A Aranha na Teia escrita por Elvish Song


Capítulo 7
Lucy


Notas iniciais do capítulo

Olááááá!!!
Voltei, anjos! Tudo bom?
Sei que demorei mais do que o esperado, mas o capítulo ficou grande, e escrever as cenas com uma criança telepata traumatizada não foi exatamente fácil, então só posso torcer para que gostem.
Aliás, estou como coautora na fic da minha irmã, Targaeryen Blood, chamada Sweet Poison (IronWidow). Quem tiver curiosidade, cheguem lá, ok?
Sem mais delongas, vamos à história!



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Natasha saiu do carro com passos visivelmente cansados: passado todo aquele inferno, as consequências das pressões e feridas psicológicas causadas pela missão se faziam notar. Ainda assim, ela se mantinha firme ao caminhar para a casa ao lado de Clint; felizmente as crianças já estavam dormindo, e não veriam a madrinha lavada em sangue e restos de vísceras, ou a menininha assustada que mal se atrevera a falar por todo o caminho até ali. Laura, porém, estava na varanda após receber a ligação de Clint, e foi direto até a amiga:

— Meu Deus, Nat… - Obviamente a russa sabia o quão mal parecia, então a outra apenas procurou apoiá-la - Você está em casa. - E encarando a ruivinha, deu seu sorriso mais gentil. - Vocês duas estão, pequenina. Vamos cuidar de você, também. – A garotinha apenas assentiu, seus olhos incrivelmente azuis muito arregalados, curiosos e cheios de receio.

— Obrigada, Laura. - O cheiro de ferro em suas próprias roupas era um constante lembrete de que sua prioridade era remover toda aquela sujeira de Lucy e de si mesma. - Precisamos de um banho, primeiro. Depois eu explico tudo.

— Vou pegar um pijama de Lila para a mocinha. Vai servir bem. Vocês precisam de um banho, comida, descanso, e manhã pode explicar o que for. Suba direto, já arrumei seu quarto.

Antigamente a casa dos Barton tivera dois quartos de hóspedes; agora, um deles era reservado apenas para Natasha, considerada por cada um deles como um membro da família, tanto quanto o casal ou as crianças. Era o único lugar que Romanoff já chamara de lar; seu refúgio seguro quando precisava ficar fora da zona de combate. Com um sorriso grato, a espiã subiu para seu quarto e pegou roupas para si, e duas toalhas, seguindo então para o banheiro. Lucy provavelmente já se banhava sozinha, mas certamente não naquele estado de choque e medo… Com cuidado, a russa colocou a menina em pé no chão e se abaixou para lhe falar:

— Estamos seguras, agora, malenkaya. Estamos em casa. - Apesar do silêncio, o tremor da garotinha passara, e ela assentiu timidamente, concordando. - Vamos tomar um banho, tirar essas roupas sujas e colocar alguma coisa confortável, está bem?

Mais uma vez, Lucy assentiu, mas agora começou a soltar timidamente os cordões da camisola hospitalar; Natasha deixou que o fizesse sozinha, mas ajudou a tirar o tecido colado na pele, testando terreno para saber como deveria lidar com sua protegida. Ligou o chuveiro e regulou a água, deixando Lucy entrar e começar a se molhar enquanto tirava a própria roupa ensanguentada, para então se ajoelhar do lado de fora do box.

— Venha cá, Lucy. Deixe-me tirar esse sangue todo de você. - Com o mesmo cuidado que tinha ao dar banho em Lila, lavou bem os cabelos vermelhos da garotinha, até que todo o sangue houvesse sido removido, e então a ajudou com o que se grudara à pele. Aos poucos Lucy relaxava ao contato de mãos que não a machucavam, até estender as mãozinhas para os cabelos de Natasha, molhando-os, e sua voz soar na mente da mulher:

"Você também precisa se limpar."

Romanoff deu um leve sorriso e entrou no box grande com a… Filha. E mesmo com todo o estranhamento da situação de duas pessoas que haviam aprendido a ser sozinhas tentando lidar com um vínculo novo, algo ali parecia a caminho de estabelecer uma via de contato. Lucy passou o xampu pelo cabelo ora negro de Natasha, maravilhando-se quando a tinta escura começou a sair para revelar o tom vermelho brilhante, igual ao seu, e isso a fez sorrir.

"Você é como eu."

"Em muitas coisas, pequena. Mas você é uma versão muito melhor." Respondeu a agente, enquanto os últimos resquícios de tinta, sujeira e sangue escorriam pelo ralo. Envolvendo-se na toalha maior, cuidou de secar a criança, primeiro, e pegar o pijama que Laura deixara do lado de fora da porta - lilás, com um gatinho azul na camiseta de alcinhas. Lucy se vestiu por conta própria, não sem se maravilhar com o tecido, a cor, a sensação dele no corpo… Mesmo sem perceber, um pequeno sorriso brotou de seus lábios, tímido e receoso, mas ainda assim um sorriso.

Também vestindo um pijama confortável, Natasha secou os cabelos de ambas com o secador, e carregou Lucy para o andar de baixo. Obviamente o choque e trauma não passariam da noite para o dia, mas já sentia a menina menos tensa e assustada. A pequena Lucy, por sua vez, ainda tentava assimilar os pensamentos e sentimentos de Romanoff, o cuidado e preocupação, os gestos de carinho, o cuidado com que a banhara e secara seu cabelo… Ela conseguia identificar os sentimentos da Viúva Negra, mas o que os motivava estava além de sua compreensão, não apenas por exaustão, mas por jamais ter lidado com aquele tipo de emoção direcionado a si. Não havia uma experiência prévia que a preparasse para entender o que levaria alguém a querer protegê-la, fazê-la se sentir bem... Somando-se a isso, os pensamentos da mulher eram difíceis de ler, tornando-a uma incógnita exceto em duas certezas: um, ela manteria Lucy consigo, sob seus cuidados, e os de mais ninguém. Dois: Jamais deixaria que a tocassem, outra vez. E para a ex-cobaia 109, apenas isso já bastaria para fazê-la mais feliz do que já fora, em toda a vida.

Cuidar de crianças não chegava a ser algo completamente novo para Romanoff, que sempre adorara os afilhados e tentara participar o mais possível de suas vidas... Mas havia um grande abismo entre lidar com crianças a cuja mãe sempre se podia pedir socorro, quando algo saía errado, e assumir a responsabilidade sobre uma. Por enquanto tratava-se apenas de cuidar das necessidades mais imediatas de ambas: banho, comida e sono. Mas o amanhã viria, e a espiã se conhecia o suficiente para saber que o autoquestionamento e receio acompanhariam o despertar.

Afastando tais pensamentos, colocou Lucy na cadeira mais alta enquanto Clint empurrava para cada uma um prato de carne com batatas acompanhada de uma salada de maionese colorida. Para Lucy, o arqueiro usara a maionese para desenhar um rostinho feliz no prato, e mais uma vez Natasha não tinha palavras para agradecer o suficiente ao amigo quando este brincou com a “sobrinha”:

— Acho que sua comida ficou feliz em te ver. – E com um falsete engraçado. – Oi , Lucy! Tomara que esteja com fome, porque fomos feitos pela tia Laura, então somos deliciosos!

A criança não entendeu exatamente qual era a graça da brincadeira, mas entendia muito bem a intenção de que aquilo a fizesse sorrir, e os pensamentos de Clint Barton pareciam mais leves e fáceis de ler, como aquele cuidado com suas emoções, a preocupação para com ela, tanto quanto para com sua mãe. E foi o gesto de tentar diverti-la, mais do que a brincadeira em si, que a fez dar um risinho leve, mesmo que tímido e nervoso. Obviamente, tinha medo de qualquer um que não fosse Natasha, mas podia ver os vínculos entre ela e os outros adultos, e o que sua mente exausta conseguia captar lhe dizia que eram boas pessoas. Ou pelo menos pareciam, e não queriam lhe causar dor.

— Aqui, Lucy. – Natasha puxou o prato da pequena e cortou a carne para ela, ao perceber que a criança estava com dificuldades e prestes a dormir sobre a refeição. Passou a comida de volta para ela, e insistiu com tom firme, mas gentil. – Precisa comer, para repor suas forças. Vamos dormir assim que terminar de comer.

Não era nada menos do que o esperado ver a criança daquele modo retraída; tudo na vida lhe dissera para desconfiar, ensinara a sempre esperar dor, exigências e punições. Aquela risadinha curta para Clint já fora muito mais do que a espiã esperara ver, antes de alguns dias, e quando Laura se sentou do outro lado da pequena para se revezar com Natasha em persuadi-la a comer, levou apenas alguns minutos para a jovem Romanoff relaxar e perder a postura encolhida que assumiu quando outra pessoa se aproximou. Tirando os incentivos para que a pequenina comesse, foi um jantar silencioso, ao fim do qual Laura tirou os pratos antes que Natasha o fizesse, e silenciou o protesto da amiga antes que este pudesse ser ouvido:

— Nem pensar. Vocês duas, para a cama. O Gavião e eu cuidamos de tudo, hoje; você e Lucy estão a um passo de dormirem sentadas. Vão, subam logo! Amanhã conversamos, quando você for um ser humano, e não um zumbi.

Natasha lançou aos amigos um olhar grato e pegou uma Lucy semiadormecida no colo; mal dando acordo do que fazia, a menininha levou sua mão ao cabelo da mãe, enrolando seus dedinhos nos fios ruivos e escondendo o rosto na curva de seu pescoço. O olhar um tanto surpreso de Romanoff arrancou sorrisos dos Barton, mas ela o ignorou com um revirar de olhos e subiu a escada com a garotinha. Sim, já fizera isso algumas centenas de vezes com Cooper e Lila, mas... A ideia de ter aquela criança tão machucada e compassiva daquele modo apegada e dependente de si a assustava muito mais do que qualquer missão.

Onde estava com a cabeça, ao prometer cuidar de Lucy? Não podia entregar a criança aos cuidados de outra pessoa, sem machucá-la de novo, mas como ser algo sequer parecido com uma mãe? Isso não era ela. As maiores chances eram de que causasse ainda mais danos na coisinha em seu colo... Ah, definitivamente precisava conversar com Laura, amanhã, para organizar seus pensamentos. Não seria agora, com todos os eventos da missão martelando em sua mente, todos os instintos de proteção em relação à menina em seu máximo e o “modo espiã” ainda trabalhando que conseguiria pensar claramente sobre o assunto.

Chegando ao quarto – um espaço aconchegante de mobília em madeira clara, com cama de casal envolta em lençóis brancos e azuis, cortinas lisas em azul que combinava com a cama e uma estante de livros cujos títulos em russo denunciavam muito bem a quem pertenciam – deitou Lucy no lado mais distante da porta – o mais seguro, sempre – e verificou o criado-mudo, onde sua Colt ficava guardada para uma emergência. Os filhos de Clint não mexiam em suas coisas sem autorização da madrinha, e o que vira naquele inferno lhe dizia que Lucy não seria diferente. Deslizou para baixo dos cobertores, e ia apagar o abajur quando as íris azuis se fixaram em si, enquanto a mãozinha esquerda se esticava para cima:

— Não vai me algemar? – Ah, merda... Ela queria voltar à base apenas para ressuscitar e esfolar vivos aqueles vermes! Que piada maldosa a vida fazia, ao colocar em seus braços um pequeno anjo contaminado por condicionamentos e brutalidades iguais aos que lhe haviam incutido? Ela, Natasha, era podre em seu interior. Lucy era pura de um modo além da compreensão, especialmente ante a forma como fora criada. A menina não merecia isso.

Segurando com delicadeza o pulso pequeno, Natalia se deitou ao lado da pequena e a puxou de costas para si, de modo que seu corpo protegesse o dela, sua mão esquerda mantendo a dela dobrada próximo ao peito enquanto beijava sua cabeça:

— Não, Lucy. Tudo isso acabou. Ninguém nunca mais a irá prender, machucar ou forçar a nada daquilo. – Que se dane. Ninguém mais tinha estado ali, ninguém ia entender como tinha sido. Lucy era sua responsabilidade, sua missão... Talvez um modo de limpar o vermelho em seu livro.  – Ty v bezopasnosti, dorogaya (Você está segura, querida).

Ya znayo, mama.” (Eu sei, mamãe) Natasha levou um breve susto ao ser chamada daquele modo pela menina, mas este era exatamente o vínculo que as ligava. Assim, aconchegou a criança contra si e fechou os olhos. Nenhum fantasma ou pesadelo a veio perturbar.

*

Natasha acordou às nove: bem mais tarde do que seu habitual, mas não podia se censurar por isso, depois de três semanas sem uma hora que fosse de sono profundo, e tendo dormido bastante tarde; perder a hora era quase previsível. Mas jamais havia acordado naquela situação: Lucy se enrolara contra seu corpo, a cabecinha usava seu seio de travesseiro, e a mão direita segurava seus cachos vermelhos. Ao contrário do esperado, a pequena não tivera pesadelos, exausta demais para sonhar, e simplesmente se agarrara à única pessoa que detinha sua confiança, para se refazer dos eventos traumáticos do dia anterior.

Por longos minutos, Romanoff ficou imóvel enquanto ouvia a respiração da menina, sentindo-a completamente relaxada e, se fosse muito sincera, aquela situação era mais intimidadora e difícil de lidar do que a mais suicida das missões. Não era boa em não desapontar pessoas, e ter a confiança de alguém, especialmente daquela coisinha... Precisou espantar esses pensamentos inúteis com uma respiração profunda, e se moveu devagar para escapar do abraço de Lucy, virando-a com cuidado na cama de modo a aconchegá-la entre travesseiros e cobertas. Os olhos azul-índigo se abriram um pouco e a voz sonolenta resmungou baixinho:

— Mama? 

— Shhh. Estou aqui, malenkaya. Durma um pouco mais: precisa descansar. Quando acordar e se sentir bem, estarei no andar de baixo, onde comemos, ontem. Lembra? – E ante o anuir sonolento, beijou a testa da menina e ajeitou os cobertores ao seu redor. Talvez pudesse fazer isso... Assustador, mas não impossível; além disso, fizera uma promessa. – Sokhranyay spokoystviye (fique tranquila).

Os olhos da pequenina se fecharam, e Natasha pegou roupas de dia a dia para usar: blusa verde mais larga e shorts jeans pretos. Tomou um banho, vestiu-se e deixou os cabelos soltos, descendo para a cozinha; ainda não havia alcançado o meio das escadarias quando uma dupla de vozes infantis chegou a ela, carregadas de extrema empolgação:

— TIA NAT!!! – Lila, de cabelos louro escuros e rostinho redondo, corada, olhos castanhos cheios de vida, vinha na frente, e subiu as escadas de dois em dois, seguida um passo atrás pelo irmão mais velho, Cooper, de cabelos escuros e arrepiados, feições traquinas e olhos também castanhos, cheios de entusiasmo. A russa abraçou ambos, rindo ao ver Laura sair da cozinha com censuras aos filhos para não correrem nas escadas. – Estávamos com saudades!

— Eu também, meus terroristas. – A espiã pegou a caçula no colo e passou o braço livre pelos ombros do mais velho. – Não queria ficar tanto tempo longe.

— A mamãe disse que você trouxe uma amiguinha. – Começou a filha de Clint. – Onde ela está?

— Ela vai brincar com a gente? – O menino também estava exultante com a ideia de uma nova amiga. – Podemos mostrar a casa na árvore que o papai construiu!

— Ela ainda está dormindo um pouco: estava muito cansada. – Clint apareceu na porta e trocaram um olhar que dizia tudo. – Vai brincar com vocês, na hora certa. Por enquanto está um pouco... Assustada e machucada. – Ela entregou Lila ao pai. – Precisam ter um pouco de paciência.

— Quem... – Cooper ia começar uma pergunta, mas a expressão do pai o fez parar; entendeu que era algo para outra hora.

— Sem encher a tia Nat de perguntas: já sabem as regras. Ela conta o que vocês têm que saber. – Hawkeye colocou a filha no chão, e Natasha nunca conseguia não sorrir com o carinho das crianças pelo pai. – Agora vão cometer um atentado no quintal, e daqui a pouco vamos andar de trator. – Ambos soltaram exclamações de contentamento, despediram-se da madrinha com um beijo no rosto e correram para fora. Romanoff deixou escapar um suspiro antes de se deixar cair numa das cadeiras, sentindo a mão de Laura em suas costas.

— Como você está, Nat?

— Fisicamente? Impecável. – Ela ergueu o tronco quando Clint colocou uma xícara de café diante de si. – Spasibo, Clint.

— Fisicamente bem significa que mentalmente, você não está. – A Sra. Barton se sentou ao lado da amiga. Sabia que indagações acerca do estado de ânimo eram inúteis e apenas colocavam Romanoff mais calada, então desviou o assunto da conversa para a pequenina assustada que a russa trouxera para casa, na noite anterior. – Como Lucy passou a noite?

— Dormiu profundamente. Eu a deixei descansar mais um pouco. – Uma parte de si queria falar sobre o que vira, as coisas que Lucy passara, mas não sabia sequer por onde começar e, a bem da verdade, não queria que Laura tivesse de lidar com tais informações. Não que ela fosse frágil, mas... Algumas coisas tornavam mais difícil dormir à noite, ou se sentir tranquila sobre o futuro de suas crianças, no mundo. – Ela está machucada e com medo, precisa de... Eu não sei de que, mas com certeza mais do que cuidados básicos. – Deu mais um gole em seu café, pensativa. -  Não sei o que fazer, para ser honesta.

Clint passou o braço pelos ombros de Nat e beijou sua cabeça, entendendo bem a situação dela: ele mesmo, com prática em lidar com dois filhos, não fazia ideia de como cuidar de uma criança como ela, acometida por tantos traumas em tão pouca idade. Terminando a bebida, Natasha usou o pretexto de lavar sua caneca para se afastar e esconder os próprios pensamentos atrás de uma máscara neutra, algo difícil de fazer quando estava com duas pessoas que a conheciam tão bem. Provavelmente as únicas, além de Peggy e Steve, que a conheciam de fato.

— Vou lidar com uma coisa por vez. Agora ela precisa de roupas, objetos pessoais, provavelmente alguns brinquedos... – Felizmente a ruivinha era da idade de Lila, ao menos em seu desenvolvimento, o que deixava um pouco mais fácil discernir o que adquirir para ela.

— Preciso fazer compras na cidade, posso cuidar disso por você. – Declarou Laura, terminando de listar o que tinha de trazer; levar Lucy para a cidade não era uma opção, mas tampouco parecia uma boa hora para Natasha deixar a filha sozinha. Cedo demais. E para evitar uma recusa, propôs uma ajuda mútua. – Você vigia o Comando Selvagem, e eu posso levar o Gavião para me ajudar com as compras.

Natasha ia responder, quando uma vozinha tímida soou da porta da cozinha, pouco mais que um sussurro:

— Bom dia. – Os adultos se viraram para ver a pequena Romanoff parada à porta, parecendo sem jeito. Seus olhos daquele tom impressionante de azul se erguiam e baixavam de volta ao chão, incertos quanto a se deveriam encarar algum deles. – Desculpe ainda estar de pijama... Eu não sabia o que vestir.

Natasha trocou um olhar com Laura e foi até a criança, abaixando-se para falar com ela; uma das poucas coisas que se recordava de sua primeira infância era como todos pareciam tão mais altos e intimidadores, e dificilmente manter-se em pé ao falar com a pequena a incentivaria a se abrir e sentir menos insegura. Estendendo a mão devagar, tocou com as costas dos dedos o rosto da menina – talvez seu conhecimento sobre como manipular emoções humanas pudesse agir em seu favor, para facilitar a conexão com a criança e ajudar em sua... Reabilitação seria o termo?

— Privet, dorogaya (Oi, querida). Como se sente?

— Dói um pouco. O corpo. – Ela encarou Clint e Laura com incerteza, e Natasha segurou sua mão antes de se erguer.

— Não fique com medo, nem acanhada: esses são seus tios, Clint e Laura. Cuidaram de nós, ontem, quando chegamos. Lembra?

A garotinha assentiu, e agora sustentava o olhar de ambos, como se fosse capaz de enxergar em suas almas – talvez fosse um modo de resumir o que estava fazendo. Os adultos, contudo, não desviaram o olhar com desconforto, como a maioria fazia: o homem se aproximou e ajoelhou, sustentando seus olhos com bondade, embora fosse difícil enxergar mais do que seus pensamentos superficiais.

— Rada poznakomtsia, Lucy. (Prazer em conhecê-la, Lucy) – Disse num russo quase sem sotaque, estendendo a mão para a garotinha. – Já disseram que você tem os olhos mais bonitos que já conheci? – Surpresa, mas de um modo bom, ela negou com a cabeça. – Bem, então agora alguém já disse: são lindos. Se ler nossas mentes, vai saber que é a pura verdade.

Sem saber como reagir, a menininha se escondeu um pouco mais contra a mãe, mas esboçou um leve sorriso incerto:

— Vocês não têm medo de mim?

Foi a vez de Laura se sentar no chão com um sorriso encorajador:

— Não, minha florzinha. Você é tão doce e suave, tão gentil... Como poderíamos ter medo de você, por suas habilidades? Aqui não medimos as pessoas por seus poderes, mas por quem são, de verdade.

— Eu consigo machucar pessoas. A maioria fica com medo por isso. – Por que eram tão legais consigo? Como podiam ignorar o perigo que ela podia representar?

— Bom, está no lugar certo. – Brincou Clint – Aqui nós todos conseguimos machucar pessoas, mas não fazemos isso se tivermos outra escolha. – Finalmente a pequenina segurou sua mão, sem largar a da mãe com sua outra mãozinha. – Você é especial, e sabemos disso. Mas existe um jeito ótimo de saber se alguém é uma boa pessoa: - O arqueiro levantou uma sobrancelha, fingindo suspeita. – Gosta de panquecas?

Lucy riu baixinho, um pouco nervosa, sentindo as intenções de todos ali de fazê-la sentir-se bem, feliz e segura. Sem outras intenções, sem tramas... Se ainda não estivesse tão perdida com aquela bondade gratuita, provavelmente choraria com a emoção. Fazia tão poucas horas que estava ali, e já se sentia... Querida, acolhida. Estava cada vez com mais medo de como se sentia bem ali, por receio de que fosse privada daquilo!

— Eu... Nunca comi. – Sussurrou a pequena, encolhendo os ombros.

— Como assim?! – Protestou Laura, se levantando devagar com um sorriso. – Vamos corrigir isso! Porção de panquecas prontinha para você provar uma das melhores coisas do mundo!

— E são as panquecas da Laura. – Complementou Natasha, incapaz de traduzir em palavras o quão agradecida se sentia aos amigos, enquanto a menina a acompanhava até a mesa e se sentava. Ainda tensa e sem saber como reagir, mas definitivamente muito menos assustada do que antes. – As melhores que existem.

A ruivinha agradeceu num murmúrio o prato de panquecas com calda, e comeu um pedaço pequeno, experimentando; covinhas se formaram pela primeira vez em suas bochechas quando deu um sorriso um pouco mais aberto:

— É a coisa mais gostosa que já comi! – Mais pedaço, e outro, sem se preocupar com a calda sujando os cantos de sua boca, deliciada com o novo sabor. E tanto quanto era bom ver a pequena se soltar mais um pouco, mesmo que fosse apenas mais um passo, era doloroso pensar que algo tão simples a fizera tão feliz. Natasha pegou o guardanapo e limpou a boca da menininha, sorrindo para ela de modo aprovador e reconfortante.

— Calma, devushka. As panquecas não vão fugir. – Colocou o guardanapo na mesa e apertou a ponta do narizinho de Lucy com o indicador, fingindo não ver os olhares dos Barton sobre si.

— Posso comer panquecas todo dia? – Lucy tinha um olhar pidão e aquele sorrisinho tímido que causava na espiã aquele novelo de emoções que não conseguia nomear, algumas maravilhosas, outras muito dolorosas.

— Todos os dias? Assim não vai experimentar outras coisas boas, malishka. – Respondeu Romanoff, deixando de lado argumentos mais racionais como alimentação saudável e similares. Não era hora para isso. – Não se apresse. Vai ter toda uma vida para provar de tudo.

A expressão de Lucy mesclou surpresa, receio e choque, e ela largou o garfo, seu olhar se obscurecendo de um modo que nenhum dos adultos jamais havia visto em uma criança tão pequena; doloroso e perturbador, mas Natasha entendia bem a sensação... A noção de que agora havia uma vida a ser vivida, com possibilidades tão enormes que chegava a ser assustador. A isso, somava-se o choque de perder tudo o que se conhecia. Ruim ou não, era a única vida que Lucy conhecera – assim como ela em relação à KGB, no passado – e, agora, estava acabada.

— Shhh. Eu sei. – A mulher puxou a criança para seu colo, abraçando-a de modo protetor. – Não está sozinha, Lucy. Estou com você. – Nem mesmo Clint e Laura já haviam visto Natasha agir de modo tão protetor e acolhedor ao mesmo tempo, surpreendendo-os na mesma medida em que entendiam os sentimentos envolvidos. Ambos queriam poder fazer algo, mas ninguém poderia, pelo menos até a menininha soltar seus bracinhos do pescoço da mãe e se endireitar.

— É verdade? – perguntou, olhando agora para o casal Barton. – Agora eu vou ficar com vocês todos?

— Vai. – Assegurou Clint, estendendo a mão para a pequena. – Nat é sua mãe, e tia Laura e eu somos seus padrinhos. – Ele pensou melhor – padrinhos são pessoas que ajudam os pais a cuidar dos filhos. Somos a sua família, Lucy: nunca mais vai ficar sozinha.

 Lucy olhou longamente para cada um dos adultos, suas íris índigo encontrando primeiro o azul-cinza de Clint, então o castanho de Laura, e enfim o verde dos olhos de Natasha. Ela não sabia como chamar o que via ali, mas entendia que se preocupavam com ela, queriam seu bem, não apenas físico, mas sua felicidade... E não tinham muita certeza quanto a como fazer isso, por medo de machucá-la, e não de serem machucados por ela. Isso era tão novo, que mesmo vendo seus pensamentos claros como o dia, não conseguia realmente acreditar.

— Por que se preocupam comigo? Por que... Por que fazer alguma coisa por mim? – Havia ali a falta de amor por si mesma que uma criança jamais deveria demonstrar, e o trio sentiu seus corações se apertarem. Em toda a sua vida, em todas as vezes nas quais lidara com crianças, Nat nunca sentira algo assim. Não que houvesse parado para ouvir aquelas crianças mais do que o necessário para acalmá-las, obter informações ou garantir o seguimento da missão, mas ainda assim... Tudo o que já ouvira sobre toda sorte de abusos e sofrimentos... Nunca haviam vindo de uma criança tão nova. Nem uma que fosse sua... Pois a verdade é que, voluntariamente ou não, ela era a mãe de Lucy, responsável direta por sua criação! Podia apenas imaginar o que aquele pequeno ser passara e... Daria qualquer coisa para que fosse diferente. Não sabia o que era aquele sentimento que nutria pela filha, mas talvez fosse alguma forma de amor. Algo entre o sentimento humano de proteger outra pessoa, especialmente uma tão jovem, e um envolvimento mais pessoal, ainda incipiente, mas não menos real.

— Lucy... – Natasha segurou com as mãos o rosto da pequena, e Clint pôde perceber seus olhos úmidos pela criança. – Eu sei que você passou por muita coisa, e faria qualquer coisa para poder mudar isso. Não posso, mas juro pela minha vida que você nunca mais vai precisar ter medo. Entendeu? – E ante a pergunta muda no rosto pueril. – Nós nos preocuparíamos mesmo se fosse uma estranha, porque é uma pessoa, uma criança, e inocente, e só por isso já faríamos de tudo para cuidar de você e mantê-la bem. Mas acima disso, você é minha filha: não pude te proteger antes, mas posso agora, e é o que vou fazer. E você não tem de fazer nada para justificar essa proteção e cuidado ou ganhá-los. Qualquer criança mereceria, e alguém que se manteve boa e gentil como é, depois de tudo isso... – A menininha começou a chorar, fazendo Natasha abraça-la. – Está tudo bem. Acabou. Eu tenho você, agora.

Um olhar trocado entre os adultos fez os Barton anuírem enquanto Natasha se levantava com Lucy no colo e subia para o quarto, a fim de ficar sozinha com a filha num espaço menos exposto, mais conhecido e seguro no entender da pequena, por já terem pernoitado ali. Sentou-se no banco acolchoado na caixa da janela, a princípio sem saber exatamente o que fazer, mas mantendo a filha junto a si, secando suas lágrimas abundantes, até conseguir se lembrar de trechos de uma música calma... A letra não importava, pois apenas cantarolou baixinho, embalando a criança até os soluços se acalmarem e o choro parar, quando ergueu levemente o queixo de Lucy e beijou sua testa, sem necessidade de palavras. A pequenina abraçou sua mãe, desfrutando de cada segundo daquele gesto tão estranho a si, e tão... tão reconfortante.

— Você está em casa, malishka. – Suas frontes se tocaram, e ficaram assim por longos minutos, até Lucy se afastar um pouco. Estaria envergonhada pelo choro, se a mãe não a fitasse de moda tão compreensivo e reconfortante. – Não tenha medo: tudo ficará bem. Está a salvo.

A ruivinha anuiu, finalmente mais calma, e sorriu enfim:

— Obrigada... Por me tirar de lá. Por cuidar de mim.

— Sempre. – Romanoff enfim a deixou sair de seu colo, sentada ao seu lado no banco. – Melhor? – E ante o anuir dela, levantou-se para pegar um dos conjuntos de roupas que Laura pegara para a criança. – Venha: vamos trocar seu pijama por roupas, e descer; não quer ficar mais tempo fechada em um quarto, quer? – E ante a negativa da menina, sorriu genuinamente enquanto a garotinha escolhia uma das roupas (uma camiseta cor de rosa, com shorts azul-escuros) e se vestia. Natasha cuidou de seus cabelos, desembaraçando-os e prendendo em um rabo de cavalo frouxo. Finalmente desceram juntas e, passada sua crise de choro, Lucy parecia muito mais segura e até mesmo feliz. Talvez não fosse ser tão difícil assim... Talvez, e apenas talvez, Natasha fosse capaz de fazer isso.

*

As três crianças se olhavam com curiosidade e alguma empolgação, como filhotes de gato que se cheiram sem ter certeza se devem ou não começar a brincar. Cooper e Lila pareciam fascinados com Lucy, que não era indiferente aos dois, nem demonstrava medo, mas parecia confusa com os dois pequenos que não apenas não a temiam, mas eram tão diferentes das demais crianças que conhecera em sua breve vida.

— Então... Você é filha da tia Nat? – Perguntou o menino, fazendo a garota Romanoff dar de ombros.

— Alguma coisa assim. Ela não... – Desistiu da explicação ao perceber que precisaria falar mais do que queria, para esclarecer. - É, sou sim.

— Você parece com ela. – Lila estendeu devagar a mão e tocou uma mecha cacheada e ruiva da nova amiga. – É bonita como a tia Nat. – um momento de silêncio e sobrancelhas franzidas. – Papai disse que você lê pensamentos. Isso é muito legal!

—  A maioria acha só esquisito. – Ela olhou para a mãe, tentando obter alguma pista de como agir. Aquelas crianças eram tão... Sem medo, curiosas e expansivas! Olhavam para ela como uma potencial companheira de jogos, não como uma rival ou ameaça... Nada a preparara para isso! – Por que não estão com medo?

— Por que estaríamos? Você é nossa prima! – Cooper sorriu, um pouco confuso, até olhar para o pai e se lembrar do que ele falara, sobre Lucy ter sido muito machucada por outras pessoas, e precisar de muita gentileza e paciência até se acostumar. – E se quer saber, é muito legal, mesmo. Ler mentes, como os Jedi...

— Como os o quê? – Ela levantou uma sobrancelha enquanto puxava um meio sorriso do lado esquerdo, cópia do gesto da mãe.

— Ah, você não conhece Star Wars... – O garoto sorriu e lhe estendeu a mão. – Quer ver com a gente? Íamos te chamar para brincar lá fora, mas o papai e a mamãe vão sair, e vamos ficar com a tia Nat. Quando eles voltarem, podemos andar no trator, com o papai, e te mostrar a fazenda.

A ruivinha hesitou por um momento, antes de estender sua mão e segurar a do... Primo. Os dedinhos dele se envolveram nos seus e um sorriso divertido brotou em seus lábios, enquanto a alegria dele e da irmã a contagiavam, levando-a a sorrir também, mesmo sem entender exatamente o motivo. Ou talvez fosse sua própria felicidade, por não ser temida... Por saborear o que sempre vira nas mentes de outras pessoas, mas nunca tivera por si mesma. Lançou um olhar incerto para a mãe, procurando confirmação sobre estar agindo corretamente, e seu coraçãozinho acelerou ao receber um sorriso e um gesto de cabeça encorajador, enquanto ouvia os pensamentos que, claramente, a mãe se esforçara par que ouvisse:

“Vá. Estou bem aqui, e não vou sair. Já, já, vou para a sala com vocês.”

Os pequenos foram para a sala de TV, deixando os adultos livres para falar entre si; os Barton estavam prontos para sair, mas Laura queria ter certeza de que a amiga ficaria bem:

— Consegue dar conta do trio? – E ante o levantar de sobrancelhas da amiga – Você entendeu o que eu perguntei.

— Eu dou conta do seu marido, em campo: acho que consigo cuidar dos meus sobrinhos e da minha filha, enquanto vocês fazem compras. Não sou um prêmio em maternidade, mas mantenho todos vivos.

— E você está bem para isso, Nat? – Foi a vez de Clint perguntar. Ele sabia tudo o que a amiga passara durante aquelas semanas, e o quão exausta ficara mentalmente. Não que ela algum dia fosse admitir isso, é claro.

— Estou bem para chutar você até o carro, Hawkeye. – Ela sorriu e gesticulou a porta com a cabeça. – Vão, sumam, os dois! Tirem um tempo para vocês! Sempre lidei com o Esquadrão Selvagem, é só mais uma adesão.

Laura e Clint assentiram e abraçaram Natasha, um por vez, antes de irem para o carro; a Black Widow ficou na porta até ver o veículo sair do pátio, protelando ao máximo o momento em que fecharia a porta e iria ficar com as crianças. Não que não gostasse de ficar com os pequenos: muitas vezes incentivara os amigos a saírem apenas para poder ficar com os sobrinhos, mas Lucy... Lucy a assustava, e não tinha nada a ver com os poderes da criança. Se muito, talvez fosse mais fácil lidar com uma criança que podia entender o que jamais conseguiria colocar em palavras, e compreender razões, conceitos e informações muito além de seus dois anos e meio de vida e cinco de desenvolvimento físico. Intelectualmente, na verdade, ela regulava com Cooper, talvez até mais. Uma boa coisa, por um lado, e terrível, por outro. Os danos emocionais provavelmente seriam mais difíceis de reverter... Conhecia o tipo de feridas causadas, mas a verdade é que ainda não fora capaz de curar as suas próprias – se é que um dia se curariam – então, como curar as de uma garotinha? Se Lucy apenas olhasse mais fundo em sua mente, veria horrores ainda piores do que os que já vivenciara, talvez passasse a ter medo dela, e poderia mesmo ser forçada a reviver tudo...

Seu devaneio foi interrompido pelo toque de seu celular, com uma chamada de Steve; involuntariamente os cantos de seus lábios se repuxaram num breve sorriso ao atender.

— Espero que ainda esteja inteiro, Cap.

— Apenas uma laje de metal caindo em cima de mim. Mal arranhou. – Ele brincou do outro lado, mas por detrás da aparente leveza em sua voz, havia preocupação. – Como você está, Nat?

— Estou bem, Steve, fique calmo. Eu só precisava de um lugar seguro para trazer Lucy: ela estava assustada demais para que eu a levasse à Torre. Não me machuquei, nem nada do tipo. Estão todos bem? Tony, Thor, Bruce?

— Todo mundo bem, Nat. As crianças foram levadas para o Instituto Xavier, e Tony conseguiu todas as informações que havia nos servidores: JARVIS as está processando. – Uma pausa. – Sei que você se vira muito bem sozinha, mas essas semanas foram pesadas, e não consigo não me preocupar; onde está escondida? – Céus, esse homem não cansava de ser gentil, sem dar a entender de que não confiava nela? Steve era uma pessoa tão impossível de não amar, que às vezes queria socá-lo por isso!

— Num lugar seguro. Não posso falar onde, pois é um esconderijo do Clint, portanto, segredo dele. Mas não vou demorar para voltar. Alguns dias, só. – Ela nem começava a imaginar como seria lidar com Lucy na Torre dos Vingadores, ou como Steve reagiria à pequena. – Steve... Precisamos falar sobre uma coisa.

— Vai ficar com Lucy, não vai? – Não havia desagrado na voz dele. Parecia até um pouco satisfeito, na verdade.

— Vou. Ela se apegou a mim... É minha filha, mesmo que de um modo estranho. Passar por mais um abandono a machucaria demais, e o Instituto Xavier não seria mais do que outra instituição cheia de pessoas que teriam medo dela. – A russa se encostou à coluna de madeira da varanda. - Não sei como vou fazer isso, mas descobrirei um jeito.

— Não precisa fazer nada sozinha, Nat. Estou com você, sempre. – O coração da russa pulou uma batida com essas palavras, e nunca se sentiu tão grata ao americano, antes, mas prosseguiu de modo racional:

— Não posso impor isso a você, Tev. Não tem que fazer as coisas em função das minhas decisões. – Ela segurou a ponte do nariz com o indicador e polegar, sem saber se isso fazia com que amasse mais ainda o americano, ou tivesse plena certeza de que não era a mulher que Steve merecia ou precisava. – Olha... Conversamos sobre isso pessoalmente, está bem? Gostaria que estivesse aqui, mas podemos esperar mais uns dias.

— Tasha... – A voz dele era suave e terna ao telefone. – Conversamos pessoalmente, mas não fique se torturando com isso. Não está me impondo nada. Eu te amo, e estou com você, não por obrigação, e sim porque quero estar. Um cobre as costas do outro, lembra?

Ela respirou fundo, desejando que Steve estivesse à sua frente para poder abraçá-lo, sem saber como retribuir suas palavras. Irônico: uma espiã que sabia usar palavras para manipular até mesmo o deus das trapaças, perdia a eloquência quando se tratava de expor o que sentia pelo homem com quem havia começado a dividir uma vida...

— Eu... Preciso mesmo ir, Steve, mas em poucos dias nos veremos de novo, está bem? – Apertando os lábios, concluiu – Amo você, Capitão.  

— Cuide-se, Nat. – Ambos deligaram a chamada e, mesmo tensa com as implicações de adotar Lucy, com todas as possíveis consequências para a menina e para os colegas, seu coração estava um pouco mais aquecido por causa de Steve. Maldito americano, que a fazia sentir coisas que pensava não existirem.

Com um leve sorriso, guardou o celular e voltou para o interior da casa, onde Lila, Cooper e Lucy se haviam acomodado no sofá, a ruivinha sentada entre os irmãos e, embora ainda um pouco perplexa com aquela simples aceitação, sorrindo timidamente enquanto o mais velho explicava por cima a história, antes de começar o filme.

— Hey, Comando Selvagem, seus pais saíram e só voltam daqui algumas horas. – Ela sorriu com travessura. – Quem quer assaltar as pipocas no armário?

As crianças dos Barton deram gritinhos de aprovação e correram para a cozinha, escolher sabores. Enquanto isso, Lucy se levantou e foi até a mãe, que se abaixou para olhá-la nos olhos:

— Como está se sentindo, pequena?

— Um pouco confusa e estranha. – Confessou a garotinha. – Nada disso nunca... É estranho, e é bom. – Subitamente, os bracinhos dela envolveram o pescoço de Natasha. – Obrigada por me tirar de lá. Por ficar comigo e cuidar de mim, mesmo que não quisesse uma filha.

Natasha sentiu o coração apertar e, retribuindo ao abraço, logo afastou a menina o suficiente para poderem se encarar, e respondeu:

— Você é minha filha, e uma das pessoas com o melhor coração que já conheci. – Ela hesitou antes de continuar, sabendo que provavelmente a filha captara tudo o que pretendia falar, antes de colocar em palavras. – Eu não pretendia ter uma filha, Lucy. Na minha cabeça, era impossível. Então você apareceu. As coisas não aconteceram de um jeito fácil, mas aconteceram, e agora estamos juntas. Tudo vai se ajeitar, e vou te dar a vida que você merecia ter, desde o começo. – Com um beijo na testa da pequena, estendeu-lhe a mão. – Vamos escolher as pipocas com Cooper e Lila, antes que eles se matem discutindo.

O filme acabou sendo uma maravilhosa opção, e ao fim dele Lucy não apenas se sentia menos estranha, como elegera Obi-Wan como seu personagem preferido, após vê-lo usar a Força para manipular os Stormtroopers. Usar um poder como o seu, mas para o bem. Isso a deixou exultante, e Natasha abraçou com força os sobrinhos. Acabaram iniciando o episódio V, para assistir em maratona – Romanoff já descobrira ser um excelente jeito de manter os sobrinhos entretidos e sem derrubar a casa – e quando os créditos finais começaram a subir, ouviram a buzina.

— Ok, acabou a farra. – Sorriu a espiã – Todo mundo ajudando a descarregar o carro.

Compras guardadas, Laura e Natasha levaram as coisas que haviam comprado para Lucy direto para o quarto das Romanoff, acompanhadas pela menina enquanto Clint fiscalizava a lição de casa dos filhos. Quem o via em campo, um assassino tão frio e impassível, jamais imaginaria uma vida tão simples e envolvida com a família quanto a que o Gavião levava, em seu santuário escondido. Natasha não podia deixar de sorrir ante a felicidade do amigo a quem amava como o próprio irmão, ou mesmo mais.

*

Juntas no quarto, Laura devolveu o cartão de Natasha, e declarou com expressão marota:

— Eu sei o que você falou, mas uma parte das coisas são presente dos padrinhos. Não ouse tirar esse gosto de nós. – Então olhou para Lucy, que estava curiosa, e lhe estendeu a mão. – Está na hora de ter suas próprias coisas, querida. Venha ver!

— Mas... Eu não fiz nada para ganhar alguma coisa...

— Malen’kaya, você sobreviveu a tantas coisas, sem deixar que elas te tornassem uma pessoa ruim. – A mão de Natasha empalmou o rosto da filha. – Toda pessoa precisa ter suas próprias coisas, e você ainda mais.

Intrigada, a garota se sentou na borda da cama com a mãe e a madrinha, a princípio um pouco desconfortável, mas logo se soltando e sorrindo radiante para as roupas coloridas, os shorts, calças, vestidos, blusas... Experimentou cada peça com satisfação, raramente tendo sentido algo tão bom no corpo, e perdeu-se em mais agradecimentos do que conseguia contar! Laura também arranjara prendedores de cabelo, tiaras e acessórios combinando com as roupas, além de uma boneca, material de desenho, uma espada de madeira e patins. Apostara apenas em coisas que vira a maioria das crianças gostar, por não ter certeza dos gostos da garota, mas vê-la lacrimejar e abraçar a boneca, experimentar os patins e agitar a espada encheu o coração das adultas. Mas nada deixou Lucy tão feliz quanto a prancheta com lápis normais e de cor, giz de cera e aquarela. Gratidão e felicidade transbordavam da pequena com uma intensidade que contagiava as mulheres, deixando-as radiantes e aliviadas por conseguirem atingir a pequena.

— Eu vou cuidar de tudo, com todo o carinho. Prometo! – Se alguma vez uma criança ficara tão comovida e grata por receber presentes, Laura nunca tinha visto, e não tinha certeza se isso a chocava, enternecia, ou ambos. Deus... O que aquela criança passara, na vida? Ela duvidava que pudesse algum dia compreender, e não sabia se realmente queria fazê-lo.

— Sabemos disso, minha flor. Agora você tem suas próprias coisas, uma família e um lar. – A ruivinha sorria com lágrimas escorrendo pelas bochechas rosadas, abraçando ora a mãe, ora a madrinha, sem saber o que dizer, então preferindo extravasar seus sentimentos para que ambas entendessem.

— Shhh, não precisa agradecer. – Sussurrou Natasha, acalentando sua filha. Cada reação da menininha era um golpe em sua alma, e uma prova de que, ao mesmo tempo em que se sentia a pior pessoa possível para criar alguém já tão machucada, também era a única que podia entender Lucy. – Isso é o que uma família faz. Você está segura.

Segura. Família. Cuidados. Palavras que eram apenas conceitos para a menina, em pouco mais de vinte e quatro horas evocavam lembranças vívidas que ela duvidava esquecer, algum dia. Não era pelos presentes ou cuidados em si, mas pelo que significavam, pelos sentimentos que via nas pessoas ao seu redor... E isso era o que realmente fazia seu coraçãozinho bater forte e rápido, e os olhos lacrimejarem: pessoas que se preocupavam com ela, que lhe queriam bem sem ser por seus poderes... Apenas por si mesma. Fora tudo pelo que pedira – não sabia a quem, mas pedira – em todas aquelas noites solitárias acorrentada em seu alojamento. Como resumir o que sentia em uma palavra? Felicidade. Pela primeira vez em sua curta, porém aparentemente muito longa vida.

*

Era o terceiro dia na casa dos Barton e, conquanto Lucy desabrochasse em confiança e ânimo, mostrando-se cada vez mais ativa e curiosa ao perceber que não era repreendida por fazer perguntas ou explorar, as noites eram difíceis: pesadelos horríveis a acometiam, em que se via levada de novo às instalações nas quais fora criada, submetida aos piores testes possíveis, suas memórias felizes sendo apagadas enquanto sua mãe, padrinhos e primos eram mortos.

Após cada pesadelo, ela se levantava silenciosa e retraída, carecendo de tempo para metabolizar a realidade e se livrar dos temores resultantes. E era fácil saber quando estava ou não sob efeito dos traumas: os desenhos coloridos que começara a fazer tão logo ganhara o material de desenho se tornavam apenas preto e branco, às vezes laivos de vermelho intenso, com bordas afiadas e formas assustadoras. Esses ela não mostrava a ninguém, mas não tentava esconder quando Natasha os via. Apenas Natasha. Depois, rasgava e queimava os pedaços de papel com uma corrente de energia gerada por suas mãos, para garantir que mais ninguém veria. E mesmo tentando ajudar, Romanoff sabia que, em alguns momentos, Lucy precisava metabolizar tudo sozinha. Sim, telepatia tornava a compreensão mútua muito mais fácil.

Foi em um desses momentos de laconismo e medo da parte de Lucy que Lila desceu a escada de seu quarto com uma pelúcia em mãos. Chegando perto da prima, esperou que ela saísse daquela postura defensiva e assustada para chegar perto e subir na cadeira ao seu lado – a ruiva fora mais do que rápida em esconder seu desenho, virando-o.

— Oi, Lu.

— Oi. – Abraçada aos joelhos e levemente trêmula, ela se forçou a um sorriso para Lila, que só tivera para com ela gestos gentis e compreensão, como todos ali. – Você está bem?

— Eu estou. Mas você não está. – A menininha loira inclinou a cabeça. – Papai disse que pessoas ruins te machucaram, e por isso você tem pesadelos, e fica com medo. Sabe que nunca mais vamos deixar ninguém te machucar, não sabe?

— Eu sei. – Um sorriso amargo surgiu nos lábios rosados. – Mas os pesadelos não sabem.

Lila ergueu a pelúcia que trouxera – um dragãozinho branco e azul – e o estendeu para a prima:

— Esse é o Fafnir. Papai me deu quando eu era menor e tinha muitos pesadelos, para ele me proteger e ajudar a dormir. Agora eu cresci e não tenho mais pesadelos: ele pode cuidar de você.

Os olhos de Lucy se arregalaram:

— Mas, Lila... Ele é seu!

— É sim. E por isso eu posso te dar ele, se quiser. – A menina Barton abraçou a prima, sentindo aos poucos o tremor dela acalmar. Não precisava entender causas ou eventos para entender o medo, e quando este se aliviava. – Fique com ele: vai te proteger, e pode abraçá-lo se sentir medo, seja de dia ou de noite.

As garotas se abraçaram, e Natasha observava aquilo com um sorriso agridoce: queria que Lucy não precisasse passar por aquelas coisas, mas o modo como a família Barton a acolhera, e a maneira como a criança aos poucos se abria a ser amada. Seus afilhados também eram crianças especiais, não egoístas ou ciumentas, mas abertas à recém-chegada e dispostas a ajudá-la através de seus traumas, mesmo quando não entendiam direito.

Perdida em pensamentos, só percebeu a presença de Clint quando o arqueiro a chamou – já aprendera do pior jeito, há muitos anos, que tocar Natasha quando estava distraída podia gerar lesões involuntárias.

— Nat, pode vir aqui fora? Tenho uma surpresa para você?

— Acho que eu poderia viver o resto da vida sem surpresas, Gavião. – Ela sorriu de leve enquanto o acompanhava para a varanda, mas quase petrificou ao ver a pessoa que estava ali! Sem uniforme, vestido casualmente, com os mesmos olhos intensos e puros que haviam feito a espiã experimentar o amor pela primeira vez, Steve Rogers sorria para a espiã.

— Oi, Nat.


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Notas finais do capítulo

E então? O que têm a dizer sobre esse capítulo?
Espero muito que tenham gostado, minhas flores, e me despeço com abraços enormes! Até o próximo capítulo!
kisses!