Aqua escrita por Kori Hime


Capítulo 1
Episódio 1 - Água




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Seraphiel estreitou os olhos e achou estranha a sensação de ter a testa enrugada. A pele esticava e depois retraia, parecia assombroso ter que lidar com aquilo algumas horas atrás, mas agora ele conseguia compreender melhor a dinâmica do corpo humano. Não era totalmente humano, ele era um anjo, mas sua aparência e as sensações eram humanas. Viver na Terra não estava em seus planos, embora achasse a obra do Senhor magnífica.

Eles eram tão frágeis e ao mesmo tempo tão egoístas e se sentiam superiores. Não conseguia compreender como os humanos se achavam poderosos e no minuto seguinte estavam tendo uma crise de ansiedade ou sofrendo de depressão. Talvez fosse pelos excessos, pelas respostas não ditas, pelo pouco tempo de vida, afinal de contas há estrelas no universo muito mais velhas do que essas formas de vida.

Voltando a sua indignação anterior, ele estreitou novamente os olhos quando se recordou de onde estava. A loja de conveniência estava aberta durante toda a noite e ele parou ali para se alimentar. Sentia um vazio incômodo dentro de sim, mas o pior mesmo era a garganta seca e arranhando. Seraphiel precisava ingerir líquidos, já que o corpo humano era composto por esse elemento.

Eles não vivem muito tempo sem água, ou comida, mas conseguiam viver com a violência.

O anjo olhava para a prateleira com diversos tipos de garrafas feitas de vários materiais, vidro, plástico, reciclado, alumínio, aço inoxidável. As cores também variavam, eram transparentes, amareladas, azuladas e até mesmo com rodelas de pepino dentro. Também existia diferenças em seus componentes, como a água salobra de tom salgado e a termal que possuía mais iônicos dissolvidos. A água mineral magnesiana tinha uma alta taxa de magnésio e a sulfurosa possuía substâncias a base de enxofre.

O anjo não sabia qual escolher e por qual motivo havia tantas opções para a única utilidade que a água teria, aliviar a sede e manter o corpo saudável. Bastava uma nascente de rio e um pouco de boa vontade para que todos pudessem se refrescar. O planeta possuía tantas fontes de água, embora a maioria estivessem dentro de territórios de companhias privadas, o que prejudica o acesso das demais pessoas. Fora que, uma grande parte dessas fontes estavam sendo sumariamente destruídas pela poluição.

Seraphiel esfregou as pontas dos dedos nos olhos cansados, fazia algumas horas que estava acordado e ainda não havia conseguido compreender muito bem a dinâmica do sono. Ele esticou a mão e pegou um galão de água de um litro e depois enfiou dentro do cesto de compras.

Ele se dirigiu para o balcão, analisando a interação de outros humanos.

— Esse não é o preço registrado lá na prateleira. — Disse a mulher, batendo a mão no balcão.

— O valor que você viu são sem as taxas, esse é o valor total com os impostos. — O homem do outro lado do balcão bocejou enquanto ouvia a cliente iniciar uma sucessão de ofensas desnecessárias para ele. Seraphiel achou a cena lamentável para ambos. Era tarde e eles deviam estar cansados.

— Boa noite, senhor. — O anjo disse com um tom de voz harmonioso e que transmitia toda a paz que poderia. — Ótima noite, não é mesmo? — Ele continuou falando, enquanto tirava a garrafa de água da cesta e colocava sobre o balcão.

— Mais ou menos. — O homem suspirou e Seraphiel inclinou levemente a cabeça. — Eu estou aqui só fisicamente, mas minha cabeça está no hospital, meu filho tá internado.

— Oh! Sinto muito em ouvir isso. — Seraphiel piscou, sentindo o coração humano ceder.

— Não tem problema, você não tem culpa de nada. — O homem tentou um sorriso otimista. — O garoto é forte, sabe? Igual ao pai, grande que nem um touro, vai sair dessa. Eu sei que vai. — A voz dele estava embargada, mas a esperança ainda restava ali.

— Se me permite, posso orar para o Senhor protegê-lo? — O anjo sabia que os humanos não tinham qualquer obrigação de acreditar em suas crenças, que ele existia ou que havia coisas muito maiores do que deuses e anjos nesse cosmo. Então tentava ser o mais delicado possível, para não afetar a suas escolhas.

— Eu não acredito muito em Deus, mas se você tiver contato com ele, ficaria muito agradecido. — Ele deu um sorriso desconfortável, tirando o boné da cabeça e esfregando os cabelos.

Seraphiel falou em voz alta, e em seu idioma natal, um pedido ao Senhor. Que protegesse todos aqueles que, mesmo não o tendo como seu protetor, fosse abençoado.

Quando ele voltou a olhar para o homem atrás do balcão, viu um filete de lágrima escorrer de seu olho. O homem rapidamente secou a lágrima e tratou de fazer a cobrança da água. O anjo tinha algumas moedas no bolso, nada demais, havia conseguido dinheiro ajudando uma senhora a carregar suas compras no estacionamento de um supermercado. Achou curioso como a generosidade era vista como um serviço a ser recompensado.

Após o pagamento, Seraphiel deixou a loja de conveniência e abriu a garrafa de água. O primeiro gole foi escorrendo para dentro de sua garganta e ele não conseguia mais parar de beber. Ingeriu um litro inteiro e, mesmo depois disso, ainda sentia sede. Ele leu o rótulo da garrafa, era a água com magnésio. Será que não era assim tão boa quanto as outras?

Ele suspirou, precisava de mais dinheiro para poder comprar as demais garrafas para saber qual o sabor de cada uma. E foi o que fez, ficou no estacionamento do supermercado quando esse abriu as portas, até fechar. No final do dia tinha uma quantidade razoável e havia feito até mesmo amizade com alguns cachorros e gatos que passaram por ele.

Seraphiel retornou ao estabelecimento e não encontrou o homem no balcão, dessa vez era uma mulher mais jovem que mastigava um chiclete e lia uma revista sem dar atenção aos clientes.

Ele pegou um carrinho e colocou todas as águas que o dinheiro poderia comprar. Quando se dirigia para o caixa, um senhor parou ao seu lado estendendo a mão para ele. Seraphiel não compreendeu.

— Pegue, é um cupom de desconto para essas garrafas, você vai pagar só a metade do preço. Eu já comprei todas as quantidades que podia do lote, então não posso comprar mais.

— Muito obrigado, senhor. — O anjo aceitou e entregou o cupom para a mulher do balcão. Seu dinheiro não foi todo em água e aquela sensação foi energizante. Saiu daquela loja com suas garrafas de água e algum dinheiro no bolso. Parecia que as coisas estavam melhorando.

Sendo assim, o anjo sentou-se num banco de uma praça e se pôs a experimentar todas as águas. Ele fez algumas anotações mentais sobre cada uma delas e suas delicadas diferenças talvez não muito perceptivo para todos os paladares, mas ele era um anjo que nunca havia comido ou bebido, tudo parecia novo.

— Acho que essa é minha favorita. — Falou, olhando para uma simples garrafa.

O anjo sabia qual era o seu tipo de água favorito e também sabia como poderia economizar o dinheiro que ganhava. Havia sido muito produtivo aquele dia, estava ansioso pelo o que viria em breve.


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