isso – George agarrou uma estátua de mármore como se ela fosse feita de isopor e a lançou na direção dos guerreiros, quebrando um bom pedaço dos degraus da escadaria, mas não acertando ninguém por pouco (um aliado dos Lee Rush que quase foi pego por uma lasca de pedra saltou de banda a tempo).

— É ali que eles estão! – apontou um dos caçadores, trêmulo com a demonstração de força e crueldade daquelas criaturas sombrias.

— Vocês… vão pagar muito caro por isso!! – Angela se levantou e retirou de uma corda atada à cintura algumas facas de arremesso. Tentou atirá-las a esmo, não acertando mais do que colunas, degraus de mármore e grades de escadaria – Malditos! Malditos!! Eu nunca irei perdoá-los! Vocês todos irão morrer! Suas pragas!! Desgraçados, eu irei acabar com todos vocês!

 

Bernard, ciente de que ela não estava em condições de cumprir um terço de suas ameaças, tentou arrancar dela as facas, para que elas não fossem desperdiçadas. Angela lhe deu uma cotovelada nas costelas e reiniciou suas tentativas infrutíferas de acertar o inimigo.

 

— Façam alguma coisa! – ela exigiu, esbaforida, ao ver que sua munição estava acabando.

 

Karl mirou em George sua arma sem ter certeza se ela ainda tinha ou não balas, mas o vampiro não esperou ele fazer o teste: pulou de onde estava e o acertou com os dois pés no peito. O líder da família voou uns quatro metros adiante, só encerrando sua desconfortável viagem ao colidir com uma coluna de pedra que servia de suporte a uma escultura de cobre em formato de leão, que, por sinal, caiu dolorosamente por cima de seu braço, prendendo-o ao chão.

 

— Papai! – Angela, preocupada, tentou correr na direção de Karl, mas o nervosismo e a névoa de lágrimas que ela tinha nos olhos a fez tropeçar nas próprias saias.

— Tu és outra, não é? Outra que tem parte com eles! – o velho continuava com suas acusações sem credibilidade junto aos companheiros – Atraíste-me para esta armadilha! – disse ele, como se Angela pudesse prever que aquilo aconteceria.

— Pare de dizer sandices, velho louco! – Bernard já tinha perdido todas as estribeiras com o pai – É Angela, a tua filha!

— Estás fora de si, meu pai! – Angela, suplicante, engatinhava na direção de Karl, pois tinha ânsia de ajudá-lo, apesar de tudo – Eles mataram Vincent! Eles mataram Vincent, como posso estar ao lado deles?

 

Porém, antes que sua mão esticada pudesse alcançar qualquer parte do corpo de Karl Lee Rush, o segundo sanguessuga desceu do alto, trançando as pernas ao redor do pescoço de um dos guerreiros e provocando a imediata quebra do seu pescoço. O vampiro aterrissou de forma certeira após esse ataque, causando um efeito medonho. Uma gritaria se fez em torno desse acontecimento, e aqueles que estavam reunidos em um único lugar atiraram-se para todas as direções sem pensar em quem havia ficado para trás. Angela quase foi pisoteada nesse processo. Uma pessoa jovem de cabelo curto que ninguém sabia dizer se era um jovem andrógino ou uma menina com roupas masculinas foi tomada pelo braço por George que, impiedoso à sua delicada aparência, rodopiou-a no ar e a lançou para longe. A pobre criatura tingiu uma parede com seu sangue e ossos, e o próprio braço por que foi agarrada partiu-se ao meio, deixando nas mãos do monstro o seu tenro antebraço. Indiferente à dor que havia acabado de causar em sua jovem vítima, o autor do assassinato brutal disse, na maior simplicidade:

 

— O álcool me empolga de uma forma que não consigo explicar! Às vezes, me ocorrem coisas como esta.

 

Alfred, o outro vampiro, para desespero de todos, não queria maltratar vítimas aleatórias. Seu objetivo, pelos seus bem traçados passos, era lidar com o chefe da família. Maior ainda foi seu interesse ao perceber que, pressionada por entre os dedos inúteis de seu inimigo, havia uma arma de balas de prata.

 

— Ajudem-me! Ajudem-me! – implorou o líder dos Lee Rushs, ao perceber que ele nada poderia fazer, visto seu braço estava preso entre uma coluna maciça de mármore e um leão de cobre.

— Que coisa interessante temos aqui – disse o belo rapaz, com sua voz mansa e seu sorriso adorável – Seria isto o que eu estou pensando que é?

 

 

 

Karl não teve forças para descarregar as balas, pois seu braço estava muito comprometido. Para piorar, Alfred pisou em sua mão, provocando uma dor terrível.

 

— Ajudem-me! Venham aqui, seus inúteis! Vão ficar aí parados à espera de que a besta fera me mate?

 

Um dos guerreiros dos Lee Rushs mirava uma seta nas costas do vampiro, quando George, que se fazia distraído mas na realidade não estava, fez vir do teto um lustre em cima dele. Alfred, espantado, ainda teve que escutar as reprimendas dele:

 

— Não te distraias, meu irmão. Eu bebo e tu que ficas ébrio?

— Parvo como és, terei enormes chances de retribuir o favor – disse o outro, agarrando a arma do caçador.

 

Alfred conferiu se o revólver tinha balas; detectou que duas, ainda. Girou o tambor e, aparentemente, resolveu brincar de roleta-russa com o líder da família.

 

— Vamos ver se o cidadão tem sorte – combinou com George, seu irmão, enquanto gesticulava com o revólver como se dissesse para ele prestar atenção aos caçadores.

— Não permitiremos que este tipo de vilania aconteça diante de nossos olhos! – Bernard avançou.

 

Instintivamente, como se temesse perdê-lo, Angela, muito chorosa, o puxou pela manga do casaco.

 

— Não vá – implorou.

 

Os demais caçadores empunharam suas armas – uns, armas de disparo caseiras, outros lanças, arcos com flechas e, por fim, os últimos, como Angela, apontavam suas facas, que àquela distância eram inúteis.

 

— Acalmem-se – pediu o vampiro, apontando a arma na direção do rosto de Karl. – Eu só quero colocar as coisas em pé de igualdade, agir como um mortal. Desta forma, este velho caçador que já está excedendo seu prazo neste mundo não poderá reclamar de que utilizamos contra ele nossa força descomunal; nem nós poderemos dizer que compartilhamos por tempo além do necessário de sua irritante companhia! Hoje, sou isto: um caçador com uma arma. Que vos parece?

 

George, chutando o corpo morto do homem vitimado pelo lustre, averiguava se ele tinha mesmo morrido só com aquilo – para um vampiro, um objeto de vinte e cinco quilos cair por cima do corpo de um homem era pouca coisa – e ao mesmo tempo atentava para o ataque de qualquer um que ousasse se opor ao ato de seu irmão.

 

— Vejais, caçadores! Observeis vosso líder! – ele convocava, hilariado com a visão de Karl Lee Rush submetido e desesperado.

— Façam alguma coisa! Vocês têm setas, balas, bestas, vidros com água benta! – o líder dos caçadores implorava e se debatia em busca de socorro.

— O idiota explica o arsenal dele para todos nós ouvirmos – riu-se Alfred.

 

Seu irmão logo o acompanhou.

 

— Eis uma coisa que eu odeio nos mortais: este desespero fastidioso, essa ânsia disparatada pela vida! Que tens tu a gozar ainda, abutre velho? Tua aparência se assemelha à de uma fruta podre; é difícil acreditar que, em algum momento de sua vida, a beleza lhe tenha visitado!

 

Dito isto, efetuou o que seria um disparo, mas a sorte foi grata com o velho mestre dos Lee Rushs. Ele não escondeu seu alívio.

 

— Vivo! – o vampiro comemorou, com falso júbilo – Viram só? Nada fiz de mal ao assassino de nosso pai.

— O assassino de teu pai foi Richard van Gloire – Karl sussurrou – A noiva dele se juntou ao meio-vampiro de vocês, vinguem-se dela!

— Não autorizei que abrísseis a boca! – o vampiro respondeu nervosamente, dando uma coronhada na parte inferior do rosto de Karl.

 

Nesse momento, os caçadores se revoltaram ao ver grande porção de sangue dominar o rosto de seu líder e atacaram com tudo. George foi atingido por uma flecha de água benta no braço e começou a agitá-lo, reclamando da avaria. Alfred, correndo para trás de uma coluna, escondia-se das flechas e facas de arremesso que vinham de todos os lados. Ainda empunhava a arma, mas optou por não fazer uso dela.

 

Bernard roubou a lança da mão de um companheiro e avançou na direção de Alfred. Outro caçador seguiu atrás dele, para lhe dar suporte. George, sem interferir nesse combate, sofria com o seu braço, cuja queimadura não cessava. Alguém tentou atacá-lo à traição aproveitando-se disso, mas essa pessoa tomou uma espezinhada na lateral do pescoço e desfaleceu metros adiante. George, abobado, olhou para aquele que o socorreu, e surpreendeu-se ao ver que era o líder dos Seingalts, Vince.

 

— Quando ordenei que partísseis com os outros, era deste tipo de coisa que eu falava! – queixou-se.

— E perder o duelo final contra os maiores inimigos de nosso pai? Lamento pelos outros que não tiveram a hombridade de estar aqui! – Alfred retrucou.

— Alfred! – Vince convocou, à distância – Toma teu irmão e leve-o daqui! Este combate terá novos protagonistas!

— Eu me recuso a partir! – George queixou-se.

— Esta [batalha] eu também não irei perder! – determinou Alfred – Se sobreviverdes a isto, consigo estaremos; se sacrificado fordes, idem! Não admito menos do que lutar aqui, testemunhar nosso triunfo ou nosso encerramento!

— Que teimosia! – Vince, irritado, golpeou Bernard, que caiu antes de chegar perto de Alfred.

 

Quando este tentou se arrastar até a lança que trazia, Vince a tomou por entre as mãos e a cravou no intuito de acertá-lo no meio das costas, mas Bernard rolou para o lado, e a arma mortal provocou nada mais do que um ferimento superficial em seu ombro direito. Vince tentou atacá-lo com aquela lança outras duas vezes e causou fendas poderosas no chão, mas a agilidade do caçador o impediu de obter êxito nesses ataques.

 

— Aos humanos, não tortura-se – ele disse didaticamente a Alfred – mata-se! Verás tu o que faço com este líder do clã inimigo!

— Só tocarás no meu pai por cima de meu cadáver! – anunciou Bernard, tomando do chão uma estaca burramente desperdiçada por Angela.

— Isto não será um grande desafio. Encerrarei esta comédia antes de partir para o ato principal!

 

 

Karl, debaixo da estátua, passava por apuros. Sentia que o braço estava quebrado, mas não apenas isso. A coronhada de Alfred havia quebrado seu nariz e alguns de seus dentes, e agora ele tinha dificuldades também para falar e respirar. Cada tentativa sua de alertar o filho dos golpes do inimigo, era uma babujada de sangue que ele jorrava pelo pescoço e peito abaixo. Seguindo seus sinais, um aliado tentou remover a estátua de cima dele, mas após exclamação de dor do líder do clã, não teve mais ânimo para fazer isso sozinho. Quis sinalizar para um companheiro de luta vir até ele ajudá-lo na missão, mas este, temeroso de ser envolvido no combate entre Vince e Bernard, queria ficar o mais invisível possível. Angela, ainda revoltada da morte do noivo, muniu-se de coragem e saiu de seu esconderijo para ir em direção dele, mas por um acaso sua presença chamou a atenção do líder do clã inimigo:

 

— É ela…! A filha do caçador, eu me lembro bem!

 

Apesar de todo o estremecimento que essa observação lhe provocou, ela continuou caminhando na direção do pai. E Bernard, que pareceu entender a intenção do vampiro, tomou seu partido:

 

— Preste atenção em mim, bastardo filho do demônio! – bradou o rapaz, atirando um pedaço quebrado do degrau da escada na testa do inimigo.

— Já estou indo, papai! – Angela desviou-se do combate e correu em socorro do velho.

— Não você! – protestou o rapaz que, embalde, tentava remover aquele maciço de cobre de cima do braço de Karl – Há tantos homens aqui! Venham! Ajudem nosso mestre!

 

Ninguém se atreveu a obedecê-lo, e a situação de Karl ficou ainda pior quando Alfred chutou a cabeça do jovem que tentava ajudá-lo, matando-o na hora.

 

— Ninguém irá socorrê-lo, Karl Lee Rush! Não admitirei!

 

A Karl, só restou se urinar diante do sorriso sinistro e sádico daquela criatura das trevas.

 

— Eu, serei eu, aquele que segurará a cabeça do líder caçador nas mãos! – vangloriou-se, caminhando alguns passos e tomando um grande pedaço de pedra para arrebentar com o crânio do inimigo deitado.

— Pois não te atrevas – Vince determinou, enquanto atacava Bernard – Ele é meu. Eu, o líder do clã, assim ordeno.

— Inferno! – rosnou o outro, atirando a pedra para longe. Ela acertou a canela de um guerreiro Lee Rush, que tombou lamentando o ferimento.

 

Margarida, que estava junto com Sean escondida na galeria vizinha à de onde os vampiros George e Alfred surgiram, reapareceu com toda sua graça e imprudência para ajudar uma criança caçadora que quase foi mordida por George. Consciente de seu grave ferimento, o vampiro ébrio tentou atacar o ente mais vulnerável daquele conflito com a ambição de criar um ghoul, mas foi golpeado com um vaso na cabeça e, quando deu por si, o moleque e sua salvadora desapareceram de sua visão como se tivessem agarrado o rabo de um cometa.

 

— Mulher, pelo amor de Deus! – Sean exclamou, desesperado, ao ver que a ex-circense corria toda torta com o moleque debaixo do braço – Que fazes tu saindo de nosso esconderijo? Acaso esqueceste de que não pode causar agitações ao teu próprio organismo?

— Ele iria ser mordido, pobrezinho! – explicou a garota, cobrindo a criança com seu corpo.

 

O moleque, que esfocinhou certinho entre seus melões, fingia chorar a cada vez que ela se movia para afastá-lo dela.

 

— Veja como ele está assustado!

— O que eu te disse? Que esperássemos o momento mais oportuno para nos distanciarmos da cena do combate! Que ficássemos invisíveis!

— Eu sei!

— E isto é ficar invisível?

— Não, não é, mas o importante é que eu o salvei!

— Poderias estar morta agora!

— De que adiantaria viver sabendo que permiti ao mal se desenrolar diante de mim e nada fazer?

— Ele vai vir! Ele vai vir até nós e vai querer se vingar!

— Ele parece estar bem ocupado agora.

 

Margarida apontou para George, que agora lutava contra o grandalhão que estapeou Karl. O homem, que segurava uma grande marreta, mantinha o vampiro afastado ameaçando-o com seu instrumento de batalha.

 

— Gosta de atacar mulheres e crianças? Eu vou te mostrar o que acontece quando você encontra um homem de verdade!

— Estou com medo! Estou com medo! – insistia o mais novo protegido de Margarida, não querendo nem com o diabo largar suas tetas.

 

Sean, percebendo a ausência de lágrimas do malandrinho, tratou de arrancá-lo dali.

 

— E, se chorar, vou chutá-lo daqui e você vai parar ali, no meio deles! – ele indicava o combate entre George e o homem forte da marreta.

— Você é mau! – queixou-se o menino.

 

Em algum momento daquela luta, não se sabe precisar sob que movimento, o guerreiro forte marretou algo a dois metros de Karl tentando atingir o vampiro, que se desviou do golpe com sua velocidade sobrehumana. Uma lasca de pedra voou na testa do mestre dos Lee Rushs, aumentando seu suplício.

 

— Diaaaaaabos! – berrou o velho, com um sotaque estranho causado pela ausência dos dentes da frente – Alguém me tire daqui!

 

Angela, que havia se agachado diante dele tentando remover a estátua de cobre que o detinha parado no mesmo lugar, era o alvo maior do olhar obstinado de Vince, que repetia ao irmão dela seus planos enquanto o ameaçava com a lança:

 

— A preciosa filha de Karl Lee Rush…! O seu herdeiro maior… o sucessor de seu legado…! Eu os matarei ambos, antes de desligá-lo deste mundo!

— Para isso, vai ter que me pegar primeiro! – disse o rapaz, sorrindo com confiança.

 

 

 

Bernard lutou febrilmente contra o líder da família inimiga e a todo momento seu comando era para Angela sair de perto do pai e fugir para algum lugar seguro. Acontece que não havia lugar seguro ali, com três monstros a postos para acabar com qualquer um que tentasse se esconder.

 

— Ajudem com a estátua! – ordenava, esbaforido, aos guerreiros remanescentes – Tirem-no daí!

 

Porém, aqueles que não estavam envolvidos da batalha contra George e agora, mais recentemente, interpondo-se pelo custo das próprias vidas entre Alfred e Karl, apresentavam-se temerosos demais para arquitetar qualquer reação. Alfred, principalmente, estava empilhando cadáveres ao lado do líder da família de caçadores, tudo isto usando a adaga que, Vince percebeu, havia sido removida de seu sagrado esconderijo. Ele não deixou de manifestar seu aborrecimento:

 

— Discutiremos sobre isto quando deitarmos o último corpo nesta batalha.

— Termine logo com isso antes que eu perca a paciência e não espere mais teu aval para liquidar tanto o caçador quanto sua filha ruiva!

 

Diante desta ameaça, Angela quis obedecer o irmão e fugir, mas era tarde demais: enfiando o pé entre suas coxas, Alfred a prendeu pelas saias. Para piorar, Vince conseguiu finalmente conduzir a luta até os degraus quebrados da escada onde, como era de se esperar, Bernard tropeçou e tombou ao chão. Aproveitando-se disso, o vampiro planejava atacá-lo com a lança que portava na mão, mas Bernard mais uma vez conseguiu escapar com sucesso, e para aumentar a fúria do parasita, o artefato teve a ponta quebrada por entre as pedras. Não seja por isso: o cabo da lança foi repetidamente utilizado para golpear o jovem, que, desta vez, muito machucado, não conseguiu mais se levantar. Algo muito grave havia acontecido no alto de sua cabeça, pois seu rosto estava coberto de sangue. É fato que ele ainda vivia, mas por certo não conseguiria desfrutar da mesma velocidade de antes.

 

Julgando este inimigo contido, Vince foi correr em auxílio de George, que estava sendo encurralado pelo caçador da marreta em direção a uma coluna, numa estratégia de isolamento muito semelhante à que ele próprio usou quando deteve Bernard no canto estreito da escada. Acreditando que daria o golpe final no vampiro, o homem robusto girou sua marreta para trás, para dar impulso, e foi nesse momento que Vince agarrou seu pulso, contendo-o, fazendo o instrumento de batalha cair da mão dele devido ao peso provocado pelo movimento subitamente reprimido. O homem encarou o líder dos Seingalts com o espanto de quem sabia que aquela situação era a diferença entre a vida e a morte. Ele tentou puxar seu braço do controle do vampiro algumas vezes, mas não deu certo, ou melhor, até deu: quando o próprio Vince decidiu soltá-lo. O feito causou uma perda de equilíbrio no guerreiro, que caiu sentado no chão. Sondando a expressão assassina daquela besta do inferno, o homem percebeu que o seu olhar mirava na arma que originalmente era dele. Desesperado, tentou alcançar o item, mas não teve tempo; o vampiro foi mais rápido. Ele ainda agarrou na manga do casaco de Vince para detê-lo, e, nesse momento, viu o maciço de ferro se aproximar dele numa velocidade vertiginosa e golpear sua clavícula. A posição flácida de seu braço e o seu grito desesperado que se assemelhava ao rugido de um animal ferido eram indicadores de que ele estava irremediavelmente derrotado. Vince Seingalt, o monstro que teve a coragem de matar o próprio irmão caçula, jamais o pouparia, lógico. Porém, sua forma de eliminar o caçador de cena revelou ainda mais da sua crueldade: usando a marreta do próprio guerreiro em questão, ele golpeou repetidamente suas pernas até fazê-las perder o formato original. Nesse momento, a criança com Margarida e Sean quis descer para impedir a ação, mas foi contida pelos dois, que cobrindo seus olhos, compreenderam o que estavam privando o menino de ver: a morte do próprio pai.

 

George desviou-se do homem caído com as pernas dilaceradas. Ele fez uma expressão que ostentava espanto e ao mesmo tempo nojo, vontade de que suas roupas não esbarrassem naquela vítima. Escaneou o ambiente em volta, aprumando-se. Constatou, satisfeito, que nenhum dos guerreiros Lee Rush se prontificou a mexer um dedo.

 

Angela, desesperada e presa pelas saias, tentou esticar o braço para empurrar, nem que fosse um pouco, a estátua de cima do braço de seu pai. Acreditava que todos estivessem distraídos com os gritos do guerreiro robusto, mas não. Alfred, que viu seu esforço, riu-se de sua fraqueza e, chutando a peça com facilidade, perguntou:

 

— Era isto que intentavas fazer?

 

Karl deu um grito berrante, pois a estátua saiu esmagando e ralando todo pedaço de corpo por onde passou, mas ele ficou, afinal, livre. Angela, que se viu solta por um instante (afinal, o vampiro precisou usar o pé que a prendia para chutar a estátua de cima do líder dos Lee Rush) tentou engatinhar para a frente, mas Alfred a agarrou pelo cabelo e a jogou de encontro ao chão. Não foi com muita força, talvez com a intensidade com que um homem normal repetiria o mesmo ato. Com a agitação, as saias da moça levantaram-se até o alto das coxas, expondo toda a extensão branca de suas pernas tentadoras. Seu rosto estava escondido sob uma exuberante cascata de cabelos ruivos; ela em si caiu de bruços. Consciente de que sua visão causou algum efeito no inimigo, a jovem, numa insinuação muitíssimo sutil, levantou-se lentamente até ficar sentada de frente para o vampiro Alfred, agarrou as saias e tentou recuar para o lado oposto ao do pai (Karl não deixou de atentar para isso, e a troca de olhares entre eles revelou que isso seria um problema para a viúva de Vincent depois). Fingindo desengatar o cabelo de uma parte qualquer da roupa, desceu a manga do vestido, quase expondo seu seio inteiramente nu. Tudo isso em um milésimo de segundo, de forma que esses movimentos parecessem obras do acaso. Por fim, foi recuando, cotovelo ante cotovelo, num esboço do que seria a reação tímida de uma recém casada diante de sua primeira noite de bodas, deitando-se pela primeira vez no leito conjugal, os joelhos um tanto abertos e dobrados.

 

Vince, percebendo a distração do irmão, aproximou-se da cena ainda com a marreta na mão, e nesse exato momento Bernard ressurgiu das cinzas para salvar a irmã. Agarrando o vampiro por trás, o rapaz foi lançado para longe outra vez num simples movimento de braço do inimigo. Mas como um cachorro afugentado a pauladas, o ato só fez redobrar sua ira já inflamada: ele derrapou no chão por alguns metros, mas, mal as plantas de seus pés tocaram no chão outra vez, Bernard voltou com tudo. Vince desceu a marreta para assim esmagar a “preciosa filha de Karl Lee Rush”, em suas próprias palavras, mas o plano não funcionou porque Angela, apavorada, abandonou o seu espetáculo de sensualidade e desviou-se para o lado, onde caiu por cima do pai, rolando com ele por mais um meio metro e ficando abaixo dele.

 

Aquele contato com o pai, prolongado e constrangedor, consistiu no seguinte: ele agarrou o pescoço da filha e por incontáveis segundos que pareceram eternos à moça, resmungou acusações desconexas sobre sua dignidade enquanto a sufocava; acusou-a de atos obscenos e de aliança com os vampiros, as loucuras de sempre. Mas, desta vez, foi pior: o olhar dele tinha uma maldade e uma depravação que ela até então desconhecia. Cada centímetro nu de sua pele recebeu a observação daquele olhar que para ela era pior do que um toque, era quase um arrebatamento. Era algo que queimava na pele, quase palpável. Seu rosto ganhou um rubor indignado, os lábios crisparam-se numa linha severa de repreensão, de incredulidade, de ceticismo; ela não merecia aquilo. Por que algo assim estava acontecendo? Distraído que estava em tomar a marreta de Vince, e tendo de fato conseguido isso, Bernard estava ocupado demais com o combate para observar o que o pai fazia. Ele agora tentava deter os dois vampiros, que queriam tomar de suas mãos seu precioso objeto de defesa. Angela começou a chorar de pavor e impotência quando a mão de seu pai, a única útil que ele tinha, baixou do seu pescoço para o seio, agarrando-o por baixo, puxando-o para cima, livrando-o do obstáculo frouxo da roupa rasgada que isolava precariamente seu tórax. Era fisicamente doloroso e psicologicamente humilhante. Ele não queria acariciá-la, meramente, mas puni-la com a dor. O joelho, um dos quais ele se firmou para permanecer em quatro apoios – em três na verdade, pois não podia se sustentar no braço quebrado pela estátua – estava entre as coxas da jovem. Karl esfregou esse mesmo joelho na parte íntima de Angela, num contato brusco. Foi nisso que ela percebeu que aquela abordagem não era apenas uma reprimenda de pai para filha, longe disso. A fricção da roupa grossa com os delicados lábios de sua fina flor provocavam uma dor pungente que conciliava o sofrimento físico e uma sensação de irrevogável violação. O que havia acontecido ali era irreversível, ela sabia disso.

 

— Tu queres ser Helena? Queres mesmo te medir com ela? Estás sem a roupa de baixo…! Para quem? Para quem foi isto?

— Para, pai! – ela pediu, suplicando, tentando levantar a mão para empurrá-lo. Mas, tamanho foi seu choque que ela petrificou, ficou imprestável, pregada ao chão como um inseto com as asas molhadas.

— Desavergonhada! Promíscua!

 

Sua tortura só teve fim quando Bernard, golpeado por Alfred, caiu por cima dos dois (o pai e ela, no caso). Rapidamente ela se restabeleceu, fechou rapidamente a frente do vestido e encarou o pai com terrível ressentimento. Zonza após a inebriante e abjeta experiência, deu passos em zigue-zague, de costas, tentando-se fazer oculta, agora não mais dos vampiros, mas de Karl. Ignorando o irmão, seus companheiros e aliados, os inimigos, tudo aquilo que acontecia em volta, tropeçou numa pedra quebrada e caiu sentada em um canto arrebentado da escada. Sem ligar para nada e nem ninguém, acomodou-se e desatou a chorar. Por incrível que pareça, ninguém sabia explicar o porquê de seu pranto, visto que os que não estavam escondidos, tentavam colaborar com o combate ou assisti-lo. Sean, que por instrução de Margarida foi ver se ela tinha se machucado com a queda, foi empurrado para longe, mediante gritaria estridente. Angela, por sua vez, saiu correndo.

 

— Acho melhor irmos atrás dela – Margarida sugeriu – pode ter mais vampiros por aquela direção, e ela está sozinha!

— Esta não é aquela má prima de Helena que sempre promovia intrigas contra ela?

— Sean! Essas coisas não têm importância aqui!

— Ah, claro que não! Se numa situação normal, sem nenhuma ameaça, uma pessoa dessas torturava Helena, o que faria em uma situação extrema? Talvez sugerir que nos tranquem para fora para sermos devorados por carniçais!

 

A ex-circense cruzou os braços, inconformada.

 

— Você tem uma objetividade tão cruel, Sean.

— Agora, nossa prioridade é cuidar desse menino que você buscou; antes isso do que tentar prestar qualquer tipo de auxílio a uma mulher perigosa daquelas!

— Eu não me conformo com a ideia de deixar para trás qualquer pessoa que seja!

— Margarida – Sean a tomou pelos ombros, não com brutalidade, mas mesmo assim em um gesto impaciente – Se nosso desacordo de ideias e hesitação colocar em risco a minha vida, a tua ou a desta criança, de nada adiantará ter sentimentos nobres. Aprecio isso em ti, digo-o de coração! Contudo, não permitirei que te arrisques, não por ela; pense em tua amiga, e no que ela sofreu por causa dessa prima! Se agora estamos em uma situação onde sequer sabemos se Helena está viva ou morta, isso se deve a ela em boa parte!

— Ela é só uma garota…

— Uma “garota” que, para fugir, não hesitará em atirar qualquer um de nós três na direção das feras, se preciso for, para escapar com vida! Não te enganes com a aparente fragilidade desta criatura; conheço este tipo, tenho propriedade à larga para falar a este respeito.

— Do que estás falando?

— No circo – ele confessou, balançando os pés com impaciência ao revisitar essas lembranças incômodas – eu conheci muita gente que era capaz de tudo para ser promovida, ter seus números apresentados nas últimas cenas da noite; conheci pessoas capazes de roubar, até matar qualquer artista novato mais promissor! E conheci também essas pessoas esnobes, que se acham com um pé na aristocracia, gente que acha sua vida mais preciosa que a das outras pessoas! Esses caçadores, os Lee Rushs, lidam constantemente com a possibilidade de enfrentar e matar seres que se assemelham a seres humanos. Criaturas que falam como nós, que sentem fome, que constituem famílias, que montam sua própria comunidade… Eu acredito que a cada vez que eles levantam suas armas contra um ser desses, também perdem um pouco da própria humanidade. Basta ver o tratamento que ministraram à tua amiga; o pouco que tu soubeste dela, chocou até a ti, que tinhas uma rotina semelhante!

 

Golpeada pelas últimas palavras dele, Margarida se abraçou.

 

— Ela o matou…!

— E muito merecidamente! Helena sujou as mãos dela para que tu não precisasses sujar as tuas; ela te libertou.

 

Sem mais ter o que dizer, Margarida avançou sobre ele aos prantos, e agarrou para junto deles também a pequenina cabeça do menino que ia cessando aos poucos o choro para se entregar ao merecido descanso no colo de sua nova mãe.

 

— Eu só quero sair daqui – ela finalmente liberou essas palavras, que eram uma confissão de suas ilusões desfeitas acerca do estado de Helena – Onde quer que ela esteja, espero que tenha se encontrado com ele.

— Eles estão juntos, estou certo disso.

 

Num acordo silencioso feito de troca de olhares, Sean e Margarida decidiram que o melhor era sair dali discretamente.

 

— Acorde… acorde, pequeno – Margarida balançou cuidadosamente o menino que dormia em suas coxas.

— Aaahh! Papai! Cadê o papai?

— Shhh!! – Sean cobriu sua boca rapidamente – Sem fazer barulho, vamos embora – disse ele, numa voz sussurrada.

— Papai! Papai! – o menino se levantou do esconderijo, uma grade rendada de escada que estava servindo para eles de barricada, e apontou para o pai dele, inacreditavelmente ainda vivo, mas que provavelmente morreria dali a alguns instantes – Meu pai precisa de ajuda! Meu pai precisa de ajuda!

 

Margarida, enquanto tentava detê-lo, chorava. Provavelmente ela, se estivesse no lugar daquela criança, também tentaria com todas as forças salvar seu pai.

 

— Me solta! Eu quero ajudar o papai!

— Pare com isso, menino! Você vai morrer! Você não vai conseguir fazer nada contra eles, não está vendo? – Sean tentava convencê-lo a se manter escondido, mas de nada adiantava. O menino era tão valente quanto o pai.

— Bernard! Acabe com ele! – a criança torcia inutilmente, pois era óbvio que os três vampiros que lutavam contra o irmão de Angela brincavam com ele.

— Fique aqui! Eu vou ajudar o caçador, mas fique aqui!

 

Margarida tentou impedir Sean agarrando a manga de sua blusa, mas ele desviou de seu toque antes que a moça pudesse fechar os dedos. Ela levou essa mesma mão à boca e ao nariz, tentando captar qualquer coisa que fosse do perfume de seu irreverente companheiro. Sean desceu a escada que conduzia à galeria onde antes haviam se escondido, agora seu atual esconderijo, e o que viu não parecia nada promissor: Bernard tinha levado um golpe violento na lateral do corpo, e pela forma como tocava nas costelas, elas pareciam ter quebrado. Karl, covardemente escondido por trás da coluna que, junto com a estátua de leão, o prendera ao chão naquela hora, não interferia em nada. Tudo o que fazia era medir o próprio agravo. Talvez tivesse uma fratura de pequeno porte ou uma luxação – para o tamanho e peso do que havia caído por cima dele, o caçador esperava um desastre maior. O fato é que o velho acreditava o suficiente no talento de seu herdeiro a ponto de achar que seu suporte não faria falta. Quem sabe até não fosse isso! Karl Lee Rush percebera decerto que os seus reduziram drasticamente em número, que a poucos metros dele havia uma pilha de mortos assassinados por Alfred por tentar ajudá-lo, e, finalmente, que sua filha, a única que com suas coxas abertas e seu decote profundo distraiu o vampiro assassino nem que fosse por um segundo, não estava mais ali. Via-se irremediavelmente perdido, e fora de uma vez só acometido de uma covardia tão paralisante quanto definitiva.

 

Vince caminhou em passos elegantes até Bernard Lee Rush. A custo, o jovem tentava ficar de pé. Pressionando as costelas direitas com a mão esquerda e apoiando-se sofrivelmente no corrimão da mesma escada que Sean estava descendo na carreira, ele encarava a fera mortífera que vinha ao seu encontro.

 

— Pare! Pare! Pare! Pare! – Sean rugia, a cada novo passo do vampiro.

 

Ignorando seu comando, Vince chegou até Bernard e o agarrou pelos cabelos. Impotente e desarmado, Sean tentou achar em volta alguma lança, alguma faca de arremesso ou pedra com que pudesse ferir aquela criatura maldita.

 

— Solte-o! – gritava, com um medo mortal de fazer algo além.

 

Bernard, resignado, apenas caminhou tropeçando os passos dirigidos pelo líder da família inimiga. Ele estava em um ponto em que tudo o que poderia fazer era torcer por uma morte sem dor.

 

— Não, ele não vai morrer!

 

Sem que Margarida pudesse fazer nada, a criança se soltou dela e saiu correndo também para evitar aquilo. A artistazinha tentou agarrar o menino, mas suas saias a traíram e ela esfocinhou no chão sem direito a defesa. Se ela não conseguiu fazer nada, Sean conseguiu, mas em compensação, isso o impediu de ajudar o caçador.

 

— É este o teu filho, Karl Lee Rush? – Vince, com um sorriso sádico, erguia bem a cabeça do jovem entre suas unhas.

— Não! Meu filho não!

— É essa expressão que um caçador faz quando é capturado? – o líder dos Seingalts comentou, ao olhar para a cara toda ensanguentada de Bernard, que ainda conservava no corpo toda a avaria causada pelas pauladas dadas com o cabo da lança – Vejam só. Eu sinto o cheiro do sangue de um virgem.

 

Tomando o jovem pelo queixo enquanto agarrava seus cabelos com a outra mão, Vince o lambeu num trajeto que compreendia o pescoço, sua bochecha, até o alto das sobrancelhas, de onde, afinal o sangue descia. Bernard apertou os olhos, enojado daquele contato.

 

— Bernard, seu inútil! Faça alguma coisa! – Karl ergueu o punho insultando seu filho por não conseguir reagir.

— Não entendeste ainda? É o fim – George disse de longe, com os braços cruzados.

 

Vince e Alfred trocaram olhares como se estivessem se comunicando por telepatia. O mais velho fez questão de traduzir o significado daquela comunicação:

 

— Dê-me a adaga; já sei que ela está em tua posse.

— Não! Não ouse fazer mal a Bernard! Eu não o perdoarei! Bastardo! Maldito dos infernos! Deixe meu filho em paz! – Karl gritava, enquanto o sangue que tomava toda sua boca desdentada chovia pelas quinze bandas.

— Com todo o prazer – Alfred, obedecendo a determinação do mestre de seu clã, desviou-se de Karl enquanto ele tentava agarrar suas pernas para impedi-lo. Impaciente como sempre, resolveu o inconveniente desferindo mais um chute em sua cara, para agregar mais um item à sua vasta coleção de ferimentos: – Ora, solte-me, vira-lata horroroso!

 

Ironicamente, uma vez que segurou a adaga na mão, o ponto atacado por Vince em Bernard foi justamente aquele que Helena quase acertou. Enquanto o vampiro-chefe rasgava uma linha horizontal em seu ventre, Bernard tinha toda sua mão cortada na lâmina da adaga por tentar impedi-lo. Por fim, cedeu à derrota, quando viu descer por suas pernas toda aquela corrente volumosa de intestinos. Suas vísceras espalharam-se pelo chão em uma densa e redonda massa sanguínea semelhante a uma macarronada macabra. Karl, que demorou a se restabelecer do chute, ao se apoiar no chão para levantar de novo, escorregou no sangue do próprio filho, tingindo toda a lateral do rosto de vermelho ao cair de banda. Ao olhar para cima e ver Bernard naquelas condições, gritou, mas gritou com vontade, o tom mais agudo que tinha na garganta.

 

Sean teve a mão mordida pelo menino que segurava e, com isso, se viu obrigado a soltá-lo. O pequeno desobediente correu na direção do pai e ajoelhou-se diante dele, apenas para perceber que ele havia acabado de morrer naquele momento, provavelmente devido ao choque causado pela perda de sangue. Ao perceber isso, o artista tentou abraçar a criança, que o empurrou e disparou à toda na direção dos vampiros, gritando:

 

— EU VOU TE MATAR! EU VOU TE MATAR!!

 

O alvo de suas ameaças, óbvio, era Vince. O garoto correu na direção dele e foi tão rápido que Sean nada pôde fazer para impedir. Sua intuição naquele momento foi apenas a de agarrar um pedaço retorcido de uma flecha inutilmente disparada para defender o garoto de qualquer um dos monstros que tentasse machucá-lo. Desprezando a própria vida, ele correu na mesma direção que o moleque. O que veio a seguir foi uma confusão de estalos, xingamentos, gemidos de dor e queixas diversas. A primeira pessoa a se desfazer daquela confusão foi o próprio menino, que caiu no chão com a adaga verde na mão. Vince, que levou a mão ao ombro, voltou com ela ensanguentada. Alfred, que tentou avançar no menino para evitar seu ataque mas não teve tempo, foi combatido por Sean e os dois rolaram pelo chão até perto da escada onde Margarida estava escondida. Quando ela viu que Alfred estava por cima de seu estimado companheiro se desesperou a ponto de dar um grito, mas seu medo se converteu em júbilo assim que ela viu a seta atravessar as costas do vampiro. Sean nada mais fez além de apontar a seta para o alto, do resto a própria gravidade e a sanha do vampiro por matá-lo cuidaram.

 

— Eu matei…! Eu matei um deles…! – repetia, chocado.

 

Sem tocar conversa, o menino filho do grandalhão da marreta subiu em cima do vampiro semimorto e terminou de matá-lo cortando sua garganta e aplicando repetidos golpes com a adaga em seu coração. Alfred logo se transformou naquela poeira arenosa que os caçadores conheciam muito bem.

 

— Você matou não – disse o garoto – Eu matei!

 

Karl, enlouquecido, apenas ria de tudo. Ajoelhado, ele veio andando dessa forma ao encontro do menino. Queria abraçá-lo; chamava-o de Bernard e cumprimentava o êxito daquele que ele acreditava ser seu filho.

 

— O velho está caducando – o garoto observou, enojado com a aparência de Karl, que estava se lambuzando todo do sangue do filho.

 

O protegido de Sean e Margarida, desviando-se dele, agarrou ao braço de seu mais novo pai para se esconder, e o ex-circense aproveitou para tirá-lo dali antes que ele cismasse de correr atrás de Vince de novo.

 

O líder dos vampiros, ferido, trocou um olhar à distância com seu outro irmão, George. Aquele o encarava aterrado, esperando que o líder falecesse ante o poder desconhecido da lâmina misteriosa. Vince, também apavorado, arfava ao ponto de parecer que iria chorar.

 

— Um garoto – repetia, incrédulo – Ah, maldição!… Alfred, o que eu tinha dito a ele sobre trazer armas de família para uma batalha ridícula como esta?

— Mas você não morreu – observou George – Você continua aqui!

— Sim, mas…!

— … mas?

— George, escute bem o que irei dizer. Os outros estão… naquele lugar que combinamos. Eu procedi desta forma, pois é o único esconderijo do castelo que fica longe de olhos humanos, tu o sabes. Eles jamais seriam encontrados ali, ainda que os caçadores vasculhassem cada canto do castelo, pois aquele lugar é um segredo nosso. Porém, tu também és conhecedor de que, se eles não forem tirados dali antes do amanhecer, o sol os consumirá. Salve-os. Do resto eu cuidarei, como tinha que ser desde o começo.

— Eles estão em número reduzido! E ainda temos a filha do caçador para ir atrás…

— Faça como preferir. Vá atrás dela e elimine-a, se assim desejar! Mas não se esqueça de nossos irmãos!

— Pensei que tu eras o maior interessado em torrá-los. Viemos aqui porque Alfred estava convencido disso!

— Ele nunca foi conhecido por tomar decisões sensatas. Morreu equivocado, para ser condizente com sua conduta no restante da vida. Agora, vá. Coloco em tuas mãos o destino de nosso nome.

 

George não precisou se preocupar com os ataques que os caçadores remanescentes, confiantes com a morte de Alfred, tentaram desferir. Vince pessoalmente o defendeu deles. Porém, enquanto continha a chuva de setas que se fez em rumo dos dois, sentiu sua velocidade ser seriamente prejudicada; seus olhos de águia também já não refletiam com clareza o ambiente em volta. Em um dado momento que investiu contra um caçador com a marreta do homem que matou mais cedo, sentiu a vertigem de algo parecido com fome, quase chegou a tropeçar e cair. Foi sorte ter conseguido matar o inimigo antes que ele próprio fosse abatido. Com outro caçador não teve tanta sorte: este lhe segurou a arma com facilidade, tomando-a e tentando acertá-lo com ela algumas vezes. Conseguiu fugir a duras penas, assistindo impotente a destruição de todo o cenário à sua volta enquanto era perseguido.

 

O vampiro, em um certo momento, saltou para atacar, feito que executaria com facilidade com seu rol de habilidades anteriores ao ferimento com o punhal. Mas ali, naquela situação ridícula, mal conseguiu ficar a um metro do ponto de distância inicial do salto. Ao ver que não poderia atacar do jeito tradicional, correu em busca de outra arma. Tentou levantar sem sucesso o leão de bronze que aprisionou Karl Lee Rush, outra atuação vexatória para aquele que até então era o líder à frente do nome Seingalt. Ao ver que a ação era impossível, correu para trás de uma coluna próxima para se esconder dos ataques dos mortais. Lá, encontrou uma flecha caída e tentou lançá-la manualmente no caçador que o atacava à distância, mas o item voou pelos ares de um jeito imprestável, rodopiou no ar sem impulso suficiente para atingir qualquer um de maneira significativa e caiu no chão.

 

— Mas o que está acontecendo? – perguntou a ninguém em específico, abobado de ver reduzida a cinzas sua força demoníaca.

 

Olhou para sua mão ensanguentada e a levou mais uma vez de encontro ao ombro ferido – ele percebeu que o ataque tinha como alvo seu coração – e tudo o que tateou foi uma perfuração comum; profunda, mas comum. Diferente da água benta que causava queimaduras ou da adaga lendária que explodia em chamas qualquer vampiro riscado por ela, por menor que fosse a ferida, Vince estava apenas machucado e não sentia nenhuma anormalidade na sua pele, exceto o fato de a dor ser pungente e latejante. Seu sangue também derramava em uma quantidade assombrosa. Todo o braço de sua roupa exuberante tingia-se de vermelho. Em um dado momento de fuga, percebeu que sua capa o atrapalhava, por isso a removeu, e também deixou para trás seu belo casaco ornamentado de flores, ficando somente com a camisa vitoriana e o colete acetinado. A cor clara da roupa deixou ver a todos o seu estado do seu braço, e, ansiosos por conquistar a cabeça do líder vampírico, os caçadores o atacaram com ainda mais ímpeto.

 

Karl abandonou sua loucura conveniente e se meteu no embate, pulando nele e tentando levantar contra o monstro enfraquecido uma estaca. Aproveitou para gritar também umas frases de efeito, estilo “você vai pagar pelo que fez com meu filho”. Vince, que estava mais fraco mas nem por isso ainda deixava de ser uma ameaça, desviou-se dele rolando para o lado, onde aparou na mão um pouco das cinzas de Alfred e as assoprou nas ventas do outro, que levou as mãos ao rosto reclamando do truque sujo e dos olhos que haviam ficado totalmente empoeirados e ardidos. Sem se importar com a nobreza ou não de seus métodos, Vince desceu a sola do sapato na cara de Karl, fazendo-o tomar o rumo do chão de novo. E, ao se despedir dele, ainda deu um último chute em sua cabeça como punição pela ousadia.

 

— Eu cuidei de teu filho; George se encarregará de tua filha!

 

Karl nada respondeu, pois desfaleceu com o ataque.

 

 

George também se desfez do seu casaco e enrolou os punhos da blusa porque, onde a roupa tocava, ela parecia aderir à pele. A flechada de água benta definitivamente não lhe caiu bem. Porém, ele estava decidido a encerrar aquela noite da melhor forma possível. Ia meio cambaleante, por efeito dos ferimentos e das bebidas que passou toda a noite ingerindo. Sorriu com presunção ao recordar que seus irmãos estavam todos escondidos em um lugar que, uma vez trancado, só poderia ser reaberto pelo lado de fora, graças a um complicado mecanismo de alavancas, roldanas, tramelas e armadilhas. Para ele, expor os irmãos àquela situação era uma ideia tão estúpida e ingênua que só poderia ter partido da mente de uma criança. Ou de um grande canalha.

 

Após bater muita cabeça sobre o que significava aquele plano onde todos dependeriam exclusivamente do triunfo do irmão mais velho, ele chegou à seguinte conclusão, a que mais combinava com o espírito dele: se o plano funcionasse e Vince conseguisse dar fim a todos os caçadores, ele voltaria lá e tiraria todos os irmãos do apuro; caso ele falhasse, ninguém mais se tornaria o líder da família Seingalt, pois o restante do clã morreria queimado assim que o dia clareasse. A peça que não encaixava para ele era apenas a seguinte: como todos os seus irmãos, capazes e inteligentes, puderam simplesmente aderir a uma ideia estapafúrdia dessas sem questionar? A verdade é que Vince, ao propor duelar sozinho contra os caçadores, se colocou em tão perigoso risco, que isso o valorou aos olhos dos outros irmãos; com isto, conseguiu deles sua confiança incondicional. Ele estava tão na mão de seus irmãos quanto eles na dele pois, ao dispensar ajuda, condenou-se ao sacrifício. O risco máximo assumido com aquele ato o faria lutar com todas suas forças, todos também estavam cientes disso. Vince só perdeu o controle da situação no seguinte: calculou mal ao não levar em conta que, entre os caçadores, pudesse haver uma criança vingativa que iria feri-lo com uma adaga cujo poder todos até então desconheciam…!

 

— Vince estava tão confiante de sua autonomia e agora depende de mim para tirar nossos irmãos do abrigo! O que aconteceria se eu simplesmente escolhesse desobedecê-lo? Qual seria sua reação? Melhor: e se ele morrer em combate? Poderei, mediante a ameaça de não abrir a entrada, fazer com que todos votem em mim como o mais novo líder da família! Seria magnífico! Gozar de todas as prerrogativas de liderança… Ah! Fazer com que todos eles se arriscassem por mim, trabalhassem para mim! Quão glorioso seria! Charles, faça vir a mais bela prostituta que encontrar na metrópole! Lake, hoje quero beber o sangue de uma camponesa virgem! Benjamin, promova um saque contra a adega mais famosa da cidade e traga para mim o melhor vinho! Christopher, prepare meu banho…! Oh, Alfred, seu grande estúpido, que tinhas tu que morrer? Poderíamos nos divertir tanto com isto!

 

Ia começar a soltar uma gostosa gargalhada quando escutou ao longe algo que se assemelhava ao choro de uma menina.

 

— Será ela, a filha do caçador? Terei tempo para dar conta dela? Que horas serão?

 

Em passos displicentes, ele rumou para a direção daquele pranto discreto que mal se fazia ouvir. Encolhida abaixo do peitoril de uma janela, ele reconheceu o que parecia ser uma silhueta feminina. Ao se aproximar, constatou que seu palpite foi certeiro: era decerto uma fêmea, por suas formas pequeninas e cabelos grandes, que caíam em cascatas ruivas pelos ombros e ao longo das costas.

 

— Olá, pequena – disse em um tom quase sedutor, recostando-se na parede oposta àquela janela de corredor, o que permitiu que a claridade lunar tomasse em cheio seu rosto pálido – Algum problema em encontrar o caminho de volta?

 

Angela levantou o rosto que escondia no meio dos joelhos. Seu aspecto era terrível, e tinha toda uma carga de ressentimento e cansaço no olhar que ela desferiu àquela criatura infernal. Em um segundo, reconheceu o belo jovem que, junto com Alfred, atacou seu noivo de surpresa, naquele golpe de sorte fulminante que o desperdiçou logo no início do combate. Mas, temerosa de que qualquer palavra atiçasse a ira dele, a caçadora conseguiu se controlar e respondeu com o máximo de comedimento:

 

— Eu me perdi dos outros.

— A senhorita saberia me dizer as horas?

 

Angela franziu a testa, sem acreditar que ele proferiu aquela pergunta, a seu ver sem sentido.

 

— Sabe, eu tinha um relógio – disse ele, enfiando a mão no bolso – Creio tê-lo perdido durante o combate. Uma tragédia, era o meu favorito.

 

E graças a ti, eu perdi meu noivo, Angela quis dizer, mas ficou em silêncio. Trouxe os joelhos ainda mais para junto dela, o que revelou generosamente suas pernas.

 

— Ah, não temas. Não quero atacá-la, eu juro.

 

Escorregando com as costas pela parede, o vampiro ficou sentado no chão, o que permitiu a Angela ter uma visão ainda maior de sua beleza. Aqueles irmãos todos pareciam um absurdo: quando via um deles, o próximo que vinha a seguir parecia ainda melhor do que o primeiro!

 

— Sabe de uma coisa? – ele perguntou, levando a ponta do sapato até o tornozelo da filha de Karl Lee Rush – Se Vince, o líder deste clã, a quer morta, eu a quero muito viva.

— Por quê? – Angela empurrou discretamente o pé dele de cima do dela.

— Porque esse negócio de ter que obedecer irmão mais velho é irritante. Séculos disso desgastam qualquer relação harmoniosa. E eu odeio, odeio com todas as minhas forças, obedecer uma ordem de Vince! Neste momento fatal, desobedecê-lo seria duas vezes mais gratificante!

 

A caçadora percebeu nisso tudo o vislumbre de uma grande oportunidade. Nada disse, apenas fingiu coçar algo na lateral do pescoço para tentá-lo com suas formas. Como Alfred, ele parecia hipnotizado com seu vestido quase que totalmente aberto na frente, e seus seios insinuando formas promissoras através do vestido. As pernas, que ela mantinha dobradas junto ao corpo, e que poderiam passar como a reação de uma dama com medo, ostentavam com clareza sua intimidade a descoberto; ela não parecia se importar. Também num simulacro de dama indefesa, Angela agarrou a ponta da saia por entre as mãos, o que deixou seus joelhos desnudos. Para um monstro movido a luxúria, a visão era irresistível.

 

E ela também tinha que lutar para não avançar nele, belíssima criatura de grandes e revoltos cabelos castanhos. Ele tinha algo nas feições que o deixava extremamente parecido com o jovem Arthur Seingalt. Sem sombra de dúvida, de todos George era o mais parecido com ele, tinha apenas o rosto ligeiramente mais maduro e as roupas em maior desalinho. Tê-lo por entre as unhas seria como agarrar o próprio amante de Helena!

 

Como consentisse uma ponte entre eles, Angela esticou uma de suas pernas, a outra seguiu dobrada. Sem mais resistir, o vampiro avançou, engatinhando lentamente na direção da caçadora, percorrendo a mão por sua perna como se ela lhe servisse de mapa. Acariciando seu joelho e subindo a mão pela parte interna de sua coxa, perguntou, com o rosto muito próximo ao dela:

 

— E então, o que devo fazer com você, caçadora dos Lee Rush?

— O que o senhor deseja fazer, filho dos Seingalts?

 

O brilho felino característico do olhar dos vampiros foi a última coisa que Angela entreviu antes de a fera fechar os olhos e tomar sua boca com sofreguidão.

 

 

 


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