Agulhas, Panos e Linhas escrita por wateru


Capítulo 7
Pesar




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Só restaram as cinzas na vala. Narizinho, agora possuidora plena de seus sentimentos, desistira de carregar toda aquela massa carbonizada para outro local – apenas prostrou-se perante à vala... E chorou.

 

Lúcia umedeceu por completo aquele monturo de cinzas. Seus canais lacrimais, de tão inchados, cessaram de gotejar. Lúcia parou por mais alguns instantes, levantou-se e voltou à casa.

 

- Agora estou sozinha, sem meus pais, sem minha boneca, sem o tio Barnabé, a vó Benta e a tia Nastácia. – ela ia dizendo, chutando pedrinhas com os pés e cantarolando. Ela até sorriu.

 

Lúcia acabara de descobrir a força para se manter fria como no momento em que não tinha outra opção. E achou aquilo muito bom. Seu corpo ficou mais leve, e, pela primeira vez em muito tempo, sentiu que poderia optar entre pensar ou não na noite em que perdera a mãe, o pai de criação e a inocência. Narizinho correu feliz para o casarão, não sem antes devolver as latas de querosene ao casebre do tio.

 

Na cozinha de tia Nastácia, havia um convidativo bolo de fubá sobre a mesa. O pote de mel estava estrategicamente disposto ao lado da cestinha de broas, cobertas por um pano semitransparente. O bule ainda exalava os últimos momentos de vapor do café restante. Estava tudo perfeito, e o desjejum de Lúcia seria glorioso. Ela voltaria a mastigar os bolinhos pensando em histórias, livros, quem sabe escrever uma ficção entre uma garotinha apaixonada pelo pai?

 

Narizinho voltava a ter seus sentimentos femininos, envolvendo bonecas, desejos e romances baratos entre uma dama e seu cavalheiro. Nunca mais sentiria dor, angústia, sofrimento. E mal sabia ela que estava absolutamente certa.

 

Dona Benta chegou ao anoitecer, e mal reconheceu sua neta – sentada, lendo à lamparina, com um sorriso. Ela se divertia lendo Dostoiévski?

 

- Está tudo bem, minha filha? – a avó perguntou, preocupada.

 

- Claro, vovó, porque a pergunta?

 

Nada, minha filha, talvez porque você tenha sido estuprada pelo assassino dos seus pais, só isso. Dona Benta teve, realmente, vontade de responder. Mas estava tão feliz com aquela imagem que a única coisa que pôde exprimir foram lágrimas de felicidade. Tia Nastácia, vindo logo atrás, presenciou a cena de uma idosa chorando infantilmente aos pés de uma garota de expressão madura. Apesar de seus treze anos.

 

            Narizinho voltou para o quarto após o jantar alegremente servido pela avó. Ao se deitar, pôde sentir apenas a lembrança de Fernão, seu verdadeiro pai, tentando matá-la pela segunda vez. Matá-la?

 

 

            Narizinho ainda não havia se perguntado de onde tirara aquela conclusão. Ainda nem havia passado por sua cabeça, e ela já pensara em um conceito tão concretamente formulado. Estaria ele tentando assassiná-la pela violência sexual?

 

            Não, não seria possível. Ele disse que voltaria.

 

            No inferno, talvez.

 

            Ela se perguntava, cada vez mais convicta. Tudo levava a crer que era essa a real intenção de Fernão. Vendo que a primeira tentativa fora frustrada... Ela se sentia cada vez mais envolvida pelos sentimentos, e sentia a ausência de sua mãe para lhe dizer “Vamos ser racionais?”.

 

            Ela teria que raciocinar naquilo por mais algum tempo. Até que todas as imagens fossem dissipadas, e restassem apenas os fatos.


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