Agulhas, Panos e Linhas escrita por wateru


Capítulo 3
Pesadelo




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/77776/chapter/3

Já era a segunda semana de Narizinho em sua nova casa. Fora recebida com muitos abraços – e lágrimas, que sua avó tentava conter para não se lembrar do que havia acontecido. Para a garota, não fazia diferença alguma: em sua mente, o rosto daquele que destruiu sua família era projetado o tempo todo. Aquele que, possuído pelo demônio, a houvera possuído violentamente. Ela nem tentava esquecer, e já não tentava dormir. Lúcia havia se conformado com a possibilidade de ser atormentada pelo resto de sua vida, contanto que pudesse continuar alimentando aquele desejo de matá-lo quando o visse da próxima vez. E o veria, ela tinha certeza disso. Afinal, foram as últimas palavras dele em seu ouvido:

 

– Parabéns, mocinha, você foi muito comportada. Dá pra ver que seus pais te educaram direitinho. Vou voltar pra brincar com você de novo, qualquer dia desses.

 

No inferno, quem sabe, Lúcia pensava. Se assustou ao cair em si: sua mente estava sendo contaminada pelos sentimentos de ódio. As visões eram cada vez mais nítidas, mais realistas. Às vezes, eram realistas até demais.

 

Em uma dessas noites, enquanto se aconchegava na imensa cama (que sempre dava a ela a impressão de estar morrendo afogada naquele mar de lençóis bordados à mão), a porta se abriu lentamente, fazendo ranger as dobradiças. A luz da lua esboçava uma forma negra apalpando a maçaneta e correndo a porta para dentro do quarto de Lúcia. Mais uma vez, como em todas as outras noites, era o seu algoz. O homem que matou seus pais cruelmente. Ela já estava acostumada a vê-lo o tempo todo, vindo em sua direção com aquele olhar de sempre. Mesmo sabendo que aquilo era uma miragem, ela se encolhia na cama, suava frio, com aquela sensação de congelamento, como quando se sonha com o próprio demônio. Ela tentava gritar, mas não conseguia. Talvez fosse o demônio mesmo.

 

            Subitamente, a imagem masculina à sua frente apressou o passo na direção da cama. Narizinho tentava se controlar, convencer a si mesma de que era mais um daqueles pesadelos. Mas, como sempre, ficava gélida, retraída, todos os músculos em um grau de tensão elevadíssimo. E, enfim, ele pulava na cama, caindo de quatro sobre ela, fazendo de seus braços e suas pernas as barras da gaiola humana que agora envolvia a menina.

 

            De modo geral, os pesadelos sempre acabavam por aí. Algumas vezes ele nem chegava a pular, em outras ele conseguia falar algumas palavras, mas, dessa vez, Narizinho sentiu uma dormência diferente percorrer seu corpo com violência. Ela não sabia ao certo, mas teve a impressão que o impacto da queda daquela miragem sobre a cama havia exercido um peso real sobre ela, fazendo toda sua estrutura ranger. O colchão também se encolheu. Aquilo era esquisito demais até pra ela, que vivia a mesma situação, repetidamente, durante todas as noites. Ela se perguntava se suas alucinações iriam ficar cada vez mais realistas como aquela.

 

            Lúcia o fitava, esperando tudo aquilo passar. Mas não passava. A imagem se mantinha firme sobre ela. Foi quando ela pôde reparar em outros detalhes que havia ignorado até agora: suas roupas.

 

            Todas as outras vezes em que Lúcia havia “sonhado” com aquele homem, a imagem era rigorosamente a mesma: um senhor elegante de tez clara, barba feita, um chapéu-côco preto, uma camisa de linho fino sob um paletó de jacquard e uma calça cujo tecido lembrava sarja. A imagem que ela gravara da noite em que tudo aconteceu. Dessa vez, no entanto, a homem que ela via estava vestindo um capuz negro, de pano grosseiro, e sua barba já estava grande. Meu Deus, será que tudo vai piorar cada vez mais?, ela perguntava em pensamento. Como se Deus tivesse ouvido, prontamente uma voz disse:

 

            – Saudades de mim?

           

            Não era Deus. Era o homem em cima dela, mesmo. Ela voltava a viver aquele momento, após uma breve pausa para a tentativa de redenção.

 

            Ela já pressentia que iria ouvir aquilo. Já havia acontecido de a imagem falar com ela umas seis ou sete vezes, e sempre era algo parecido com o que ele acabara de falar. O próximo passo, pensou ela, é...

 

            Um tapa bem forte em seu rosto. Não era o que ela previa, mas certamente foi o que ela sentiu. Até aquele momento, tudo não passava de uma repetição alucinada de imagens. Após o tapa, ela saiu do transe. Aquilo era real. Ele era real. Mas como?

 

            – Eu prometi que voltaria... Agora comporte-se e seja boazinha.

 

            Lúcia não sabia o que pensar. Não podia, simplesmente, aceitar o que parecia ser um fato. Por si só, a situação era corriqueira, mas sentir que aquilo poderia ser físico... Pavor. Puro pavor. Seus pensamentos, devaneios, indagações, tudo se acumulou em sua garganta, pronto a explodir em forma de som. Ela nem chegou a dar atenção à outra mão do homem, que carregava um soco-inglês encaixado ao nó de seus dedos. Ele se preparava para um golpe de misericórdia, que certamente a deixaria inconsciente, e ela engatilhava suas cordas vocais para a última tentativa de sobrevivência, e também a mais primitiva delas: o grito. Mas, quando a mão do homem estava no ar, pronta a descer em seu rosto, Lúcia uniu forças e... Sorriu. Sorriu francamente, sentiu em sua alma que desejava sorrir. Não sabia para onde tinha ido todo seu desespero, sua angústia, sua vontade de viver, ela apenas sentia uma paz de espírito imensa invadir seu corpo. E a mão do encapuzado desceu. E tudo ficou preto. Como ela previu.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Agulhas, Panos e Linhas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.