Agulhas, Panos e Linhas escrita por wateru
– Um recipiente? O que você quer dizer com isso? – Narizinho parecia confusa.
– Somente esse poder não garantiu que eu saísse por aí, andando e falando. Pra dar vida a um ser inanimado, é preciso uma força muito maior. Força essa que eu encontrei ontem, Narizinho, enquanto o seu pai tentava te estuprar de novo.
Narizinho achou que era uma piada. Não que aquilo fosse engraçado, mas tudo o que ela ouvia a fazia querer rir.
– Mas como? Meu pai morreu no incêndio!
– Estou falando do seu pai biológico. Seu nome era Fernão. Ele era cliente antigo de sua mãe na alfaiataria. Os dois se conheceram uma semana após o casamento dela, e, um dia em que ela estava sozinha na loja, ele a violentou. Da mesma forma que fez com você. O que ele não sabe é que esse estupro gerou um fruto. Fruto que ele mesmo mordeu e cuspiu fora.
Emília parou de falar. Uma onda de choques parecia percorrer seu corpo de pano, e isso a fez tremer freneticamente.
– Está tudo bem? – Narizinho perguntou.
Emília parou de tremer.
– Como eu imaginava – A boneca disse. – Esse é mais um detalhe que preciso te contar.
– Sou toda ouvidos – Narizinho cantarolava alegremetne.
– Como já disse, sou apenas um recipiente, à espera de uma força suficiente para me erguer sobre minhas pernas. E essa força eu extraí da sua dor, do seu desespero. Eu roubei todos os seus sentimentos ruins para viver.
– É por isso que eu não consigo sentir nada de ruim?
– Na verdade, todo esse sentimento é transferido automaticamente para mim. Agora mesmo, quando eu te falei a verdade sobre seu pai, você sentiria a tristeza. Aquela onda de tremeliques que você viu foi apenas o desespero em sua mente ao saber a verdade, mas esse sofrimento não encontrou lugar em você para se manifestar.
Agora tudo parecia fazer sentido para Narizinho.
– Foi por isso que eu não senti nada quando meu pai verdadeiro me bateu ontem?
– Na verdade, ele não chegou a te bater. Acontece que, para defendê-la do golpe, eu tive que absorver muita energia ao mesmo tempo, e isso fez com que você desmaiasse.
– Quer dizer que tudo aconteceu mesmo, ontem?
– Sim. – Emília respondeu.
– Então... Onde está ele agora? Eu quero abraçá-lo! Fico feliz em saber que meu pai biológico está vivo!
– Não está mais. – Emília cortou – Para proteger você, tive que fazê-lo parar à força.
– Você o matou?
– Sim. Ele está embaixo da sua cama.
– Tudo bem, então. – Narizinho logo mudou de assunto, sem muito interesse em saber que havia um cadáver sob seu colchão - Mas você ainda não me respondeu: como sabe de tanta coisa a meu respeito?
– Foi sua mãe quem me criou. A mente dela foi copiada em mim, naquele dia. E a sua foi copiada em mim ontem, enquanto eu sugava seu ódio.
– Mas, se você foi feita com amor, porque se alimentar de ódio para viver?
– Não necessariamente o ódio. Você não se lembra das inesgotáveis referências a seres que ganharam vida nos livros? – Emília forçava a mente de Narizinho a se lembrar de alguma.
– Ah, sim, me lembro! O monstro do Dr. Frankestein, o espantalho e o boneco de lata do Mágico de Oz...
– Adão, da Bíblia Sagrada, os golens da mitologia judaica, Pinóquio... – Emília completou. – Cada um foi alimentado por algo diferente: amor, loucura, tristeza, orgulho. Depende da fonte que estiver presente no momento.
– Você conhece cada livro que eu li, também?
– Sim. Sei cada passo, cada movimento de vocês duas. Durante toda sua vida, Narizinho. Eu sei tudo o que você sabe.
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